Por Jean Silva* - Jornal da USP - 1 de novembro de 2024 - Tucuruvi,…
O Brasil secou
A falta d’água se alastrou pelo país, sintoma das mudanças climáticas e do desmatamento na Amazônia, cada vez mais debilitada. Nos aproximamos de um futuro desértico e a culpa é toda nossa
Em 2014, não choveu. Pelo menos não quanto deveria. Os índices de chuvas apresentam déficit, os reservatórios minguaram a percentuais críticos, a nascente do Rio São Francisco secou pela primeira vez na história. Esses eventos extremos estavam previstos pelos estudiosos das mudanças climáticas, causadas quase exclusivamente pela atividade humana, especialmente pela queima de combustíveis fósseis. Mas outro fator está agravando esse quadro: o desmatamento. A Amazônia é a responsável por manter úmido todo o continente, e sua depredação influencia diretamente no clima.
A floresta funciona como uma fábrica de chuvas. Por cima das nossas cabeças, há imensos rios seguindo seu curso, levando nuvens carregadas por onde passam. São os rios voadores, que começaram a ser estudados em 2006, numa parceria entre o aviador francês Gérard Moss e o engenheiro agrônomo Antonio Donato Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Sobrevoando a Amazônia, eles descobriram todo o seu potencial de bombeamento de água e traçaram o curso que os rios voadores seguem pelo País. Esta capacidade da floresta de exportar umidade é um dos cinco segredos da floresta, poeticamente explicados no relatório O Futuro Climático da Amazônia, publicado recentemente por Nobre.
Nossa água vem da Amazônia
Entenda o processo de transpiração da floresta e a formação das nuvens sobre ela. Ao lado, conheça o percurso dos rios voadores e como eles levam chuvas por todo o continente.
O fluxo dos rios voadores é mais intenso no verão, estação em que chove na maior parte do País. Isso acontece graças à inclinação da Terra nesta época do ano, que favorece a entrada dos ventos marítimos na América do Sul. Mas há mais uma vantagem geográfica que garante esse circuito: a Cordilheira dos Andes, localizada a oeste da floresta. O imenso paredão faz com que os ventos não passem direto e deixem o resto do Brasil sem umidade. De acordo com o físico Philip Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), é no começo do ano que os rios voadores reabastecem as fontes de água e reservatórios brasileiros. Ao se chocarem contra a Serra da Mantiqueira e da Canastra, no Sudeste, enchem a nascente de vários rios importantes, como o São Francisco. “Esta região é a caixa dágua do Brasil”, avalia Fearnside. “Se não chover na época em que tem que chover, os reservatórios não serão recarregados ao longo do ano”, completa. Esse tem sido o drama em 2014.
Desmatamento que vai, volta
Poder contar com a maior floresta tropical do mundo, inclusive em relação aos recursos hídricos, é um privilégio. Pouquíssimo valorizado. Nos últimos 40 anos, derrubamos 42 bilhões de árvores. Além disso, devido às queimadas, existe mais de 1 milhão de km² de floresta morta, degradada. O que não se imaginava é que uma revanche em forma de seca chegaria tão rápido. “Hoje, estamos vivendo a reciprocidade da inconsequência”, atesta Nobre. Há mais de 20 anos, estudos alertavam para esse perigo. Em 1991, o climatologista Carlos Nobre, irmão de Antonio e também do INPE, comandou uma simulação para avaliar os impactos no clima da mudança do uso da terra. Constataram que, se a floresta fosse substituída por plantações ou pastagens, a temperatura média da superfície aumentaria cerca de 2,5 ºC, a evapotranspiração das plantas diminuiria 30% e as chuvas cairiam 20%. Também se previa uma ampliação das estações secas na área amazônica. Hoje, com quase metade da floresta original danificada, tais efeitos parecem ter vindo à tona.
“O desmatamento zero é para ontem. Chegamos a níveis climáticos críticos. Precisamos começar a replantar o que já perdemos”, aponta Antonio Nobre. Apesar da urgência, as perspectivas não são animadoras. Só na região amazônica, há mais de 40 projetos do Programa de Aceleração do Crescimento do Governo Federal só no quesito geração de energia. São usinas, barragens e outras medidas que causam inundações e corte de árvores e que afetam diretamente populações indígenas. Os projetos de estradas também são preocupantes. A recuperação da Rodovia Manaus-Porto Velho (BR-319), abandonada desde a década de 1980 por falta de manutenção, também consta no PAC. De acordo com Philip Fearnside, o projeto é um risco para a Amazônia. “Uma estrada valoriza demais a terra, e especulação gera desmatamento e favorece a grilagem”, explica. O mesmo acontece com a Rodovia Santarém-Cuiabá (BR-163), com mais de 1.700 km de extensão.
“A estrada vai ser recuperada para facilitar o transporte da soja produzida no Mato Grosso”, aponta Fearnside, sobre uma das áreas amazônicas que mais sofrem com o agronegócio. “A terra valoriza tanto que pecuaristas estão vendendo suas terras para produtores de soja do Sul. Por sua vez, isso tem aumentado muito o desmatamento no Pará, com a liberação de terrenos para a criação de gado desses pecuaristas”, critica o especialista. Ele também destaca o fortalecimento da bancada ruralista no Congresso, após as eleições deste ano.
Desmatamento e degradação:
Clima em crise
Neste verão, os rios voadores não avançaram sobre o Sudeste; tampouco as frentes frias. A ilha de calor instalada sobre a região, característica de uma urbanização extrema, cria bloqueios que afastam as chuvas. Por isso, a água esborrou na borda dessa bolha quente, gerando chuvas acima da média no Sul e países vizinhos. Hoje, há registros de seca em todos os Estados brasileiros. Em alguns deles, a seca é “excepcional”, ainda mais grave do que a “extrema”. O quadro já era grave no ano passado, quando o Nordeste viveu a pior seca dos últimos 50 anos, inserindo o Brasil no mapa de eventos climáticos extremos, da Organização Mundial de Meteorologia.
De acordo com o físico especialista em ciências atmosféricas Alexandre Araújo Costa, da Universidade Estadual do Ceará, o agravamento de secas e das cheias está relacionado ao aumento da temperatura na atmosfera. Aquecida, ela se expande, fazendo com que seja necessário reunir mais vapor dágua para formar nuvens. “Esse processo demanda mais tempo, portanto tende a prolongar os períodos de estiagem. Por outro lado, as nuvens se formam a partir de uma quantidade maior de vapor dágua, fazendo com que os eventos de precipitações se tornem mais intensos. Um planeta mais quente é um planeta de extremos”, explica.
Para a filósofa e ecologista Déborah Danowski, que lançou recentemente o livro Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins, com seu marido e antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, entramos num caminho sem volta. “A crise climática não pode mais ser evitada. Se cortássemos agora as emissões de CO₂, a Terra ainda iria se aquecer aproximadamente 1 ºC. Isso porque já jogamos no ar uma quantidade tão grande, que muito dele ainda nem foi absorvido”, aponta. O que não quer dizer que não haja muito o que fazer. Para ela, o primeiro passo é repensar os modelos econômicos de crescimento e consumo. “O que nos cabe é tentar mitigar as causas que levam ao aprofundamento das mudanças climáticas e, ao mesmo tempo, nos adaptar à vida em um mundo mais difícil ecologicamente.”
Estamos todos ilhados
Seja pelo excesso de calor ou pelas enchentes. Mais filosoficamente: não temos saída para o clima. Os eventos extremos parecem estar se tornando uma realidade no Brasil.
Fonte – Camila Almeida, Revista do Meio Ambiente
Imagens – Revista do Meio Ambiente
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