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Dependência da pauta exportadora de commodities faz país exportar água

Para pesquisador da Unicamp, dependência da pauta exportadora de commodities faz país ‘exportar’ água

Além de fundamental para a saúde e o bem-estar humano, a questão hídrica é crucial para economia brasileira, que depende da geração hidrelétrica de energia e que, com sua pauta exportadora dependente de commodities, “exporta água”, nas palavras do professor Humberto Miranda do Nascimento, pesquisador do Centro de Estudos de Desenvolvimento Econômico (Cede), do Instituto de Economia (IE) da Unicamp.

“Somos uma economia que depende da exportação de primários, de commodities, agrícolas e minerais”, lembrou ele. “Então, exportamos água. Que é usada não só na agricultura, mas a mineração utiliza muita água, não só no processo de extração, mas também no de transporte”, explicou.

“E isso se agrava, também, porque a atividade de mineração está sendo muito mais extração e exportação bruta, sem se fazer algum beneficiamento antes, e exportar com algum valor agregado. O que acontece é o contrário: a gente manda para a China, que elabora o produto e depois vende de volta ao Brasil, mais caro”.

Nascimento relata uma experiência pessoal que teve com o impacto da pecuária no manejo das águas no Centro-Oeste brasileiro: “No Mato Grosso vimos uma cidade, Nova Xavantina, onde passa o Rio das Mortes, com mata ciliar intacta. A prefeitura e as pessoas que entrevistamos disseram que não havia problema de contaminação com esgoto, mas o fato é que águas do rio estavam baixando”, contou. “Por quê? Gado. Os criadores fecham córregos para poder dar água aos animais, e os córregos ficam impedidos de alimentar o rio. Se a água não sai, fica represada, ou sai em menor quantidade dos córregos, isso se torna um problema para o rio”.

Planejamento urbano

O pesquisador adverte, no entanto, que uma análise da atual crise hídrica com base apenas no volume absoluto consumido por cada setor – mais na agricultura e indústria, menos no abastecimento urbano residencial – é simplista. Ele lembra que o principal ícone da escassez é urbano: o reservatório da Cantareira, que abastece mais de 8 milhões de pessoas na região metropolitana de São Paulo.

“Quando a gente fala do consumo, o consumo humano, em termos proporcionais, é menor que na indústria e na agricultura, que é altíssimo. Mas tem um problema aí: que é o problema da concentração urbana, nas áreas metropolitanas principalmente”, afirma. “Essa expansão da mancha urbana torna a situação complicadíssima”.

“A região metropolitana de São Paulo é uma imensidão, você concentra uma boa parte da população aí, e o Sistema Cantareira tem que dar conta disso tudo. É algo muito difícil de gerir, e cada vez que a mancha urbana cresce, e a população cresce, isso fica mais complicado”.

Outros problemas que ligam o crescimento urbano “num ritmo meio anárquico”, nas palavras do pesquisador, à questão hídrica são a expansão desigual entre rede de água e de esgoto, o uso de “gatos” em ligações de água e elétricas – “o gato de energia também é indiretamente de água, já que a geração é hidrelétrica”, lembra ele – e a crescente impermeabilização do solo, com a formação das ilhas de calor urbanas, que aumentam a frequência de chuvas e de enchentes.

“É muito mais fácil expandir uma rede de água, até mesmo com ‘gatos’, do que uma rede de esgoto”, disse Nascimento. “É muito estrutural: não dá para acompanhar a expansão se não tiver planejamento urbano associado a essa questão”.

E ele não vê a escassez de água como um fator limitante do crescimento desordenado da cidade. “Não é limitante porque, inclusive, isso não é nem pensado”, afirma. “Você está pensando em abastecer as pessoas agora, mas o gestor imagina que daqui a pouco o problema vai passar porque as chuvas vão regularizar e, pronto, acabou o problema. Errado. Ninguém está preocupado se a cidade está crescendo de forma desordenada ou não. Porque esse é o problema essencial: é o crescimento desordenado da cidade”.

Essa expansão populacional, somada à forma como as desigualdades sociais se desenham no espaço urbano, acaba levando as pessoas para áreas periféricas, muitas vezes áreas preservadas no entorno de represas e mananciais. “Aí a gente cai numa situação como a da Represa Billings”, disse Nascimento, citando o grande reservatório da região do ABC paulista, e cujas margens são alvo, há anos, de ampla ocupação irregular. Em janeiro deste ano, a imprensa noticiou o início da formação de uma nova favela num trecho seco da represa.

A água da Billings apresenta vários tipos de contaminação e é, no geral, considerada imprópria para consumo, mas a Sabesp – Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – e o governo do Estado chegaram a cogitar extrair a água poluída da represa, submetendo-a a tratamento especial, como uma das formas de contornar a atual crise.

“Como se explica a Billings? É um problema gigantesco – e não por falta de soluções técnicas. O que aconteceu ali foi que, simplesmente, foi-se deixando a ocupação ocorrer. Os prefeitos jogam o problema para o governador, o governador joga para São Pedro, e por aí vai”, comentou. “O problema da Billings existe há anos. Tratar a questão da Billings como a salvação da pátria é uma desculpa, porque já se devia ter planejado isso muito antes. A questão é: por que não se pensou no longo prazo?”

Gestão

Nascimento faz questão de frisar que não é correto tratar a crise hídrica atual como uma “fatalidade”. “O discurso que foi feito para a sociedade, principalmente pelo governo paulista, é de que foi tudo uma fatalidade, que se de repente chover, o problema acaba”, criticou. “Qual a falácia desse discurso? Na verdade, se você analisar os dados de regime de chuvas e a questão dos reservatórios em São Paulo, você teve momentos muito bons de cheia, uns três anos muito tranquilos”, disse. “Costumo falar que o planejamento é feito na época de abundância, porque na escassez é o salve-se quem puder. Na crise você não vai planejar, vai tentar acudir. Esse é o problema.”

O pesquisador lembra que a Sabesp é uma empresa de capital aberto, com ações negociadas em bolsa, e que “a lógica do mercado é diferente da do setor público, porque tem de dar uma taxa de retorno para o investidor”. De acordo com ele, “essa lógica é incompatível com uma empresa cuja finalidade é pública”. “À medida que o setor público absorve os métodos de gestão privados, ocorre um choque de realidades. O privado é regido por resultados financeiros de curto e médio prazo, o setor público não, ele tem de garantir direitos ao cidadão”.

Ele cita o caso do advogado paulista que processou a Sabesp e obteve o direito de não ter sua água cortada em meio à crise de escassez. “O compromisso do setor público com o cidadão é fixado em lei”, disse o pesquisador. “Esse exemplo mostra a dificuldade de se fazer a gestão, nos moldes privados, de um bem público. Porque você tem que garantir isso, é um direito do cidadão”.

Além da contradição da empresa de capital aberto com mandado público, Nascimento aponta uma questão cultural: “O Brasil é um pouco assim, ele reage na crise. A gente não é previdente nesse sentido. Insisto: a questão da gestão dos recursos hídricos está colocada há algum tempo. É uma crise anunciada”.

Ele diz que é preciso combater a ideia de que o Brasil “é o país da abundância de água, abundância de florestas, abundância de terra”. “Isso não existe mais, acabaram-se esses mitos que a gente tinha”, afirma. “Essa ideia de que a gente pode usar e desperdiçar. O desperdício é antieconômico e antissocial”.

O combate ao desperdício passa por estratégias de gestão e, mais uma vez, o pesquisador vê conflito entre os objetivos públicos e privados. “Todos falam em usar métodos de gestão, mas gestão do quê? Porque gestão, por aqui, é do lado financeiro. Não é pensada, no caso do setor público, para uma finalidade mais ampla, para o atendimento final do usuário”.

Esse vício, diz ele, pode ser visto em vários sistemas de interesse coletivo, como de transporte, de saúde e de abastecimento de água. “A ideia de eficiência é usada no sentido de fazer caber no orçamento, não de prestar um bom serviço”.

Fonte – Carlos Orsi, jornal da Unicamp / IHU de 29 de abril de 2015

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