Por Jean Silva* - Jornal da USP - 1 de novembro de 2024 - Tucuruvi,…
‘O resíduo se renova, enquanto o catador se desgasta’
“Na medida em que os catadores e catadoras buscam a sobrevivência por meio da coleta de recicláveis, dando uma característica de mercadoria ou produto vendável a algo que não tinha mais valor, eles vivenciam nesse processo várias cargas de trabalho e desgaste da saúde física e mental”, constata a enfermeira.
“Embora o trabalho dos catadores seja enaltecido pelas vantagens ambientais que proporciona, tal discurso fica apenas no campo da retórica, em especial nos discursos midiáticos e políticos”, adverte Tanyse Galon, em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.
Autora da tese de doutorado “Do lixo à mercadoria, do trabalho ao desgaste: estudo do processo de trabalho e suas implicações na saúde de catadores de materiais recicláveis”, a enfermeira analisa o outro lado do trabalho desenvolvido a partir da reciclagem, o qual, embora traga vantagens para o meio ambiente, causa um impacto direto na saúde dos catadores de resíduos recicláveis, especialmente daqueles que estão no mercado informal, já que “apenas 10% dos catadores no Brasil” atuam em cooperativas.
Na avaliação dela, “tais trabalhadores estão reduzindo gastos dos municípios com o gerenciamento dos resíduos sólidos, promovendo lucratividade às indústrias de reciclagem e reduzindo impacto ambiental desencadeado pelos comportamentos de desperdício da sociedade, sem serem de fato reconhecidos enquanto trabalhadores”. Enquanto isso, ressalta, “as ações concretas voltadas para a saúde dos trabalhadores informais ainda são defasadas”.
Entre os problemas constatados em sua pesquisa, Tanyse chama atenção para os riscos à saúde aos quais os catadores estão submetidos, desde implicações osteomusculares, por conta do peso carregado nos carrinhos de mão, acidentes de trabalho envolvendo materiais perfurocortantes, até o contato com “animais mortos, vidros, agulhas e seringas contaminadas presentes nos resíduos urbanos”. De acordo com ela, a situação é agravada “pelo fato de a sociedade não separar ou descartar corretamente tais materiais”. O “descuido no descarte dos resíduos”, frisa, aumenta a propensão de os catadores adquirirem “doenças graves, dentre elas as hepatites, o HIV e tétano”.
Tanyse Galon é bacharel em Enfermagem pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – EERP/USP e doutora em Enfermagem pela USP. Atualmente é enfermeira no Hospital da USP / Ribeirão Preto.
IHU On-Line – Que considerações sua pesquisa “Do lixo à mercadoria, do trabalho ao desgaste: estudo do processo de trabalho e suas implicações na saúde de catadores de materiais recicláveis” faz acerca da saúde dos trabalhadores que trabalham com reciclagem?
Tanyse Galon – Como sintetiza o título do trabalho, os resultados da pesquisa mostraram que na medida em que os catadores e catadoras buscam a sobrevivência por meio da coleta de recicláveis, dando uma característica de mercadoria ou produto vendável a algo que não tinha mais valor (resíduos ou lixo), eles vivenciam nesse processo várias cargas de trabalho e desgaste da saúde física e mental. Ou seja, o resíduo se renova, enquanto o catador se desgasta. E, para entender a saúde dos trabalhadores, consideramos a importância de se compreender o entorno econômico, social, político e cultural que envolve nossa sociedade e que afeta o trabalho dos catadores, como, por exemplo, a cadeia produtiva da reciclagem, as políticas que envolvem o gerenciamento dos resíduos sólidos no Brasil, e a sociedade atual que se constitui como uma sociedade do consumismo e do desperdício, gerando exorbitantes produções de resíduos sem preocupações com as questões ambientais, sanitárias e sociais que tal comportamento pode gerar. Nesse sentido, a contradição se dá pelo fato de que os catadores estão desenvolvendo um papel do qual a sociedade e muitos municípios se isentam em participar ativamente, e ainda são desvalorizados por sua atividade promotora de preservação e renovação do meio ambiente.
IHU On-Line – Qual é o perfil dos catadores analisados na sua pesquisa? O que eles relatam sobre o processo de trabalho e que avaliações fazem desse processo?
Tanyse Galon – Na pesquisa que desenvolvemos, de abordagem qualitativa, foram entrevistados 23 catadores de materiais recicláveis de rua autônomos da cidade de Ribeirão Preto – SP, cujo perfil geral (dados sociodemográficos e ocupacionais) muito se assemelhou ao de outras pesquisas desenvolvidas no país, tanto de abordagem quantitativa quanto qualitativa. Grande parte dos catadores é composta de homens e mulheres adultos jovens, embora haja a presença de idosos atuando na atividade para complementar a renda da aposentadoria; pessoas com dependentes financeiros, sustentando suas famílias com a reciclagem; homens e mulheres oriundos de outras regiões, mostrando uma relação entre migração e trabalho informal; vários deles com imóvel alugado, o que aumenta as dificuldades financeiras; maioria com ensino fundamental incompleto, situação que dificulta a inserção no mercado formal de trabalho; histórico laboral de atividades pouco valorizadas (construção civil, trabalho doméstico); necessidade de conciliar a reciclagem com outras atividades laborais, considerando a renda com os recicláveis insuficiente; e por fim, a realização de um trabalho com horários flexíveis e com renda mensal muito variável, a depender da quantidade e qualidade dos materiais recicláveis coletados, além das oscilações de preço das empresas compradoras desses materiais.
IHU On-Line – A quais problemas de saúde eles estão expostos por conta das especificidades do tipo de trabalho que desenvolvem?
Tanyse Galon – Os problemas de saúde enfrentados pelos catadores em decorrência do seu contexto de trabalho são amplos, sendo que nosso estudo destacou: os problemas osteomusculares (dor na coluna e membros inferiores, câimbras, etc.) pelo peso carregado, deficiência de instrumentos laborais adequados e as longas distâncias percorridas em busca dos recicláveis; acidentes de trabalho envolvendo materiais perfurocortantes, picadas de animais peçonhentos (escorpião, etc.) e risco de atropelamento pelo trabalho nas ruas, com quedas e contusões; por fim, a ansiedade e o estresse, em decorrência da instabilidade da renda, do trabalho sem horário regular e delimitado, das vivências no trânsito com seus “carrinhos de mão”, e principalmente devido ao preconceito e desvalorização que sofrem, referindo que são comumente vistos como pessoas de má índole e não como trabalhadores de fato.
“Um dos catadores referiu transportar em torno de 980 kg por percurso de coleta, visto que, quanto mais material for encontrado, maior a renda adquirida”
IHU On-Line – Você menciona que os catadores de materiais recicláveis enfrentam cargas de trabalho biológicas, mecânicas, fisiológicas e psíquicas. Pode explicar cada uma delas?
Tanyse Galon – Dentro do referencial teórico que adotamos em nossa pesquisa, entende-se que as cargas de trabalho, geradas no interior do processo de trabalho (ou cotidiano laboral), são os elementos ali presentes que vão gerar desgaste da saúde dos trabalhadores, potencial ou estabelecido. Dentro das cargas de trabalho que os catadores enfrentam, destacamos:
1. Biológicas: contato com animais mortos, vidros, agulhas e seringas contaminadas presentes nos resíduos urbanos, situação que, segundo os trabalhadores, é agravada pelo fato de a sociedade não separar ou descartar corretamente tais materiais;
2. Mecânicas: risco de atropelamento no trânsito, sendo que os trabalhadores referiram que sua presença nas ruas com seus carrinhos carregados de recicláveis são vistos pelos demais como entraves ao funcionamento do tráfego, aumentando os riscos de queda e contusões graves;
3. Fisiológicas: o esforço físico pesado por carregarem grandes quantidades de materiais por longas distâncias. Um dos catadores referiu transportar em torno de 980 kg por percurso de coleta, visto que, quanto mais material for encontrado, maior a renda adquirida (renda por produção);
4. Psíquicas: preconceito e desvalorização que sofrem em seu cotidiano laboral, destacando que este foi o tema mais demandado pelos catadores dentre todos os demais. Os trabalhadores referiram que sua invisibilidade é comum, sendo que muitas pessoas “fecham os vidros do carro” ou “passam de longe”, evitando a presença dos catadores. Todo este quadro de cargas laborais é agravado pela falta de recursos de proteção, reconhecimento e valorização do trabalho que desenvolvem, ficando o catador sozinho em seu cotidiano laboral.
IHU On-Line – A que tipo de materiais os catadores ficam expostos e quais os riscos do contato com esses materiais à saúde?
Tanyse Galon – Relatos de exposição a vidros, agulhas e seringas, e até fetos humanos presentes nos resíduos urbanos mostram que ainda há um descuido no descarte dos resíduos e uma elevada propensão entre os catadores de adquirir doenças graves, dentre elas as hepatites, o HIV, tétano, entre outras. Tal situação mostra que o trabalho dos catadores nas ruas ainda apresenta-se muito precarizado, visto que os mesmos constantemente abrem sacos de lixo, desprovidos de luvas ou máscaras, sem saber ao certo o que encontrarão. Nesse sentido, muitos deles buscam fornecedores fixos de materiais recicláveis em lojas, supermercados, empresas, etc., com o objetivo de evitar o contato com tais materiais perigosos à saúde.
“Vidros, agulhas, seringas e até fetos humanos, mostram o descuido no descarte dos resíduos”
IHU On-Line – Como os problemas de saúde aos quais os trabalhadores são expostos são abordados na área de saúde no país atualmente?
Tanyse Galon – A Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora tem reconhecido a necessidade de ações de saúde voltadas também para as categorias laborais inseridas na informalidade, especialmente aquelas em condição altamente excluída, como é o caso dos catadores. Entretanto, observamos que as ações concretas voltadas para a saúde dos trabalhadores informais ainda são defasadas. Autores que investigam o mundo do trabalho têm apontado a heterogeneidade e complexidade do mundo laboral, que envolve a existência das diversas formas de trabalho flexível, dentre elas os subcontratados e os terceirizados, condições que afastam os trabalhadores dos direitos à saúde no trabalho e o descumprimento ou defasagem de leis trabalhistas que os protejam.
Entre os catadores entrevistados em nossa pesquisa, houve relatos de falta de recursos financeiros para adquirir equipamentos de proteção individual, além do fato de que buscam atendimento em serviços de saúde apenas quando consideram grave a sua condição. Alguns deles referiram que quando sofrem acidentes de trabalho, comumente prosseguem na coleta de recicláveis, trabalhando apesar de doentes, visto que não há garantia de renda ou afastamento remunerado por problema de saúde. Nesse sentido, muito deve ser feito pelos trabalhadores informais.
IHU On-Line – Existe alguma discussão nos hospitais sobre o desenvolvimento do trabalho de reciclagem de materiais usados nos próprios hospitais? Como o processo de reciclagem e implicações à saúde dos trabalhadores que são responsáveis pela reciclagem são abordados nos hospitais?
Tanyse Galon – Uma das exigências da Política Nacional de Resíduos Sólidos é que os estabelecimentos (empresas, indústrias, etc.) e as residências realizem a segregação dos resíduos (separando os materiais recicláveis), o que inclui os serviços de saúde. Os poderes locais (municípios) devem realizar todo o sistema de coleta seletiva, com centros de triagem e meios de transporte para coleta desses materiais recicláveis separados na fonte, levando-os para cooperativas de reciclagem, com a atuação prioritária dos catadores de materiais recicláveis, que devem ser incluídos nesse processo. Vários hospitais no país têm grupos internos voltados para essa questão, treinando as equipes a separarem os materiais recicláveis dos materiais perigosos à saúde e fazendo a destinação adequada.
Entretanto, os catadores ainda referem encontrar resíduos hospitalares nos sacos de lixo comum nas ruas, expondo-os a riscos importantes à saúde, o que evidencia a necessidade de maior investimento e conscientização tanto dos produtores de resíduos (sociedade), quanto dos serviços de saúde, que precisam aplicar de fato as políticas de gerenciamento dos resíduos produzidos.
IHU On-Line – Como se dá a improvisação dos instrumentos de trabalho entre os catadores?
Tanyse Galon – Por estarem inseridos em um trabalho informal e por apresentarem, em sua maioria, dificuldades socioeconômicas, os catadores comumente improvisam seus instrumentos de trabalho com materiais retirados dos próprios resíduos. Para formarem seus carrinhos de mão, eles utilizam peças de geladeira, grades, tábuas, barras de ferro, cabos de vassoura, bags (sacos grandes), tudo com o intuito de elaborarem tais veículos para transporte dos materiais, adaptando-os na medida em que as dificuldades e necessidades vão surgindo. O que ocorre é que muitos desses instrumentos não estão adequados à corporalidade e funcionalidade dos trabalhadores, o que gera inadaptações de ordem ergonômica, levando-os a problemas osteomusculares. Visando superar tais circunstâncias, muitos deles, na medida em que vão angariando maior renda, buscam adquirir veículos motorizados (peruas) ou de tração animal, com o intuito de reduzir a carga de trabalho e aumentar a renda adquirida. Porém, até chegarem nessa possibilidade, muitos deles já desenvolveram problemas de saúde.
“Os catadores comumente improvisam seus instrumentos de trabalho com materiais retirados dos próprios resíduos”
IHU On-Line – Diante das implicações à saúde e da condição de trabalho dos trabalhadores, que alternativas sugere em relação a esse tipo de trabalho, que hoje é de certo modo enaltecido pelas vantagens que traz ao meio ambiente?
Tanyse Galon – O que nos despertou a atenção durante o desenvolvimento da pesquisa foi o fato de que, embora o trabalho dos catadores seja enaltecido pelas vantagens ambientais que proporciona, tal discurso fica apenas no campo da retórica, em especial nos discursos midiáticos e políticos. Ainda falta muito a avançar em termos concretos. Os catadores, especialmente os que trabalham de forma autônoma nas ruas, ainda nos relatam que estão desprovidos de recursos laborais, de proteção à sua saúde e de uma renda digna e condizente com o benefício que promovem.
Tais trabalhadores estão reduzindo gastos dos municípios com o gerenciamento dos resíduos sólidos, promovendo lucratividade às indústrias de reciclagem e reduzindo impacto ambiental desencadeado pelos comportamentos de desperdício da sociedade, sem serem de fato reconhecidos enquanto trabalhadores. É claro que não podemos desconsiderar os ganhos que o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis – MNCR até aqui conquistou, resultando no reconhecimento da profissão na Classificação Brasileira de Ocupações – CBO e na criação de cooperativas de reciclagem ao redor do país, com melhores condições de trabalho e renda. Entretanto, apenas 10% dos catadores no Brasil atuam nessas cooperativas, sendo que muitas delas ainda apresentam falta de recursos para um funcionamento adequado. Nesse sentido, a mobilização dos municípios no cumprimento das políticas, considerando a inclusão socioeconômica dos catadores, e a atuação da sociedade no reconhecimento e valorização desses trabalhadores são questões importantes a serem desenvolvidas não apenas enquanto pauta de discussão, mas também resultando em ações concretas e transformadoras da realidade dos catadores.
Fonte – Patrícia Fachin, EcoDebate / IHU de 15 de maio de 2015
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