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Intoxicação por agrotóxico: “Os números são suficientemente alarmantes”

“Em 2005 o consumo médio de agrotóxicos era da ordem de 5 kg/hectare e, em 2011, passou a ser de 11 kg/hectare. Ou seja, em menos de uma década dobramos a quantidade de agrotóxicos utilizada no país”, informa a pesquisadora.

Em sete anos, 2.181 casos de crianças e adolescentes intoxicados por agrotóxicos foram notificados junto ao Ministério da Saúde, informa Larissa Mies Bombardi, em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail. Segundo a pesquisadora, que analisou esses dados em sua pesquisa de pós-doutorado, “nos estados do Centro-Sul do país, as crianças entre 1 e 4 anos respondem por mais de 30% dos casos. Em Mato Grosso e Minas Gerais, por exemplo, esta faixa etária (de 1 a 4 anos) responde por mais de 40% dos casos de intoxicação neste intervalo de 0 a 14 anos”.
Larissa conta que desde que iniciou suas investigações sobre os impactos do uso de agrotóxicos no país, tem percebido que “de 20 a 25% das intoxicações notificadas, ano após ano, diziam respeito a crianças e jovens, com idade de 0 a 19 anos”. Do total das intoxicações analisadas por ela, grande parte, explica, refere-se a “motivos acidentais (primeiro lugar no tipo de circunstância que envolveu a intoxicação para a faixa etária de 0 a 14 anos).

Entretanto, um dado muito assustador é que o segundo motivo no número de intoxicações notificadas para a faixa etária mencionada é o de suicídio, que se concentra entre adolescentes de 10 a 14 anos. Neste período, mais de 300 adolescentes entre 10 e 14 anos fizeram tentativa de suicídio através da ingestão de agrotóxicos de uso agrícola”. Para ela, esses dados demonstram que “estamos diante de uma forma de violência silenciosa ou de uma epidemia silenciosa provocada pelo modelo agrícola que o país vem adotando”.

Na entrevista a seguir, Larissa comenta os efeitos das intoxicações por agrotóxicos entre adultos e crianças e esclarece, especificamente, as implicações do Ingrediente Ativo Acefato, o quinto em número de vendas no Brasil.

Larissa Mies Bombardi é graduada em Geografia pela Universidade de São Paulo – USP, onde também cursou o mestrado e o doutorado. Atualmente é professora no Departamento de Geografia da USP.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que consiste seu estudo, o qual evidenciou que entre 2007 e 2014 foram notificadas 2.150 intoxicações somente na faixa etária entre 0 e 14 anos de idade, em todo o país?

Larissa Mies Bombardi – Este estudo refere-se ao desenvolvimento de meu Pós-Doutorado, que tem por temática a questão do uso de agrotóxicos no Brasil e seus impactos.

Durante o desenvolvimento dos mapeamentos que venho fazendo, passou a me chamar a atenção a quantidade de intoxicações entre crianças e jovens. Praticamente de 20 a 25% das intoxicações notificadas, ano após ano, diziam respeito a crianças e jovens, com idade de 0 a 19 anos. Assim, fui focando os mapas em faixas etárias ainda inferiores e pude constatar que neste período (2007 a 2014) houve 2.181 crianças e adolescentes com intoxicações notificadas junto ao Ministério da Saúde, com idade entre 0 e 14 anos. E, destas, nos estados do Centro-Sul do país, as crianças entre 1 e 4 anos respondem por mais de 30% dos casos. Em Mato Grosso e Minas Gerais, por exemplo, esta faixa etária (de 1 a 4 anos) responde por mais de 40% dos casos de intoxicação neste intervalo de 0 a 14 anos.

IHU On-Line – Esses casos de intoxicação ocorreram e ocorrem com mais frequência por quais razões? Pelo consumo de alimentos contaminados, por ingestão de agrotóxicos acidentalmente, pelo contato das crianças com as plantações? As intoxicações foram mais frequentes em crianças que residem no campo ou na cidade?

Larissa Mies Bombardi – Deste total, uma grande parte das intoxicações notificadas referem-se a motivos acidentais (primeiro lugar no tipo de circunstância que envolveu a intoxicação para a faixa etária de 0 a 14 anos). Entretanto, um dado muito assustador é que o segundo motivo no número de intoxicações notificadas para a faixa etária mencionada é o de suicídio, que se concentra entre adolescentes de 10 a 14 anos. Neste período, mais de 300 adolescentes entre 10 e 14 anos fizeram tentativa de suicídio através da ingestão de agrotóxicos de uso agrícola.

Outra informação importante é que a maior parte das crianças e adolescentes intoxicados tem a zona urbana como residência. Este fato, sem dúvida, está relacionado à enorme subnotificação dos casos de intoxicações por agrotóxico de uso agrícola.

Se atentarmos para os tipos de circunstância e focarmos naquela denominada pelo Ministério da Saúde como “acidental”, verificaremos que esta tem prevalência na zona urbana em relação à rural, o que leva à hipótese de que as crianças intoxicadas na zona rural estão envolvidas no universo do trabalho diretamente ou não, ou seja, pode ser que a própria criança trabalhe efetivamente ou que acompanhe os pais em suas jornadas de trabalho.

Outro dado alarmante refere-se à intoxicação através da ingestão de alimentos. No total, neste período, foram 54 crianças intoxicadas por agrotóxico de uso agrícola através do consumo de alimentos, dentre elas três bebês de menos de um ano. Com relação à zona de residência, 32 deste total habitam a zona urbana e 22 a zona rural.

Este número nos dá uma média de quatro crianças intoxicadas com agrotóxico de uso agrícola por ano através do consumo de alimentos. Penso que estes dados traduzem a gravidade da questão do uso de agrotóxicos no país.

“Estes dados traduzem a gravidade da questão do uso de agrotóxicos no país”

IHU On-Line – Como analisa esse dado de mais de 2.150 intoxicações registradas entre crianças dessa faixa etária? Que efeitos essas intoxicações causam nas crianças?

Larissa Mies Bombardi – Os efeitos de intoxicações por agrotóxicos sobre crianças são sempre mais nefastos do que sobre os adultos, por dois motivos básicos:

1. As crianças são organismos em crescimento e em formação;

2. O peso corpóreo das crianças é menor do que o dos adultos, o que significa que a mesma quantidade de ingrediente ativo da intoxicação (ingerido, inalado, ou por contato etc.) pode ter seu efeito ampliado.

Como exemplo, vale indicar a Nota Técnica da Anvisa sobre o Ingrediente Ativo “Acefato”, o quinto em número de vendas no Brasil, em seu processo de avaliação:

“Outro quadro neurológico grave, desencadeado por exposições aos OPs (Organo-fosforados, que é o caso do Acefato), foi identificado mais recentemente, e passou a ser conhecido como ‘síndrome intermediária’. A Síndrome Intermediária – SI caracteriza-se pela acentuada fraqueza dos músculos respiratórios e diminuição da força dos músculos do pescoço e das extremidades proximais dos membros. Esses sintomas aparecem algumas horas após o início dos sintomas de hiperestimulação colinérgica (intoxicação aguda). O comprometimento respiratório na SI, se não houver pronto atendimento em hospitais equipados com aparelhos de respiração assistida, pode levar à morte. (…) Outra questão preocupante é o fato de estudos experimentais sugerirem que crianças (organismos ainda em desenvolvimento) possam ser mais vulneráveis aos efeitos de OPs. Há indícios claros de que a exposição contínua de animais em fase de desenvolvimento a baixas doses de OPs pode afetar adversamente o crescimento e a maturação.”

Entretanto, em que pese o teor da avaliação deste Ingrediente Ativo, Acefato, em Diário Oficial da União de 04/10/2013, verifica-se que a decisão foi por manter a autorização do Acefato nas culturas de amendoim, algodão, batata, brócolis, citros, couve, couve-flor, feijão, melão, repolho, soja e tomate para fins industriais, com a diferença que, a partir de então, este ingrediente ativo passou a ser exclusivamente de aplicação por meio de equipamentos mecanizados.

IHU On-Line – Outro dado demonstra que ocorrem em média 5.600 intoxicações por ano. Como interpreta esse dado?

Larissa Mies Bombardi – Estes números já revelam um quadro gravíssimo. Cheguei a eles a partir do banco de dados da Fiocruz, mapeando as intoxicações durante um período de 11 anos (1999 a 2009). Considerando este número de intoxicações notificadas, 5.600 por ano, significa que tivemos 62.000 intoxicações no período, ou 15 intoxicações por dia, ou uma a cada 90 minutos.

Estes números por si só já são suficientemente alarmantes, entretanto a própria Fiocruz estima que, para cada intoxicação notificada, tenhamos 50 outras não notificadas.

Isto significa que estamos diante de uma forma de violência silenciosa ou de uma epidemia silenciosa provocada pelo modelo agrícola que o país vem adotando.

IHU On-Line – Por quais razões as notificações de intoxicação por agrotóxicos ainda são pouco notificadas no serviço de saúde?

Larissa Mies Bombardi – Por algumas razões, dentre elas, destacam-se: acesso distante e difícil dos camponeses e trabalhadores rurais em relação aos centros de saúde, falta de preparo dos profissionais de saúde para lidar com os quadros de intoxicação por agrotóxico e, também, uma prática da população em não buscar o serviço de saúde em quadros de intoxicação “leve”, mas que, no entanto, levam a problemas crônicos de saúde — tal prática é perpetrada por mensagens subliminares que fazem supor a baixa toxicidade dos agrotóxicos.

“A agricultura agroecológica, por exemplo, pode ser tão ou mais produtiva que a agricultura convencional”

IHU On-Line – Como se dá a intoxicação por agrotóxico no uso agrícola? Quais são os casos mais recorrentes que tem registrado em suas pesquisas?

Larissa Mies Bombardi – Segundo a classificação da Anvisa sobre as circunstâncias que levaram às intoxicações notificadas para o período de 2007 a 2014, o maior número de notificações está relacionado à tentativa de suicídio, em segundo lugar a fatos acidentais, em terceiro lugar ao uso habitual e, em quarto lugar, a intoxicações ambientais.

Estes dados são gerais, para o país todo, com especificidades regionais e estaduais. Entretanto, a tentativa de suicídio ocupa mais de 40% do total das intoxicações notificadas. Só no ano de 2013 foram 1.796 tentativas de suicídio com agrotóxicos de uso agrícola notificadas. Isto significa que, a cada dia, praticamente cinco pessoas no país tentaram suicídio com ingestão de agrotóxicos.

O entendimento da envergadura destes números nos leva a pelo menos duas explicações: a primeira é que o número de subnotificações em geral é tão grande, que estes casos de tentativa de suicídio (devido à gravidade e toda a questão formal/jurídica que eles envolvem) tomam uma proporção gigantesca no universo de notificações. A segunda é que há uma conexão clara (em estudos realizados no Brasil e no exterior) entre a exposição crônica a alguns tipos de agrotóxicos e neuropatias decorrentes desta exposição, que podem levar o camponês ou o trabalhador rural à tentativa de suicídio.

De toda forma, observa-se, pelo restante dos dados mencionados anteriormente (excetuando-se o número de tentativas de suicídio), que a questão laboral está no centro das intoxicações por agrotóxicos de uso agrícola.

IHU On-Line – Quais são os casos mais problemáticos do uso de agrotóxicos na agricultura?

Larissa Mies Bombardi – Entendo que o que há de muito problemático é o fato de termos um modelo agrícola que privilegia a exportação e a produção de agrocombustíveis, em detrimento de um projeto de soberania alimentar. Desta forma, vamos acompanhando ano após ano a diminuição da produção de arroz e feijão, por exemplo, que respectivamente ocupavam 3,2 e 4,3 milhões de hectares em 2002 e passaram a ocupar 2,8 e 3,7 milhões de hectares em 2011. Por outro lado, vemos um aumento vertiginoso da produção de grãos (particularmente milho e soja) e cana-de-açúcar. A soja partiu de 16,4 milhões de hectares em 2002 para 22,7 milhões de hectares em 2011, e a cana, neste mesmo período, de 5,2 milhões de hectares para 11 milhões de hectares.

Se observarmos o uso de agrotóxicos por cultivo (valores referentes às vendas de agrotóxicos), podemos verificar que em 2009 a soja ocupava o primeiro lugar com 47%, o milho em segundo lugar com 11,4% e a cana em terceiro lugar com 8,2%.

Deve-se ressaltar ainda que, com a liberação das sementes transgênicas OGMs (Organismos Geneticamente Modificados), que em boa parte dos casos trata-se de sementes tolerantes ao Glifosato (o Ingrediente Ativo mais vendido no Brasil), vivenciamos um aumento muito significativo do uso de agrotóxicos. Em 2005 o consumo médio de agrotóxicos era da ordem de 5 kg/hectare e, em 2011, passou a ser de 11 kg/hectare. Ou seja, em menos de uma década dobramos a quantidade de agrotóxicos utilizada no país.

“Estamos diante de dois modelos que ‘aparentemente’ dizem respeito à produção de alimentos: um deles em que realmente se trata de produção de alimentos, e outro em que se trata da produção de commodities e energia”

IHU On-Line – É possível desenvolver uma agricultura sem o uso de agrotóxicos? Quais as vantagens e desvantagens desse tipo de agricultura?

Larissa Mies Bombardi – Sim, é perfeitamente possível desenvolver agricultura sem o uso de agrotóxicos, afinal, a humanidade chegou até os anos 50 do século passado sem este tipo de uso. A justificativa para o uso massivo de agrotóxicos na agricultura, desde o final da II Guerra Mundial, tem sido de que esta é a resposta para o problema da fome no mundo: a produtividade resolverá a fome. Entretanto, passado mais de meio século, um terço da humanidade permanece na miséria, muito embora a produção de alimentos tenha aumentado exponencialmente. O problema da fome é uma questão de acesso à terra e distribuição de renda, como já apontara Josué de Castro na década de 60 do século passado. O que está em questão, portanto, é aquilo em que o alimento se tornou. O alimento tem se tornado uma mercadoria como outra qualquer para ser comercializada nas Bolsas de Mercadorias e Futuros e, também, tem se transformado em energia.

A agricultura agroecológica, por exemplo, pode ser tão ou mais produtiva que a agricultura convencional. Entretanto, esta demanda bastante trabalho humano, em virtude de um manejo frequente que está relacionado à adaptação dos cultivos aos aspectos da natureza, entre outros fatores, além de envolver o bem-estar dos camponeses que a praticam. O fato de este tipo de agricultura demandar intenso trabalho humano torna-a inviável do ponto de vista de um empreendimento capitalista, ou seja, aquele que se mantém através da exploração do trabalho assalariado.

Assim, estamos diante de dois modelos que “aparentemente” dizem respeito à produção de alimentos: um deles em que realmente se trata de produção de alimentos, e outro em que se trata da produção de commodities e energia.

Por Patricia Fachin

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