Por Ellen Nemitz · ECO - 18 de dezembro de 2024 - Câmara ressuscitou “jabutis” da…
Os portões do desmatamento
Bois no curral de um frigorífico. Foto: Fabio Nascimento
Os satélites são cronistas mecânicos do processo de desmatamento da floresta Amazônica. Ao vasculhar e documentar através dos anos a degradação e os vazios criados pelo corte raso da mata, firmam um veredito: dois terços da área desmatada virou pasto. No chão, a contagem do gado mostra que a Amazônia é território mais de boi do que de gente. Em 2016, a quantidade de gado na região chegou a 85 milhões de cabeças, em comparação a uma população humana de 25 milhões de habitantes — mais de três bois por pessoa. No município de São Félix do Xingu, que contém o maior rebanho do país, essa proporção chega a 18 para 1.
Os números amazônicos costumam ser imensos. A Amazônia Legal abrange 61% do território do Brasil e contém 40% do rebanho nacional. O gado é mantido em cerca de 400 mil fazendas espalhadas pela região, com tamanhos que variam de alguns poucos até dezenas de milhares de hectares. Então, quando a ONG Imazon terminou um novo e detalhado levantamento sobre os frigoríficos da região, a grande surpresa foi encontrar um número pequeno: apenas 128 instalações de frigoríficos ativos, pertencentes a 99 empresas, são responsáveis por 93% do abate anual, algo como 12 milhões de cabeças de gado.
“Se entre 2016 e 2018 a taxa de desmatamento recente se repetir, 90% das novas perdas de floresta estarão dentro da área de influência de compra de 128 frigoríficos”
Já era sabido que os frigoríficos são o gargalo da cadeia de criação do gado. Mas o levantamento do Imazon é inédito porque revelou a geografia da pecuária na Amazônia, vista pela zona de influência destes pouco mais de cem abatedouros. Para se ter uma ideia, ocupar a capacidade de abate anual de um único frigorífico de grande porte demanda uma área de pasto de quase 600 mil hectares, três vezes maior do que o município de São Paulo. O conjunto de frigoríficos analisados no estudo, operando a plena capacidade, demandaria uma área de pasto de 68 milhões de hectares (maior do que o estado de Minas Gerais). Essa quantidade supera a soma dos pastos hoje existentes na região, indicando que o futuro da atividade gerará mais desmatamento.
Esses resultados reforçam o acerto de um processo em curso. Desde 2009, com início no Pará, o Ministério Público Federal pressiona os frigoríficos da região a assinar o chamado TAC da Carne. TAC é abreviação de Termo de Ajuste de Conduta, uma espécie de contrato entre o MPF e cada frigorífico que o assina, o qual passa a ser obrigado a fiscalizar a origem do gado que compra para barrar o “boi de desmatamento”.
Paulo Barreto, pesquisador do Imazon que liderou o estudo, compara: “é como se para conversar sobre o problema, houvesse duas opções, reunir num auditório os representantes destas cem empresas frigoríficas ou, como alternativa, alugar cinco estádios como o Maracanã para colocar todos os fazendeiros envolvidos na criação do gado”.
Risco de desmatamento
Imagem de satélite do Frigorífico JBS, em Santana do Araguaia, Pará. Fonte: Google Earth
A análise que detalhou a influência de tão poucos frigoríficos sobre quase todo o rebanho amazônico envolveu trabalho de detetive e tecnologia de geoprocessamento. A primeira etapa foi obter os endereços de todos os frigoríficos de maior porte e confirmá-los usando imagens de satélite de alta definição, para verificar se naqueles locais havia instalações típicas da atividade, como currais e tanques de tratamento de água.
A partir daí, os pesquisadores queriam responder a pergunta: qual era a zona potencial de compra de cada frigorífico? E dois, como essa zona potencial se relaciona com as áreas já desmatadas e as que estão sob maior risco de desmatamento no futuro próximo?
O primeiro passo era descobrir a distância máxima que cada frigorífico alcançava nas compras de gado. Isso foi feito através de entrevistas telefônicas com os gerentes de frigoríficos e cruzamentos de dados. Havia casos curiosos, como um frigorífico no Acre, que não adquiria boi mais longe do que a 20 km das suas portas, e, no extremo oposto, no Amazonas, havia outro que comprava a mais de 1.000 km de distância, indo até Roraima, para compensar a falta de gado na sua região na época da seca.
“O somatório das regiões de influência dos 128 frigoríficos analisados abrange a quase totalidade das áreas embargadas pelo Ibama e 88% do desmatamento ocorrido na Amazônia entre 2010 e 2015”
O estudo lidou com duas categorias de frigoríficos, aqueles que têm licença SIE (Sistema de Inspeção Estadual), que podem vender carne nos seus estados, e SIF (Sistema de Inspeção Federal), que podem vender no país todo e exportar. Em média, frigoríficos com licenças estaduais têm capacidade para abater 180 animais por dia e compram de fazendas que podem estar a até 153 km de distância. Os frigoríficos com licença nacional abatem 700 animais/dia e vão buscá-los a uma distância que chega a 360 km.
Baseado nas distâncias máximas, o segundo passo era estabelecer a área potencial de compra dos frigoríficos. Hora de voltar à tecnologia geoespacial. “O Imazon tem um mapeamento completo de estradas oficiais e informais na Amazônia, uma base que vem sendo atualizada desde 2008”, conta Amintas Brandão Jr., outro dos autores do estudo. “Rodamos uma análise espacial em que você insere no software as coordenadas do frigorífico e a distância máxima que ele compra, digamos, 100 km. Daí, o software sozinho percorre todas as estradas e rios navegáveis acessíveis àquele frigorífico até atingir os tais 100 km. Assim, conseguimos delinear uma zona potencial de compra”. Segundo Brandão, o diferencial do trabalho foi este, estabelecer a área de influência de cada frigorífico usando a rede de infraestrutura, a malha de estradas e rios navegáveis por onde o gado pode ser transportado.
O somatório das regiões de influência dos 128 frigoríficos analisados abrange a quase totalidade das áreas embargadas pelo Ibama e 88% do desmatamento ocorrido na Amazônia entre 2010 e 2015.
Desmatamento futuro
O estudo gerou uma previsão de onde estarão as próximas áreas desmatadas na Amazônia. De novo, os pesquisadores recorreram aos softwares de análise geoespacial. Eles dividiram a Amazônia Legal em quadrados com 1 km de lado. Para cada um deles, foi estimada a probabilidade de desmatamento baseada na presença de fatores que o estimulam, como disponibilidade de transporte por estrada ou rio, distância até mercados e potencial da terra. Criaram, assim, um mapa de probabilidade de desmatamento para toda a Amazônia Legal. Usaram a área desmatada nos três anos anteriores, 1,7 milhão de hectares (17 mil km2), como estimativa do total de desmatamento que poderá ocorrer no triênio 2016 a 2018. Em seguida, a partir do mapa de probabilidades, determinaram quais são as áreas com maior chance de ocorrência de novos desmatamentos. A última etapa foi sobrepôr as zonas de influência de compras dos frigoríficos. A coincidência entre as duas áreas foi de 90%.
Em outras palavras, se entre 2016 e 2018 a taxa de desmatamento recente se repetir, 90% das novas perdas de floresta estarão dentro da área de influência de compra de 128 frigoríficos.
Consequências
“Da perspectiva da fiscalização, o trabalho pode ajudar no controle do desmatamento mostrando onde estão os ‘hot spots’, os pontos onde há mais floresta e/ou chance de desmatamento”, diz Brandão.
Para Barreto, “chama atenção como um número pequeno de empresas está no fim da cadeia que envolve quase 400 mil pecuaristas”. Segundo ele, isso confirma que está certo o caminho de envolver os frigoríficos na fiscalização do desmatamento, como obrigam os acordos com o MPF. Mas destaca que 30% do abate é feito por frigoríficos que não assinaram acordos. Isso significa que não fiscalizam a origem dos seus bois. Pior, esses frigoríficos estão na mesma área de atuação daqueles que assinaram os acordos e, assim, se tornam alternativas para a venda de gado criado em pastos abertos ilegalmente.
O estudo do Imazon criou um panorama detalhado da influência que os frigoríficos podem ter sobre o desmatamento. “Já temos um mapa, as tecnologias estão disponíveis para rastrear o gado da sua origem até o local de abate”, diz Barreto. “Falta agora uma pressão consistente e punições para criadores e frigoríficos que compactuam com crimes ambientais”. Ele diz que isso aconteceu no caso da febre aftosa, quando o setor percebeu que perderia os mercados mundiais se não fosse feito um programa efetivo de vacinação. A pressão do mercado funcionou para os fazendeiros se organizarem e firmarem parcerias com o governo. Para Barreto, um bom começo seria uma nova rodada de aperto sobre o setor liderada pelo MPF e pelo Ibama.
O Brasil alcançou um bom controle de febre aftosa, um feito e tanto. Se quiser, pode fazer o mesmo para acabar com a pecuária que derruba floresta. Será um enorme passo rumo ao desmatamento zero na Amazônia.
Fonte – Eduardo Pegurier, O Eco de 19 de julho de 2017
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