Por Ellen Nemitz · ECO - 18 de dezembro de 2024 - Câmara ressuscitou “jabutis” da…
Açúcar, um alimento com o futuro sob suspeita
Açúcar produzido em uma refinaria na Rússia. GETTY
Setor responde com novos produtos à rejeição dos consumidores
Ele é um dos primeiros motores do comércio global e origem de um sangrento legado de exploração. Durante décadas apreciado e vilipendiado em partes iguais, seu caráter viciante preocupa as autoridades de saúde pública por seus efeitos na qualidade e na expectativa de vida da população. Uma indústria gigantesca edificada sobre um produto cada vez mais questionado pelos consumidores e os Governos por seus efeitos à saúde. Poderíamos estar falando do tabaco, mas não. Os especialistas avisam que o açúcar, uma indústria que em 2015 realizou exportações no valor de 20 bilhões de euros (74 bilhões de reais), segue o mesmo caminho.
“O açúcar é o tabaco do século XXI”, afirma Henk Grootveld, chefe de tendências de investimento do Robeco e gestor de contas. “A situação da indústria de alimentos e bebidas açucaradas é comparável à indústria tabagista no ano 2000, na medida que os consumidores se tornam mais e mais conscientes dos efeitos de seu excesso na saúde”. “O distanciamento dos consumidores já é uma tendência global”, diz Nick Fereday, analista do Rabobank. “É algo muito sério para indústria e não se pode desejar que desapareça ou menosprezá-lo como uma moda passageira”.
Porque nosso corpo precisa de um açúcar, mas não da sacarose (o nome científico do açúcar refinado), mas da glicose. “É um dos combustíveis fundamentais ao nosso organismo. Nossos músculos, nosso cérebro e outros órgãos precisam de glicose para funcionar”, afirma um estudo do banco de investimentos Robeco sobre o setor açucareiro publicado recentemente. “Comer alimentos que contêm muito açúcar e colocá-lo na comida é como lançar combustível ao fogo. Mas nosso corpo, graças a todas as bactérias em nosso aparelho digestivo, está mais do que equipado para extrair glicose de quase tudo o que comemos”. E dispara: “Está claro que, hoje, os legisladores não estão preparados para ver o açúcar como um ingrediente viciante e tóxico, como o álcool pode ser. Talvez o grito de alerta dos políticos ocorra quando chegar a conta da epidemia de obesidade”.
Porque é uma epidemia, declarada como tal pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2003. Em 2014, 1,9 bilhão de adultos tinham sobrepeso; 600 milhões estavam obesos. Desde 1980, a porcentagem da população mundial com a doença duplicou.
Um relatório da Morgan Stanley de março de 2015 chamado O Amargo Retrogosto do Açúcar alerta sobre as consequências econômicas da epidemia e afirma que, se medidas não forem tomadas, os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) perderão entre 15% e 20% de sua produtividade até 2035. “Os países que enfrentam as maiores perdas econômicas são aqueles onde a predominância de doenças relacionadas à obesidade e o consumo de açúcar já é alta”, diz o relatório, que coloca o Chile e o México entre os países em maior risco.
“Nossas simulações mostram que uma força de trabalho reduzida e menos produtiva, seja por mortes prematuras, inatividade forçada e pior rendimento no trabalho, pode afetar de maneira significativa o crescimento econômico, particularmente em setores intensivos em mão de obra como o dos serviços”, diz o documento. “Nosso modelo também sugere que pequenas mudanças na dieta podem trazer benefícios significativos a longo prazo; o progresso sustentável, entretanto, só será obtido por uma melhor compreensão por parte da população dos dois lados do desequilíbrio calórico: consumo e gasto”.
A indústria se defende
A indústria, por sua vez, continua mantendo a mesma posição que tem há décadas. “O problema não é o açúcar, são os excessos”, afirma Rafael Urrialde, chefe de Saúde da Coca-Cola Espanha. “O açúcar é um alimento como outro qualquer e inúmeros alimentos o contêm. Se o consumo não é equilibrado, pode fazer muito mal”.
Desde os anos sessenta, os estudos científicos insistiram na redução do consumo de gorduras para se evitar problemas de saúde. Mas isso mudou. “A tradição britânica de comer ovos no café da manhã não é uma ideia tão ruim afinal de contas”, diz o relatório do Robeco. “Enche o estômago, diminui o apetite por mais tempo e aumenta nossa glicose no sangue a um prazo mais longo”.
Luis Tinoco
O verdadeiro problema do açúcar na dieta não vem em colheradas. Aproximadamente 80% do açúcar consumido nos mercados desenvolvidos é destinado a diferentes alimentos industrializados, não só por sua capacidade de melhorar o sabor da comida, mas porque é um conservante que aumenta a quantidade de tempo que um produto pode ficar nas prateleiras.
A pressão dos consumidores está obrigando as empresas a buscarem alternativas. “Tirando os exageros dos que colocam as mãos na cabeça, o que temos agora é talvez um público mais maduro”, reconhece um especialista ligado à indústria açucareira. “Veremos uma demanda muito forte por produtos orgânicos e inovadores”, diz Grootveld.
Em alguns casos, essas soluções são tecnológicas. A startup israelense DouxMatox, fundada em 2014, desenvolveu uma forma de recristalizar o açúcar de forma que tenha o mesmo efeito adoçante utilizando uma quantidade menor, e promete colocá-la à venda na segunda metade de 2018. Em novembro, a Nestlé anunciou o desenvolvimento de um produto semelhante.
Mas, a curto prazo, a alternativa é reduzir as quantidades de açúcar, seja incorporando menos aos alimentos, seja reduzindo as porções e, principalmente, diversificando os catálogos para incorporar elementos menos doces e sem o edulcorante. “Eu acho que as grandes empresas prestaram muita atenção na reação das empresas tabagistas”, afirma Grootveld. “Mudaram para outros adoçantes. É algo parecido ao que ocorreu nos anos oitenta quando as pessoas reagiram em relação à gordura”.
Pelo menos publicamente, os esforços existem. “É óbvio que o açúcar é um ingrediente importante na composição de nossos produtos”, afirma um comunicado da Associação Espanhola do Doce. “Mas não é o único e nem o mais importante de acordo com a categoria de produtos examinada”. A própria Nestléadotou em 2007 uma política de redução de açúcar que, segundo a empresa, permitiu a economia de 36.000 toneladas do produto desde então.
Mas o setor com mais interesse em se reorientar é o das bebidas açucaradas, especialmente depois de em 2016 a OMS pedir publicamente que fossem taxadas com um imposto. “Os Governos (…) podem reduzir o sofrimento e salvar vidas”, afirmou à época Douglas Bettcher, diretor do órgão para doenças não contagiosas. Vários países, dentre os quais o México e Portugal, decidiram aplicar uma taxa. Na Catalunha, desde maio existe um imposto de 8 a 12 centavos de euro por cada 100 mililitros.
Tudo isso sob os protestos da indústria, que menciona suas próprias medidas tomadas. “Há anos reduzimos o açúcar em todos os nossos produtos”, diz Urrialde. “O conteúdo caiu em 38%, e em alguns casos chega a ser de 80% do total. Nossa ideia é reduzi-lo à metade; em alguns produtos não é possível oferecer uma alternativa, em outros é possível perder mais de 60%. 41% de nossas vendas já são de produtos sem açúcar e com açúcar reduzido; em alguns anos, serão a metade”. “Um dos nossos objetivos para 2025 é fazer com que dois terços de nossa gama global de bebidas tenham 100 calorias ou menos açúcares acrescentados por cada lata de um terço de litro”, afirma um porta-voz da Pepsico.
Reeducação
Nos Estados Unidos, os consumidores tendem a migrar das bebidas gaseificadas aos sucos de frutas e ao chá gelado, mas o relatório da Robeco alerta: “Se isso ocorreu pela consciência dos consumidores com relação ao açúcar, provavelmente seja necessária uma mudança na educação, pois os sucos e o chá gelado podem conter tanto açúcar quanto um refrigerante normal.”
As tendências estão mudando, mas é difícil quantificar seu impacto na indústria porque não se sabe realmente quanto açúcar é ingerido. Como explica o relatório Sweetness and Lite, publicado no início do mês pelo banco holandês Rabobank, “não há ninguém que meça realmente o consumo de açúcar. O consumo é o que fica quando se aplicam ao balanço global outros elementos mais fáceis de medir, como a produção, as exportações, as importações e os estoques. De fato, o termo ‘desaparecimento’, utilizado por alguns analistas, é o mais preciso”.
A previsão é que a produção mundial de açúcar para as colheitas de 2017-2018 seja de cerca de 180 milhões de toneladas, um recorde histórico, segundo o Ministério da Agricultura dos EUA. Um potente motor dessa marca foi uma mudança radical na política agrícola da União Europeia: pela primeira vez, a produção açucareira do bloco (majoritariamente de beterraba) não está sujeita a nenhuma restrição ou cota, o que faz com que as exportações europeias de açúcar possam aumentar de 1,5 milhão de toneladas para mais de 2 milhões. O objetivo da supressão de cotas, segundo a Comissão Europeia, é conseguir “um setor mais competitivo” dentro de uma “política agrícola comum mais orientada às necessidades do mercado”.
Mas o mercado, neste momento, não precisa de mais açúcar. No início da década, os preços caíram por causa do excesso na oferta: o chamado contrato número 11 , a referência do mercado de futuros, passou de 35 centavos de dólar a libra (454 gramas) em 2011 para pouco mais de 10 em 2015. Um breve aumento em 2016 deu esperança aos mercados, mas eles voltaram a cair, girando em torno de 13 centavos por libra.
Incerteza
Isso tem a ver com a mudança dos perfis de demanda? “É difícil encontrar dados, mas parece que o consumo de açúcar chegou ao máximo nos mercados ocidentais”, afirma a Robeco. “Na América do Norte, caiu sete quilos entre 2001 e 2011.” Questionadas sobre a potencial evolução, fontes do setor afirmam: “Não está claro se a demanda cairá. Inclusive pode ser que haja um pouco de escassez se os preços do petróleo continuarem em alta.” Os 38 milhões de toneladas de açúcar armazenados em todo o planeta também são um fator que ajuda a manter os preços baixos.
A chave do otimismo do setor está nos países emergentes, em especial na Ásia: culturas onde o açúcar nunca foi uma parte importante do consumo diária até agora. “Ao que parece, a dieta ocidental continua sendo uma aspiração para as novas classes médias nos mercados emergentes”, diz o Morgan Stanley. “As diferenças no consumo por pessoa entre o mundo desenvolvido e o emergente continuarão diminuindo, sem chegar a convergir.”
De fato, todas as regiões do mundo, com exceção da Ásia Oriental e da África Ocidental, superam a recomendação da OMS de que os açúcares adicionados não representem mais de 10% das calorias diárias consumidas. Ainda assim, segundo um estudo da OCDE sobre as consequências no mercado da queda da demanda açucareira, se esse limite fosse aplicado durante cinco anos, a demanda global cairia 12% e os preços, 25%. Esse mesmo documento afirma que países como o Brasil e os EUA seriam os que mais teriam de reduzir a produção. Por outro lado, o relatório informa que isso não afetaria o equilíbrio dos demais produtos agroalimentares. “Em alguns países, os produtos finais seriam substituídos por outros mais rentáveis, como o bioetanol no Brasil, ou por outros cultivos, como as oleaginosas.”
Por isso, os analistas consideram que, aconteça o que acontecer, por enquanto o consumo de açúcar não vai diminuir. “É improvável que estejamos falando de uma tendência de queda no longo prazo. O mercado continuará crescendo, mas devagar do que antes, mas crescendo de todo jeito”, afirma o relatório do Rabobank.
Fonte – Thiago Ferrer Morini, El País de 20 de agosto de 2017
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