Por Ellen Nemitz · ECO - 18 de dezembro de 2024 - Câmara ressuscitou “jabutis” da…
Negacionismo: O Falso Galileo – Parte II: “Democracia” e Chantagem
Galileo Galilei (1564-1642) sofreu a fúria da Inquisição por sustentar um ponto de vista baseado em evidências contra os que queriam negá-las. Quem é Galileo na guerra do clima, afinal?
Talvez a frase que os negacionistas gostem de usar para o autoelogio seja “em questões de ciência, a autoridade de milhares não vale o humilde raciocínio de um único indivíduo”, mas além de tirada de seu contexto, há indícios de que não seja uma tradução tão boa quanto “nas ciências, a autoridade de milhares de opiniões não vale tanto quanto uma pequena centelha de razão de um único homem”, num contexto em que Galileo defendia justamente que a balança da verdade sempre penderia para o lado em que estivessem as evidências e não opiniões desprovidas de fundamento e não testadas. Ora, no texto anterior (Parte I), mostramos que o discurso negacionista está em flagrante contradição com a história do desenvolvimento científico que conduziu até o surgimento da Ciência do Clima em seu estágio atual. Além disso, recuperamos a informação de que o negacionismo é produto de uma intervenção consciente da indústria petroquímica e de setores ultraconservadores, que a partir de uma tática maliciosa produziram os seus fiéis “mercadores da dúvida” . Resta-nos, portanto, abordar um par de questões relevantes sobre o tema: primeiro, como o negacionismo tem se multiplicado nas redes e segundo, porque se constitui em um grave erro admitir negacionistas no debate público como uma “outra opinião” ou uma “visão alternativa”.
Em meio à câmara de ecos
As redes sociais criaram um ambiente único, sem precedentes, nos quais a possibilidade de produção e replicação de informação se multiplicou imensamente, seja ela fundamentada ou não na realidade, baseada ou não em abordagem honesta etc. Atribui-se ao ministro da propaganda de Hitler, Joseph Goebbels, a frase “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”, o que nos deixa a imaginar o que ele diria se a mentira pudesse ser repetida não mil mas milhões de vezes…
O célebre tweet de Trump dizendo que o aquecimento global foi “criado pelos chineses” para atrapalhar a indústria dos EUA
O que acontece, portanto, é que na era das redes sociais, o negacionismo voltou a ganhar fôlego. Como em outras bizarrices (“Terra plana”, “nazismo de esquerda” etc.), as redes terminam servindo de câmara de eco. Isso afasta, portanto, o público da arena dos verdadeiros debates que deveriam estar sendo feitos: de contenção das emissões, ou seja, de mitigação, e de como preparar melhor a sociedade para lidar com riscos e impactos, reduzindo a vulnerabilidade, ou seja, adaptação. Ao semearem confusão, os negacionistas cumprem o papel deletério que desde o seu nascedouro, nas conspirações travadas por grupos ultraconservadores com participação da indústria fóssil, sempre lhe coube: manter a sociedade presa a falsos debates, travar as ações e soluções. E na medida em que grupos dessa ultradireita em ascensão se apropriam do discurso negacionista (o que inclui além de Trump e da “alt-right” nos EUA, os neonazistas alemães do AfD e grupos como a TFP no Brasil), eles o amplificam e o misturam a discursos de ódio, racismo e xenofobia.
20 minutos de um festival de mentiras e baboseiras anticiência é o melhor resumo deste vídeo. Desinformativo, deseducativo, teve mais de um milhão de visualizações na versão de maior audiência no YouTube.
Aqui no Brasil, a mais famosa entrevista de um negacionista na TV, concedida pelo Sr. Ricardo Felício a Jô Soares, aparece em vários arquivos no YouTube, sendo que uma das versões possui mais de um milhão de visualizações. Tendo travado contato com esse filão, o mesmo sujeito aparece sendo entrevistado em canais da ultradireita política contabilizando centenas de milhares de visualizações em vários desses vídeos. Molion também recebeu um número grande de visualizações nessa mesma rede social, com pelo menos 16 vídeos tendo sido assistidos por algo entre 10 mil e 100 mil pessoas cada um. Que não se subestime o estrago que isso pode fazer, especialmente quando cientistas de conduta, produtividade e competência num patamar infinitamente superior como Paulo Artaxo e Carlos Nobre não gozam de uma popularidade minimamente comparável nas redes. Ai se não fossem divulgadores científicos como Pirula, por exemplo.
A recusa em aceitar uma realidade ruim é uma reação comum. Mas o correto é trabalhar para superá-la. A exploração dessa reação é um dos traços gritantes de má fé do negacionismo.
E ao sabotar os verdadeiros debates, o negacionismo se revela particularmente nocivo por dois motivos. Primeiro, por conta da urgência. Com 404 ppm de CO₂ na atmosfera, o único cenário que mantém o sistema climático minimamente sob controle, isto é, dentro do intervalo previsto no Acordo de Paris, implica em, no mais tardar em 2020, começarmos a reduzir aceleradamente as emissões. Segundo, por conta da injustiça: mudança climática tem tudo a ver com desigualdade. Os países do centro do capitalismo foram justamente aqueles que desenvolveram suas economias a partir das fontes fósseis de energia. Um habitante de Luxemburgo, por exemplo, emite em média 300 vezes mais CO₂-equivalente do que um habitante da Etiópia. Obviamente graças a isso, os países mais ricos têm melhores condições de enfrentamento dos impactos. Eventos extremos afetam países pobres de maneira muito mais grave e com perdas de vidas humanas geralmente em maiores proporções, como se viu justamente com os mais de 1000 mortos nos deslizamentos em Serra Leoa ou os 603 no Haiti, pela passagem do (Furacão) Mathew, ou os 6000 nas Filipinas, pela passagem do (Tufão) Haiyan. Isso implica que não só, do ponto de vista da geopolítica internacional, mas do ponto de vista de classe social, é preciso que os mais ricos assumam o ônus da conta.
Evidentemente os negacionistas atingem as pessoas em geral num ponto fraco. Ninguém gosta de ouvir más notícias (e nesse sentido tampouco é aprazível ser justamente o portador da má notícia, como é o caso de nós que compomos a comunidade científica de clima). A mentira reconfortante de que “não há com o que se preocupar”, de que “vai ficar tudo ok” soa muito mais agradável, ao dialogar com uma reação absolutamente comum diante de um evento ruim: a denegação.
Mais do que isso, a expectativa de que é possível para uns seguir com seu estilo de vida de altas emissões de carbono – e para os demais almejá-lo – encaixa perfeitamente no discurso ideológico ultraliberal de “prosperidade”, de solução individual, de “meritocracia”, etc. tão bombardeado nas redes. Óbvio: é inteiramente irracional que se inverta a ordem das coisas desta forma, isto é, que já que uma realidade física pode colocar em xeque aspectos de minha opção ideológica, ao invés de reavaliar e repensar tal opção (ou para rejeitá-la por completo ou pelo menos para revisar alguns aspectos dela), eu passe a negar o mundo material ao meu redor e o conhecimento científico sobre o seu funcionamento. Mas humanos raramente são bons exemplos, de tomada de decisão racional, certo Sr. Spock?
Qual o motivo pelo qual negacionistas não publicam nem aprovam projetos? Seria “perseguição”?
É justamente o apelo emocional e o autoposicionamento na condição de vítima que caracteriza, assim, a fraude da tentativa dos negacionistas de se identificarem com Galileo, mas como demonstramos, no campo das ideias, eles são, na verdade, a Inquisição. Afinal, insistem em mitos e se recusam a aceitar as evidências que os desmentem. Mas não só. No campo da aliança com o poder constituído também: assim como a Inquisição estava associada ao vínculo da Igreja com o Estado, os negacionistas são turbinados pelo andar de cima, mais especificamente pela indústria petroquímica e outros setores (além dos seus vínculos com a extrema-direita em nível global, no Brasil há larga evidência de aproximação com o agronegócio). Então, que exijamos respeito à ciência e à figura de Galileo Galilei e não aceitemos que vilões canalhas e desonestos posem de vítima.
Mas dito isto, como lidar com as acusações de que eles têm sido “censurados” ou impedidos de ganharem projetos de pesquisa e publicarem em periódicos científicos? O que fazer quando eles reivindicam “espaços de debate” em eventos científicos ou espaços da sociedade civil voltados para a formulação de políticas públicas sobre as mudanças climáticas?
Primeiro, a acusação de que “só há financiamento para pesquisas que ‘querem comprovar’ as mudanças climáticas” e não haveria financiamento para questioná-las é para lá de falsa. Novamente só cola porque em geral as pessoas não sabem como funciona a produção científica. Primeiro, num projeto, não é possível antecipar (pelo menos não totalmente) os resultados, então nesse sentido seria impossível, a priori, separar projetos que visassem “comprovar” ou “questionar” as mudanças climáticas. Todos eles seriam (e são, de fato) projetos para estudar o clima, suas alterações e as causas físicas destas alterações e o compromisso da comunidade científica é justamente obter resultados, reportá-los – quaisquer que sejam – e apresentar conclusões baseadas nas evidências, quer elas corroborem as hipóteses iniciais ou não.
Segundo, em geral os projetos de pesquisa são focados em aspectos bastante particulares e específicos do clima. Ninguém se propõe a estudar “tudo”, sozinho ou num grupo de pesquisa, pois não seria apenas contraproducente. É impossível mesmo, dada à quantidade de informação envolvida! Para chegar a conclusões mais gerais, montando as peças do quebra-cabeça, é que são feitos os trabalhos de revisão da literatura, tendo sido este o principal papel cumprido pelo próprio IPCC e outros painéis de clima (como o Painel Brasileiro, o PBMC e os responsáveis, nos EUA, pela publicação dos relatórios nacionais, como o que foi publicado há poucos dias). Em virtude disso, haveria um grande número de oportunidades para pesquisadores sérios que, mesmo partindo de um questionamento das conclusões gerais sobre as mudanças climáticas defendida pela ampla maioria, estivessem dispostos a examinar seriamente algum tópico específico. Será que aceitariam o desafio de, nesse processo, aceitar quaisquer que fossem as evidências que sua pesquisa lhes mostrasse a respeito daquele assunto e como o mesmo se conecta ao quadro científico mais geral?
Richard Miller se considera um ex-cético. Seu grupo revisou do zero o controle de qualidade e as estatísticas das medições de temperatura da superfície. O resultado obtido coincidiu inteiramente com o que já se sabia e ele aceitou as evidências.
Terceiro, há exemplos de farto financiamento para negacionistas. O detalhe que às vezes eles tentam esconder que a fonte para tal financiamento é a indústria de combustíveis fósseis, como ocorreu com Willie Soon, pesquisador do Centro Smithsonian de pesquisa em Astrofísica, num caso já relatado em nosso blog. Mas houve quem não fez questão de esconder que estava sendo bancado por essa indústria para questionar a qualidade do registro histórico de temperatura à superfície (trabalhado por vários institutos e agências de pesquisa como NASA, NOAA e Hadley Centre e apresentado como uma das evidências mais expressivas do aquecimento global): Richard Muller, de Berkeley.
Muller é um físico prestigiado e cujo grupo de pesquisa se deu ao trabalho de reconstruir, do zero, a base de cálculo da temperatura média global na superfície num projeto denominado BEST (Berkeley Earth Surface Temperature). Dando a César o que é de César, devemos admitir que a base de dados montada pelo grupo de Muller é maior e possivelmente até mais robusta do que a GHCN (Global Historical Climatology Network), na qual se baseiam as instituições anteriormente mencionadas para levantar as suas séries temporais de temperatura. Mas o resultado ficou marcadamente parecido, apenas confirmando o que nós, da nossa comunidade, já sabíamos: primeiro, que o dado de temperatura da superfície é confiável e segundo, que o planeta está aquecendo num ritmo cada vez mais acelerado, especialmente desde as três últimas décadas do século passado. Uma das consequências de tudo isso foi que Muller hoje se diz um “convertido”, servindo do melhor exemplo de diferença entre um cético (alguém que tem de fato uma dúvida – seja esta justificada ou não – mas que corre atrás de evidências para dirimi-la, aceitando-as para onde quer que elas apontem) e um negacionista (aquele que se recusa a aceitar evidências a fim de preservar seu sistema de crenças). A outra consequência é que Muller não foi capaz de publicar seu resultado, pela ausência de originalidade, em periódicos de maior prestígio em meteorologia, tendo de se contentar em ver seus dados BEST no Geoinfor Geostat. Até o total de artigos advindos do projeto ficou muito aquém do esperado para algo da magnitude inicialmente imaginado, como se pode constatar no próprio site.
Aliás, sem querer fazer apologia do produtivismo acadêmico, mas tendo falado em número de artigos, já ocorreu a vocês que o fato de que os negacionistas em geral não publicam em periódicos revisados e não aprovam projetos poderia ser simplesmente incompetência? E que por mais que isso signifique chamar atenção para si de forma distorcida, para não falar dos casos em que há benefício econômico direto, a motivação para ir à mídia e às redes questionando praticamente todo o resto da comunidade nada tem a ver com uma conduta ética superior à desta, mas pode se originar de uma vaidade exacerbada e de algum tipo de frustração?
Palavras finais sobre “censura” e “democracia”
Nesse contexto, ninguém propõe que os negacionistas sejam “censurados”. Eles, como quaisquer pessoas, podem dizer a sandice que quiserem (com a exceção de discursos de incitação ao ódio) e o fato de terem sistematicamente se dirigido à mídia e ocupado as redes sociais é o próprio exercício desse direito.
Mas ciência não se faz com qualquer “opinião”. Não se pode querer que o método e a produção científicos e a revisão por pares sejam abandonados para acomodar o desejo desse punhado de manipuladores. É preciso seguir as regras do debate científico, que se dá por meio da literatura revisada, com o escrutínio de outros cientistas e não em arenas que imitam os debates eleitorais, em que a liberdade para mentir sem apresentar provas é enorme e a performance se sobrepõe em geral à honestidade intelectual.
Há uma noção completamente equivocada a respeito de como se dá esse debate. As pessoas têm a impressão de que em ciência fazemos debates como os eleitorais, que em geral são concursos de performance e nos quais o compromisso com a verdade por parte dos debatedores deixa muito a desejar. O debate científico é feito por meio da revisão por pares, ou seja, via literatura científica. É desse jeito mesmo: chato, tedioso, em geral não é ingrediente para meme. Mas é desse jeito que se pode ter algo realmente construtivo, corrigindo erros, checando evidências, melhorando interpretações etc. Está longe de ser perfeito, mas é muito mais efetivo do que o “telecatch de oratória” que as pessoas tanto apreciam.
Aliás, uma tática que precisa ser explicitada dos negacionistas é justamente querer conduzir a todos nós (especialmente colegas que não têm “traquejo”) para esse ambiente tóxico e contraproducente. Evitar esse tipo de armadilha é basilar. O tipo de “debate” no qual os negacionistas insistem não apenas favorece a forma em detrimento do conteúdo. Ele abre espaço para a “assimetria de Brandolini”: “The amount of energy needed to refute bullshit is an order of magnitude bigger than to produce it” (A quantidade de energia necessária para refutar besteiras é uma ordem de magnitude maior do que para produzi-las).
Existem movimentos anticiência que podem incidir em vários aspectos das políticas públicas, mas certamente dois são especialmente nocivos: o negacionismo climático e o movimento antivax. Proteger a democracia nos dois casos significa esclarecer a população, ampliar o trabalho de educação e de comunicação e, na tomada de decisão, seguir o consenso científico. Ceder à manipulação, às mentiras e às chantagens de uns e outros nada tem de “democrático”, da mesma forma como liberar sem restrições as demonstrações de ódio, racismo e xenofobia de neonazis é precisamente o
oposto de uma democracia.
Por fim, é preciso também que os ambientes de ciência e nos quais a ciência é utilizada para orientar políticas públicas sejam orientados a partir desses princípios. Da mesma maneira que não se pode enviar satélites de comunicação para o espaço perdendo tempo com “debates” com terraplanistas ou geocentristas; da mesma maneira que não se pode orientar políticas públicas de saúde dando o mesmo “espaço democrático” para especialistas exprimindo o consenso científico sobre as vacinas e para delirantes do “movimento antivacinação” é inadmissível pensar que a política para clima seja baseada em qualquer que seja a “opinião” que se queira, “a gosto do freguês” ou em “ouvir os dois lados” quando o peso das evidências está todo junto a um deles. Assim como não se pode absolutizar a “liberdade de expressão” quando neonazis apelam a ela para proferirem discurso de ódio, genocídio e extermínio, não podemos ceder à chantagem e à manipulação, fragilizando a tomada democrática de decisão por parte do poder público dando pesos iguais a orientações fundadas na ciência e a discursos que a negam.
Fonte – Blog o que você faria se soubesse o que eu sei? de 13 de novembro de 2017
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