Por Jean Silva* - Jornal da USP - 1 de novembro de 2024 - Tucuruvi,…
O levante das comunidades tradicionais
“A gente é criado numa sociedade em que é feio ser da roça” Maria de Fátima Alves, apanhadora de flores. Foto: André Dib
No campo e no litoral do Brasil, comunidades lutam por seus modos de vida e por seus territórios tradicionais
“Até 2002 vivíamos com nosso modo de vida na invisibilidade, e a invisibilidade garantia nosso modo de vida. O autorreconhecimento veio da necessidade de defesa do nosso território”. Quem fala é Maria de Fátima Alves, de 38 anos, apanhadora de flores na Serra do Espinhaço, em Minas Gerais. Tatinha, como é conhecida, narra com clareza e convicção que, antes de ter seu território ameaçado, ninguém havia importunado suas vidas e as comunidades viviam com liberdade há séculos. A fartura das roças e a comercialização de flores colhidas no alto da serra garantiam o sustento. Seu lugar permanecia resguardado.
Tudo mudou quando o Estado desconsiderou sua existência ao declarar que aquele território era um Parque Nacional, uma unidade de conservação que impõe restrições à ação humana. A partir de então, foi preciso sair do silêncio e afirmar sua existência. Reconhecerem-se como comunidade tradicional foi um processo dolorido. “A gente é criado numa sociedade em que é feio ser da roça”, conta. “Antes a gente não falava; porque antes também não tinha necessidade”.
Quando fala sobre sua vida, Tatinha narra a história de milhares de outras comunidades espalhadas pelo Brasil, chamadas genericamente de comunidades tradicionais. Algo semelhante se passou nas que vivem nos litorais de São Paulo e Rio de Janeiro. Os caiçaras se denominavam assim, mas evitavam a palavra, pois trazia cunho negativo. Com a chegada de grileiros e condomínios de luxo, perceberam que assumir esse nome lhes embuía de poder político para assegurar sua relação com o mar, onde pescavam, e com as terras, onde moravam e cultivavam roças.
A história é parecida por todo o interior e litoral do país. Especulação imobiliária, grandes fazendas agropecuárias, plantações de grãos ou eucalipto, mineração, estradas, barragens, parques eólicos e até unidades de conservação ambiental: são múltiplas as ameaças que têm feito, ao longo dos anos, comunidades tradicionais em todo Brasil assumirem diferentes identidades, a partir da iminência de serem deslocadas de seus lugares.
Os nomes pelos quais elas se apresentam são inúmeros: ribeirinhas, faxinalenses, quebradeiras de coco, pescadoras, vazanteiras, entre muitos outros. Assim como povos indígenas e quilombolas, desenvolveram maneiras próprias de viver enraizadas em seus territórios. No Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, instância de participação oficial ligada ao Ministério de Desenvolvimento Social e Agrário, hoje são reconhecidos 26 tipos de comunidades, e é certo que outros passarão a reivindicar esse título nos próximos anos. Como as apanhadoras de flores e as caiçaras, as comunidades lançam mão da carta da identidade quando em conflito. E o Brasil segue como um dos líderes em conflitos no campo.
Nas comunidades pesqueiras e vazanteiras, as roças no solo fertilizado pelas cheias do rio garantem fartura. Foto: Gui Gomes
Famílias fixam morada perto dos cursos de água e utilizam a mata para coleta de frutos, plantas medicinais e caça para alimentação. Foto: Gui Gomes
Diversidade e território
É o professor Carlos Walter Porto Gonçalves, da Universidade Federal Fluminense, que usa a expressão “jogo de cartas” para fazer uma analogia ao uso das identidades nas disputas por território. “As cartas que as comunidades têm são a memória e a as experiências”, diz. “Esses grupos podem lançar mão da carta da identidade porque têm relação com as veredas, com as savanas, com o cerrado, e isso estrategicamente pode ser reivindicado como identidade”.
Essa relação com os biomas mostra as estratégias que as famílias criaram para que pudessem sobreviver e ter alimentação farta, à medida que não encontravam, no Estado, um aliado. Para isso, produziram tecnologias e saberes próprios sobre os solos, a vegetação, os animais e as águas. Na Serra do Espinhaço, as apanhadoras de flores fazem uso controlado do fogo para que determinadas espécies de plantas possam brotar.
Assim, essas comunidades mantêm e manejam as florestas onde vivem, áreas por isso extremamente preservadas, contrariando a ideia de que as matas só podem ser conservadas se livres da ação humana. Nelas, também constroem maneiras de viver – social, econômica, política e culturalmente – que dependem do território em que estão e de como se relacionam com ele e com seu entorno.
Muitas comunidades narram que só iam para as cidades em busca de sal e querosene, produtos que não conseguiam produzir. Outras tiveram de negociar com diferentes atores para permanecerem nos locais que ocupavam, até mesmo com pagamento de parte da produção. Nascidas para terem o máximo de autonomia, um traço comum é a relação que estabeleceram entre si.
“As comunidades falam a mesma língua, temos a mesma cultura. Um socorre o outro nas enchentes”, explica Reinaldo Pereira da Silva, da comunidade pesqueira e vazanteira Maria Preta, nas margens do Rio São Francisco. Ao longo do rio, são pelo menos 300 comunidades como a sua. Perto dali, Clarindo Pereira dos Santos, de 50 anos, resume: “O São Francisco, pra mim e pra todas essas comunidades, é a vida. Quando acabar, acabou tudo”. Ele é morador de Canabrava, hoje destruída pela ação de fazendeiros que alegam propriedade da área. Para o professor Carlos Walter, “a vida digna não pode existir de forma abstrata: o território é condição para dignidade”.
Gado é criado solto em pastagens naturais e retireiros do Araguaia se revezam em mutirão para cuidar dos animais no Mato Grosso. Foto: Marcio Isensee Sá
Nos faxinais do Paraná, junto às matas de araucárias, também não há cercas. Foto: Marcio Isensee Sá
Concepções de mundo
Se determinado grau de isolamento do restante da sociedade e estratégias de relacionamentos possibilitaram a permanência dessas comunidades em suas terras durante gerações, com seus modos de vida particulares, hoje os conflitos se acirraram. São as áreas ocupadas por elas as mais cobiçadas pelos projetos de agronegócio, de mineração e de infraestrutura, que recebem maciços investimentos públicos.
Para Patrícia de Menezes, pesquisadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, todos esses projetos, nas suas múltiplas formas, retratam a maneira como o campo é visto no país: como um espaço a ser “desenvolvido e modernizado”, sem lugar para outras maneiras de viver, tidas muitas vezes como sinal de atraso e pobreza.
Como muitas dessas comunidades acabaram expulsas de suas terras, com as pessoas indo para a periferia das cidades, a pesquisadora enfatiza que o “reconhecimento identitário e político é uma condição para poder existir e ser o que se é, ao contrário do pensamento de que todo mundo tem de fazer parte de uma sociedade urbana ou de uma sociedade agroindustrial”.
Reinaldo, da beira do São Francisco, tem uma avaliação parecida: “embora eu seja brasileiro, eles me excluem do Brasil”.
No Cerrado e na Caatinga, as áreas que muitas das comunidades ocupam são extensas. As famílias fixam moradia perto das águas e, em alguns casos, em vilas ou cidades, mas usam um amplo espaço para rodízio das roças e campos coletivos para pastoreio, coleta de frutos, pesca e caça para alimentação. Seguem um costume centenário em que a cerca só é usada para evitar que os bichos comam suas roças. Todos sabem até onde vão os campos e os animais são reconhecidos pelos sinais. As relações são baseadas na ajuda mútua, por meio de laços familiares e elos de compadre e comadre, cruciais para a reprodução da vida. A expressão mais forte disso são os mutirões – ou puxirões, como dizem os faxinalenses no Paraná.
Por outro lado, expressão da apropriação dos espaços por invasores é justamente o uso de cercas nessas áreas por grileiros. É quando as concepções de mundo entram em conflito. “São vários processos de colonização que se sobrepõem historicamente”, analisa a pesquisadora Patrícia de Menezes. “Os projetos estatais e privados, que muitas vezes se confundem, afetam esses mundos de forma violenta”.
“Embora eu seja brasileiro, eles me excluem do Brasil”
Reinaldo Pereira da Silva, da comunidade Maria Preta, no São Francisco
Muitos dos territórios, por estarem preservados, estão sendo “transformados” em áreas de reservas ambientais de fazendas. Outros, usados para o plantio de monoculturas de soja ou eucalipto. As comunidades e organizações que atuam junto a elas acusam as empresas do agronegócio de estarem secando os lençóis freáticos, com o desmatamento e projetos irrigados. “O solo do Cerrado é arenoso e poroso. Quando entram as grandes lavouras, se faz ‘correção’ do solo, e ele se torna impermeável para não perder a água”, explica Julita Rosa de Abreu Carvalho, da Comissão Pastoral da Terra na Bahia. “Na medida em que isso acontece, há grande desastre de impedimento do lençol freático ser alimentado pelos caminhos que são abertos pelas raízes profundas das árvores”.
Em movimento
O uso da palavra tradicional pode remeter a algo estático, parado no tempo. “As pessoas que estão no território não estão condenadas a ser como tal o resto da vida, têm direito a reinventar outras formas de ser, o sentido próprio que lhes é atribuído”, relembra o professor Carlos Walter. Essas comunidades estão em constante movimento e configurando novos movimentos sociais. Nos últimos anos, elas passaram a se encontrar em articulações regionais, que reúnem indígenas, quilombolas e diversos outros tipos de comunidades tradicionais: a Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão, que também existe no Piauí e na Bahia; a Articulação Camponesa de Luta pela Terra e Defesa dos Territórios, no Tocantins; o Fórum de Comunidades Tradicionais entre o Rio de Janeiro e São Paulo, entre outras.
No final de novembro de 2017, mais de 700 pessoas de comunidades de todos os estados do Cerrado se encontraram em Balsas, no Maranhão, e no mês seguinte as comunidades maranhenses se reuniram no Quilombo Cocalinho, no município de Parnarama, para trocar experiências em sua “teia”.
Os encontros são recheados de denúncias, indignações, tambores, maracás, cantos e rezas. Para as comunidades camponesas, são espaços de aprendizados, principalmente com índios e quilombolas, cujos percursos de luta estão mais consolidados. As palavras autonomia e retomada são repetidas à exaustão, e quase sempre o Estado é visto como um inimigo que ora se omite, ora investe em projetos contra seus modos de vida, ora não reconhece seus direitos territoriais. “Nós não conseguimos pensar nesse espaço com cada um no seu quadrado, ele é essa teia”, diz Rosenilde Gregório dos Santos Costa, 55 anos, a Rosa, quebradeira de coco no Maranhão.
As comunidades tentam pautar o Estado exigindo direitos territoriais e liberdade de autogestão. Mas não esperam por ele. “Muitas comunidades estão centrando fogo em estratégias de permanência no território, porque, se forem esperar o Estado resolver os imbróglios, perdem a terra”, observa Tatiana Emilia Dias Gomes, professora na Universidade Federal da Bahia e advogada da Associação de Advogados e Advogadas de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais, a AATR.
Muitas partem para a ação direta: cortam cercas colocadas por fazendeiros ou empresas que tentam se apropriar de suas terras, expulsam pistoleiros, promovem a autodemarcação e até retomam áreas das quais foram expulsas. Foi o que aconteceu no Vale das Cancelas, em Minas Gerais. Lá, comunidades geraizeiras enfrentaram sucessivas expulsões e apropriações de seu território por vários tipos de projetos. Há poucos anos, decidiram retomar sua área e promover a autodemarcação de mais de 200 mil hectares, onde montaram acampamento e exigem o reconhecimento do Estado.
Quebradeiras de coco participam da Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão, em que compartilham experiências. Foto: Ana Mendes
Há gerações no território, comunidades geraizeiras estão cada vez mais cercadas. Foto: Gui Gomes
“Os projetos estatais e privados, que muitas vezes se confundem, afetam esses mundos de forma violenta” Patrícia de Menezes, pesquisadora
Pela Constituição de 1988 e pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário, as comunidades tradicionais têm assegurado o direito a autoidentificação e a território, assim como a serem consultadas sobre projetos que as impactem.
Na prática, entretanto, as vias para conquista territorial são tortuosas. Muitas ainda dependem de um laudo antropológico ou de outro tipo de certificação. Enquanto a Fundação Nacional do Índio, a Funai, é responsável pela demarcação de territórios indígenas, e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra, pela titulação de terras quilombolas, não há um procedimento único para os outros tipos de comunidades.
Elas, então, apelam para diferentes instrumentos que foram sendo criados pelo Estado a partir de sua mobilização, nem sempre ideais. Pelo Incra, existem os Projetos de Desenvolvimento Sustentável e os Projetos Agroextrativistas, que não levam em conta apenas a divisão em lotes individuais. Pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, o ICMBio, há unidades de conservação que permitem o uso do território pelas comunidades que as ocupam. A Secretaria de Patrimônio da União criou os Termos de Autorização de Uso Sustentável, que podem ser obtidos pelas comunidades que vivem nas beiras das águas.
Diante da pressão local, alguns estados também começaram a criar legislações específicas para demarcar territórios tradicionais. É o caso da Bahia, do Paraná e, mais recentemente, de Minas Gerais.
Apesar disso, o aparato jurídico disponível ainda é frágil, e as comunidades enfrentam cada vez mais reintegrações de posse em favor de fazendeiros ou empresas emitidas pela Justiça, mesmo que estejam em áreas públicas. “A titulação é uma forma de reconhecimento mas não encerra e não resolve os conflitos, pois o Estado tem interesse econômico nessas terras e recursos naturais”, observa a pesquisadora Patrícia de Menezes.
Assim, mesmo quando conseguem demarcações ou concessões de uso, muitas comunidades reclamam que o território acaba reduzido, e a liberdade restrita. Para a advogada Tatiana Emilia, “a lente do direito estatal não consegue compreender nem enxergar o que é útil para essas comunidades, e não tem a dimensão do que se dá nos territórios”.
Comunidades geraizeiras montaram acampamento para retomar áreas tomadas pelas plantações de eucalipto. Foto: Gui Gomes
Fonte – Carolina Motoki, Reporter Brasil de 27 de janeiro de 2018
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