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O cientista condecorado que acabou na delegacia por causa de um líder rastafári

descriminalização das drogasO professor Elisaldo Carlini. JOSÉ LUIZ GUERRA – IMPRENSA/UNIFESP

Por que o pesquisador Elisaldo Carlini, de 87 anos, foi intimado a depor depois de organizar um congresso sobre maconha

Sexta-feira à tarde, antes de o Carnaval começar, o professor Elisaldo Carlini, diretor do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), teve uma surpresa. Recebeu do carteiro um documento com o emblema do Tribunal de Justiça de São Paulo. Aos 87 anos – “quase 88”, como ele diz – o pesquisador estava sendo intimado a depor na delegacia. “Fiquei quase paralisado”, disse Carlini, por telefone, ao EL PAÍS. “Sem saber o que pensar”.

Carlini, um respeitado pesquisador brasileiro, que trabalha há mais de meio século com pesquisas sobre drogas, especialmente a maconha e suas propriedades medicinais, teve dificuldade em entender o que estava acontecendo. Mas, com muito esforço, já que sofre de um câncer na bexiga e outro na próstata e tem dificuldade em se locomover, se dirigiu à delegacia na data determinada, o último dia 21, com seu advogado, Cristiano Maronna, e mais um colega da Unifesp.

O depoimento fora requisitado devido a um inquérito aberto para apurar o 5º Simpósio Internacional Maconha – Outros Saberes”, realizado por Carlini e sua equipe em maio do ano passado em São Paulo. De acordo com a promotora de Justiça, Rosemary Azevedo Porcelli da Silva, o simpósio “contém, em tese, fortes indício de apologia ao crime”. Como o professor Carlini é presidente da comissão organizadora do simpósio, ele e mais outros três colegas membros da comissão respondem pelo evento.

O simpósio durou quatro dias, iniciado no dia 08 de maio do ano passado. Foram realizadas nove mesas de discussões, com temas relacionando a maconha à política, à história, à justiça, à filosofia e à religião.

O evento, porém, só chegou ao conhecimento da Justiça depois que os organizadores decidiram convidar Geraldo Antônio Baptista para participar de uma das mesas. Conhecido como Ras Geraldinho, ele fundou em 2011 a primeira igreja rastafári no Brasil. Mas acabou preso e condenado a 14 anos de prisão em 2013, por tráfico de drogas, depois que a polícia encontrou 37 pés de maconha na sede do templo, em Americana (218 quilômetros de São Paulo). O convite feito pela comissão organizadora do simpósio deixou a promotora de Justiça “indignada”.

Geraldo Antônio Baptista, Ras Geraldinho, antes de ser detido, em frente à sua igreja Rastafári. Geraldo Antônio Baptista, Ras Geraldinho, antes de ser detido, em frente à sua igreja Rastafári. FACEBOOK / REPRODUÇÃO

Mas o professor Carlini explica: “Uma das mesas era sobre filosofia e religião. Por isso decidimos chamar um representante de cada religião”, diz. “Chamamos padres e protestantes”, como a irmã Kate, das Irmãs do Vale, grupo de ativistas freiras da Califórnia que fabricam produtos medicinais a partir da maconha e vendem pela internet.

“Aí pensei”, segue o professor. “Temos que ouvi-lo [Ras Geraldinho] para que as pessoas entendam como é a religião rastafári”. Para que Ras Geraldinho pudesse participar, os organizadores do simpósio pensaram em aproveitar a saída dele da prisão durante o indulto do Dia das Mães. Por isso, o pedido enviado à Justiça era para que o rastafári saísse um ou dois dias antes do previsto, para participar do evento.

Porém, nem Ras Geraldinho nem o professor Carlini participaram do simpósio. O primeiro, porque a Justiça não liberou. O segundo, por questões de saúde. “Fiquei doente e não pude participar, mas me empenhei muito na produção”, diz Carlini. Agora, nove meses após a realização do evento, Carlini teve de explicar à Justiça. “Fiz o convite, convidaria de novo se precisasse”, diz o professor.

“Nunca tive participação política”

Segundo o advogado Cristiano Maronna, não é possível prever os próximos passos deste inquérito. Com os depoimentos em mãos, o delegado enviará o relatório ao Ministério Público de São Paulo, que decidirá se arquiva, denuncia ou se pede novos esclarecimentos sobre o caso. “Antigamente dava pra você prever o resultado de um caso com alguma certeza”, diz Maronna. “Hoje em dia a insegurança é a regra, porque está tudo de cabeça para o ar. Em circunstâncias normais isso sequer viraria inquérito”.

Formado em medicina pela Unifesp em 1957, condecorado duas vezes no Palácio do Planalto pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e membro da Expert Advisory Panel on Drug Dependence and Alcohol, dentre outros títulos, Carlini desabafa. “Acho um absurdo o que aconteceu”. Ele trabalha com duas possibilidades: “ignorância em relação ao meu trabalho, ou má fé”. “Eu nunca tive participação política ativa, sempre científica”.

O caso provocou reações rapidamente no universo acadêmico. Na sexta-feira, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) publicaram um manifesto em defesa de Carlini. As entidades “repudiam com veemência o fato de o pesquisador ser alvo de um inquérito por organizar um simpósio sobre o uso terapêutico da maconha”.

Ao menos 40 sociedades científicas de todo o país declararam apoio ao manifesto, que ainda afirma que “Carlini é um cientista premiado internacionalmente”. O texto reafirma a importância do pesquisador, lembrando que ele “desenvolveu ainda na década de 1970 pesquisas pioneiras que caracterizaram a ação anticonvulsivante da maconha, e suas descobertas permitiram a formulação de medicamentos utilizados em diversos países para tratar, eficazmente, doenças como epilepsia e esclerose múltipla”. A Unifesp também divulgou uma nota em defesa do professor emérito da Universidade e reforçando o seu apoio ao pesquisador.

Com a saúde debilitada, o pesquisador afirmou que em todas essas décadas de carreira nunca havia acontecido algo parecido. E que está abalado, mas seguirá trabalhando.”Não sinto dor, mas o processo psíquico pelo qual venho passando tem me causado muita ansiedade”, diz. “Mas acho que agora temos mais forças para fazer com que a legislação [que regula a pesquisa e produção de maconha para fins medicinais no Brasil] ande para a frente. A batalha não é só minha”.

Fonte – Marina Rossi, El País de 27 de fevereiro de 2018

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