Por Jean Silva* - Jornal da USP - 1 de novembro de 2024 - Tucuruvi,…
60% do esgoto não tem tratamento: conheça 5 ameaças para a água do Brasil
Pescador caminha sobre terra seca na barragem Jaguari, do Sistema Cantareira, na crise hídrica de 2014. Jorge Araújo/Folhapress
O Brasil possui a maior parte do estoque de água doce do planeta Terra — cerca de 12% de toda água superficial de rio do mundo. A aparente abundância esconde um histórico de desperdício, de poluição do recurso e de destruição da cobertura vegetal que protege as margens dos rios e suas nascentes.
Diversas cidades têm vivenciado situações críticas de escassez de água. Ao mesmo tempo, 5 mil piscinas olímpicas de esgoto são devolvidas para os rios e lançados no litoral sem tratamento. Brasília, que recebe nesta semana o 8º Fórum Mundial da Água, passa por grave crise hídrica há mais de um ano.
Para piorar o quadro, episódios de vazamento de produtos tóxicos em rios se repetem. O rio Doce sofreu o maior derramamento de rejeitos de mineração da história, com o rompimento de uma barragem da Samarco em Mariana (MG). Agora, em Barcarena (PA), a refinaria norueguesa Hydro realizou descarte de resíduos de extração de bauxita no rio Pará.
Por outro lado, a demanda por água só aumenta. É necessário água para a agricultura em expansão no país, para a produção industrial, para o abastecimento das cidades que ainda crescem, para a geração de mais e mais energia – o governo planeja construir um complexo de energia no rio Tapajós.
Esse contexto torna urgentes ações para a preservação dos rios e das bacias hidrográficas do país e mecanismos de gestão e distribuição eficiente e justa de água.
Conheça os 5 maiores gargalos relacionados à problemática da água no Brasil
Fernando Maia/UOL
Saneamento e acesso, o grande problema
No Brasil, 60% do esgoto gerado é lançado nas águas ou a céu aberto sem nenhum tratamento. Grande gargalo do país, a carência em saneamento básico provoca impactos em diversas esferas, como na saúde pública, em praias e rios e na biodiversidade aquática. O problema está relacionado à falta de investimento em infraestrutura que leve a rede de coleta ou tratamento local até a casa das pessoas.
“Em São Paulo há dois rios enormes, mas que não podem ser usados como fonte de água limpa. Em cidades da Amazônia não chega água encanada e rede de esgoto”, diz Ricardo Novaes, especialista em recursos hídricos do WWF-Brasil. De acordo com a ANA (Agência Nacional de Águas), 81% dos municípios despejam pelo menos 50% do esgoto que produzem diretamente em cursos d’água próximos, sem submetê-los a qualquer trabalho de limpeza.
O crescimento das cidades eleva a demanda por água para consumo e a geração de esgoto, agravando o problema. “Por causa da poluição da água em grandes cidades, grandes obras precisam ser feitas para se buscar água cada vez mais longe”, diz Fabiana Alves, especialista do Greenpeace em Água.
Dirceu Portugal/Fotoarena/Estadão Conteúdo
Agropecuária gasta muita água e nem sempre paga por ela
Para que uma peça de carne chegue a uma churrasqueira, é gasto em média 5,7 mil litros de água, de acordo com pesquisa da (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) — uma média global, que considera toda a cadeia produtiva, aponta para um gasto de 15,5 mil litros por quilo de carne. Cerca de 72% da água captada no país vai para a produção agrícola, o que está em linha com a média de 70% no mundo, segundo a ANA. O problema, contudo, está na ineficiência do setor.
Apesar de alguns setores agrícolas terem alcançado uma produção mais sustentável, com menor consumo de água, a agropecuária em geral ainda trata o recurso sem o cuidado adequado, segundo os especialistas. “A água é vista como abundante, e há uma cultura de desperdício. O produtor sabe o quanto gasta com veterinário, com fertilizantes, mas o custo com água não entra na planilha”, diz Novaes. Não há, na ANA ou no governo brasileiro, estatísticas oficiais sobre a extensão do desperdício da água na agropecuária. A ONG SOS Mata Atlântica diz que as perdas podem chegar a 70%.
O uso irracional de água compromete a distribuição do recurso para outros fins. E com a exportação de alimentos que utilizam grande quantidade de água, o país também se torna um exportador de “água virtual”, sem, contudo, receber compensações financeiras por isso. Nem todos os Estados do país cobram pela utilização dos recursos hídricos na agricultura. Para o especialista da WWF, a agricultura brasileira já conta com a vantagem competitiva da boa média de chuvas do país e poderia se valer disso utilizando o recurso de forma racional.
Foto: Cortesia/CPRH
Desmatamento faz rios sumirem
A água não vem do cano nem dos reservatórios. Ela vem das chuvas nas cabeceiras de rios e nas áreas de nascentes, que permeiam o solo até os lençóis freáticos e enchem os mananciais. A cobertura vegetal garante o funcionamento desse sistema. Quando retirada, as chuvas encontram um solo menos permeável e escorrem carregando sedimentos, que assoreiam os rios.
“Retirar a vegetação faz com que bacia fique mais suscetível à perda de água, à seca e ao desparecimento de um rio”, afirma Alves. Assim, o desmatamento e a conversão de áreas naturais em pastagem, plantações ou carvoaria, além da expansão urbana descontrolada, colocam em risco a existência de água limpa.
As nascentes e margens de rios e de lagos são protegidas pelo Código Florestal, sendo consideradas APPs (Áreas de Proteção Permanente, que inclui ainda outras áreas, como topos de morro). Contudo, além de continuarem sendo desmatadas, há uma área de 8,1 milhão de hectares de APPs que precisa ser recuperada ou compensada, de acordo com a ONG Imaflora. “Com a restauração florestal, nascentes voltam a brotar”, diz a especialista em água do Greenpeace.
Marcel Naves/Estadão Conteúdo
Mudanças climáticas intensificam secas e inundações
“O Brasil está passando por período em que já é influenciado por mudanças climáticas. O padrão do clima é não ter muito padrão”, diz Novaes. Isso pode significar mais secas nos períodos de seca e mais chuvas nos períodos de chuva. “Inundações podem ser consequências de fenômenos extremos, ligados às mudanças climáticas”, afirma Alves.
Para a especialista, contudo, o problema não está relacionado apenas ao clima, mas também à gestão das cidades. Ela explica que alagamentos ocorrem quando não há infraestrutura adequada para drenar água, ou quando moradias são construídas em áreas naturalmente inundáveis. “Pessoas pobres são empurradas para o limite da sobrevivência e ficam sujeitas à inundação e a desmoronamentos”, afirma.
Davi Boarato/BBC Brasil
Nordeste seco e Cerrado “cheio de nascentes” são mais sensíveis
Para os especialistas, regiões com clima mais vulnerável, como o Nordeste, são ainda mais sensíveis às mudanças climáticas. A região está enfrentando há cinco anos um dos períodos de seca mais longos da história do Brasil. A seca no semiárido é uma realidade. A questão é qual a melhor forma de se adaptar a ela. Políticas de construção de cisterna, formas modernas de irrigação e a gestão eficiente das águas da transposição do rio São Francisco estão entre as formas de lidar com o problema.
Já o cerrado é extremamente sensível devido a sua grande importância para a manutenção dos recursos hídricos do país. “As pessoas acham que é um campo sujo, que pode ser ‘limpo’ para a agricultura”, afirma Novaes. O bioma é estratégico por abrigar as nascentes dos principais rios do Brasil, como São Francisco, Araguaia e Tapajós. Sua preservação é fundamental para manter a recarga de aquíferos. Contudo, é a área atualmente mais ameaçada pelo desmatamento ligado à expansão da fronteira agrícola.
Luis Moura/ Estadão Conteúdo
Instrumentos de controle da água existem, mas falham
Água é um bem natural comum, ao alcance de todos, mas que pode acabar. Por isso o uso para um fim, como resfriamento de uma usina termoelétrica, compete com o uso para outros, como o abastecimento de uma cidade. A tragédia dos bens comuns é a ideia de que cada usuário do bem, sem se preocupar com sua preservação ao longo do tempo, buscaria o proveito máximo, levando o recurso ao esgotamento. Para que isso não ocorra, é necessário governança.
“A água foi vista por muito tempo como um insumo energético, para gerar energia. Mas é preciso água para beber, para a pesca, para o lazer, para a indústria, para a agricultura”. Ricardo Novaes, especialista em Recursos Hídricos do WWF-Brasil
No Brasil, a Política Nacional de Recursos Hídricos, criada em 1997, estabelece que a água deve ser gerida de forma a proporcionar usos múltiplos, priorizando-se o consumo humano. Para todos os usos convivam, é fundamental também a existência de mecanismos de alocação justa e eficiente.
No sistema brasileiro, as decisões sobre a distribuição da água passam por comitês de bacias hidrográficas, que contam com a participação dos diversos usuários de água. Para os especialistas, trata-se de um bom arranjo de governança. Contudo, existem problemas, como a implementação incompleta dos comitês em algumas regiões (principalmente no Norte e Centro-Oeste), e a inexistência de sistemas de informação que indiquem a quantidade de água disponível que pode ser distribuída.
Quando os arranjos de governança falham e o recurso se torna cada vez mais escasso, surgem tensões. “Os conflitos pelo uso da água estão mais presentes e agudos”, diz Novaes. Em Correntina, na Bahia, os moradores chegaram a invadir fazendas de produtores que estariam reduzindo o volume do rio que abastece a cidade. Outro exemplo é a disputa ocorrida entre os Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro sobre a transposição das águas do rio Paraíba do Sul (os dois Estados chegaram a um acordo).
Vale lembrar que a Constituição estabelece que a água subterrânea e dos rios e lagos é um bem público, pertencente à União ou aos Estados. Seu uso é outorgado pelo poder público aos diferentes usuários, e existem limites legais para destinação a cada fim.
Fonte – Fernando Cymbaluk, UOL de 21 de março de 2018
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