Documentário ganhou o prêmio One Hour, do Ministério da Cultura da França. Investigação jornalística revela cenário cruel na agropecuária na Amazônia
Você sabia que existem 85 milhões de cabeças de gado para cada pessoa no planeta Terra na Amazônia? O dado, levantado pela equipe jornalística responsável pelo documentário “Sob a Pata do Boi”, revela a força da agropecuária mundial.
“Na década de 1970, o rebanho era um décimo desse tamanho e a floresta estava quase intacta. Desde então, uma porção equivalente ao tamanho da França desapareceu, da qual 66% virou pastagem”, revela.
Fruto de dois anos de investigação, mais de 50 horas gravadas de entrevistas por Pará, Mato Grosso, São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, “Sob a Pata do Boi” entrega um panorama da agropecuária no Amazonas desde o pequeno produtor, até as maiores empresas da indústria. “Dentro e fora do Brasil, muita gente sequer sabe que existe boi na Amazônia. Pensamos em fazer um filme, em primeiro lugar, para o consumidor”, explica Marcio Isensee e Sá, o diretor.
Sob a Pata do Boi conta como a pecuária entrou na Amazônia e se tornou seu principal vetor de desmatamento, revelando suas práticas hoje, quase uma década após começar a sofrer as primeiros pressões para eliminar suas ilegalidades.
Você pode assistir ao documentário online aqui.
Rumo ao Desmatamento Zero + Sob a Pata do Boi
O filme faz parte do projeto Rumo ao Desmatamento Zero, realizado em parceria com o site de jornalismo ambiental ((o))eco com a ONGImazon. Desde seu início, em 2016, várias reportagens investigativas já foram realizadas.
Com 49 minutos, o documentário faz uma viagem no tempo e explica as origens da criação de gado em solo amazonas, que remonta ao período da ditadura militar brasileira. Esse envio maciço de bois é responsável por 63% de desmatamento na região.
De acordo com a pesquisa realizada, “O setor agrícola ocupa 38,7% do território brasileiro – desses, metade são pastos, segundo dados da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). A pecuária usa mais de 200 milhões de hectares de terras no Brasil, dos quais 48 milhões na Amazônia. Para fins de comparação, apesar de ser o maior produtor de soja do mundo, o grão se estende por 30 milhões de hectares de solo brasileiro. “A pecuária na Amazônia tem como características baixa produtividade – menos de um boi por hectare – e o pouco emprego de tecnologia”, explica Paulo Barreto, pesquisador do Imazon e idealizador do documentário em parceria com a equipe do ((o))eco. “Calculamos que há ao menos 10 milhões de hectares de pastagens abandonadas ou mal aproveitadas na Amazônia. É área suficiente para aumentar a produção de carne e ainda liberar espaço para a agricultura sem que seja necessário derrubar mais nenhuma árvore”, diz Barreto. Apesar de viável, a pecuária livre de crimes ambientais ainda não se revelou uma realidade. “As forças em favor do desmatamento continuam ganhando”, conclui Barreto”.
Entrevista com Diretor e Roteirista
Quem melhor para falar de “Sob a Pata do Boi” do que aqueles que o criaram? Veja as entrevistas disponibilizadas com o diretor Marcio Isensee e Sá e a roteirista Juliana Tinoco.
Como se deu a concepção do filme?
Marcio: Durante quase dois anos captamos imagens em campo e publicamos parte delas em formato de vídeo-reportagens. Conhecendo mais do tema e com uma ideia mais clara de roteiro, voltamos outras duas vezes ao Pará para filmar o que sentíamos falta para o documentário. Na montagem percebemos que um tema que pode parecer árido – pecuária na Amazônia -, na verdade tem muitas nuances. Durante a edição tivemos que fazer muitas escolhas conceituais de para onde o filme iria caminhar. O diálogo com a equipe foi fundamental.
Que personagens e histórias mais chamaram sua atenção?
Marcio: Acho que um dos personagens que mais representa o filme é o “Zé do Saco”. Trata-se de um senhor que vive em um assentamento rural em São Félix do Xingu (Pará), que contou-nos de forma muito descontraída e inusitada como o desmatamento é prática comum nas fazendas, independente do tamanho da propriedade ou do nível de instrução do fazendeiro. Algo que me impressionou também foi conhecer em uma festa agropecuária como a cultura do cowboy
faz parte do imaginário da população na Amazônia. No final das contas, qualquer mudança de paradigma que almeje a uma nova forma de produção na pecuária precisa se dar no diálogo e no melhor entendimento desses aspectos culturais e históricos.
O que mudou na sua percepção sobre o tema no decorrer do processo?
Marcio: Entendi, em primeiro lugar, que não existe a dicotomia de vilão versus mocinho nessa história. Os pecuaristas são muito apaixonados pelo que fazem e muitos estão ali há décadas, a família tem história na região e o gado é a profissão que escolheram para vida. Claro que isso não justifica práticas arcaicas e muitas vezes criminosas como o desmatamento ilegal, trabalho escravo e grilagem, por exemplo, mas é consequência de uma atividade que historicamente não foi controlada, regulamentada e sempre andou de mãos dadas com ilegalidades. O filme tem uma importância enorme ao mostrar como práticas mais sustentáveis podem e devem ser a nova cara da pecuária na Amazônia.
Em segundo lugar está a questão política. O Brasil construiu nas últimas décadas um discurso muito forte de que “o agronegócio leva o país nas costas”. Porém, se analisarmos todos os custos socioambientais embutidos no setor, os investimentos de dinheiro público e os retrocessos que vem sendo tentados contra a legislação ambiental, percebemos que, na verdade, somos nós, os cidadãos, é que arcamos com os custos do setor – nós é que carregamos o agronegócio nas costas.
Como você avalia a participação do setor privado nessa discussão?
Juliana: Tivemos a oportunidade de dialogar com diversos membros da cadeia – de representantes de grandes frigoríficos, como JBS, a donos de abatedouros locais na Amazônia, passando por cadeias de supermercados no Sudeste. Ficou claro para mim que há tecnologia e conhecimento suficientes para o setor privado ser mais ambicioso em suas ações e buscar de verdade zerar a ilegalidade da cadeia da carne.
Muitos argumentam que os consumidores não pagariam mais por carne dita sustentável. Mas carne sem desmatamento ou trabalho escravo não é uma questão de sustentabilidade, sim de lei. O setor privado tem obrigação de liderar esse debate e ser o primeiro a demandar cadeias de fornecimento limpas. Até porque a demanda por segurança e transparência nas cadeias só irá aumentar.
Você foi a campo investigar como a cadeia se dá para o pequeno produtor. Conte-nos essa história.
Juliana: Fomos a São Félix do Xingu, município paraense com o maior rebanho de boi do Brasil – são mais de 2 milhões de cabeças de gado, 18 para cada habitante. São Félix é enorme, tem mais de 80 mil quilômetros quadrados, duas vezes o estado do Rio de Janeiro. Isso torna a fiscalização contra o desmatamento muito difícil. Não à toa, é o município que constantemente encabeça as listas de maiores desmatadores da Amazônia.
O centro de São Félix é pequeno, são poucas ruas, quase todas de terra. Apesar de estar cercado por dois rios, o rio Xingu e o rio Fresco, em São Félix é difícil comer peixe – o que mais se encontra mesmo é carne, prova da força que a cultura do boi tem na região.
Fomos em busca do elo mais fraco da cadeia da pecuária – o pequeno produtor. Em São Félix do Xingu existem 19 projetos de assentamento criados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).
Foi visitando essas regiões e conversando com os produtores no campo que pudemos constatar algo que a literatura acadêmica há muito tempo atesta: Tem muito boi saindo de fazendas, muitas delas pequenas, sem monitoramento adequado. Se não são vendidos diretamente para o frigorífico, muitas vezes por causa das exigências impostas aos abatedouros, esses bois vão parar nas fazendas maiores, onde terminam seu processo de engorda e, aí sim, vão para a venda. O problema é que esses fornecedores indiretos, muitas vezes, tem envolvimento com o desmatamento ilegal. A falta de estrutura dos assentamentos e de políticas públicas voltadas ao pequeno produtor favorece a que eles permaneçam ilegais e até desmatem mais. No campo, sempre se “dá um jeitinho” para burlar o sistema de monitoramento dos frigoríficos.
O mais comum é a transferência do documento de transporte do boi – o Guia de Trânsito Animal (GTA), único papel obrigatório para comercialização de gado, do nome de quem está ilegal para quem tem área legalizada.
Segundo estimativas que levantamos em campo, ¼ do gigantesco rebanho de São Félix do Xingu pode estar ilegal – e, ainda assim, é comercializado.
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