Por Ellen Nemitz · ECO - 18 de dezembro de 2024 - Câmara ressuscitou “jabutis” da…
‘O pessoal está notando que a gente existe’: o aplicativo que coloca catadores de recicláveis no mapa
Nos mais de 20 anos de carreira como catadora de materiais recicláveis, Rosineide Moreira Dias das Neves, a dona Rosa, se habituou à penosa rotina de percorrer as ruas do Recife na missão de filtrar o que é reciclável do que é lixo nas calçadas, tendo que enfrentar preconceito pelo caminho.
“Tem muita gente que discrimina o que a gente faz. Acha que a gente é catador de lixo. Não entende que não é lixo, é reciclagem”, diz a pernambucana de 55 anos. “A gente está tentando limpar o ambiente, mas a sociedade não vê.”
Os périplos incertos em busca de papelão, garrafas PET, latinhas de alumínio e outros materiais estão dando lugar a viagens mais garantidas, na medida em que aumentam os chamados de endereços certos para coletar materiais recicláveis – em residências, escolas, lojas ou edifícios.
Dona Rosa é uma entre 71 catadores e catadoras de Pernambuco cadastrados no Cataki, um aplicativo lançado em julho do ano passado para conectar catadores independentes a cidadãos ou empresas que queiram dispor materiais recicláveis corretamente – e se descreve como um “Tinder da reciclagem”, em referência ao aplicativo de relacionamentos.
Desenvolvido pela ONG Pimp My Carroça, do grafiteiro e ativista Mundano, de São Paulo, o Cataki ganhou, em fevereiro, em Paris, o grande prêmio de inovação do Netexplo, observatório que estuda o impacto social e econômico de tecnologias digitais e premia as iniciativas consideradas mais inovadoras, em um fórum realizado em parceria com a Unesco.
O aplicativo indica os catadores de uma região em um mapa com ícones de carroças, o veículo com que a maioria transporta os resíduos que coleta.
‘Para eles é lixo, mas para a gente é sobrevivência’
De acordo com a ONG, os catadores são responsáveis pela coleta de 9 em cada 10 quilos de material reciclado no país – mas não têm reconhecimento pelo papel que desempenham. O Censo de 2010 identificou no Brasil, na época, cerca de 400 mil catadores de materiais recicláveis.
O país gera mais de 200 mil toneladas de lixo por dia, mas uma parcela pequena vai para reciclagem – cerca de 13%, de acordo com o estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
“Nosso foco é que os catadores sejam reconhecidos como prestadores de um serviço público, e que o aplicativo ajude a gerar mais renda para eles”, diz Carol Pires, coordenadora do Pimp My Carroça.
O aplicativo é uma plataforma colaborativa sem fins lucrativos, e os valores para uma coleta ficam a cargo da negociação entre as partes. Não há taxas para usar o app, mas a recomendação é que o catador seja pago pelo serviço, diz Pires – de acordo com a quantidade de material a ser coletado a distância a ser percorrida.
‘Invisibilidade social’
No aplicativo, os ícones de carroças levam a um curto porém simpático perfil apresentando cada catador, com foto, apelido, telefone, as áreas onde atua, os tipos de resíduos que coleta e uma breve história de vida.
O perfil de Dona Rosa traz sua foto sorridente na Linha do Tiro, bairro onde mora no Recife, na zona norte da capital pernambucana.
Inclui seu lema de vida – “a reciclagem trouxe meu sustento” – e um resumo dos veículos dos quais dispôs ao longo de 20 anos na coleta: “começou com triciclo, carroça, cavalo e agora tem uma Kombi velha”.
Ellen Fernanda (à esquerda), coordenadora da ONG Pimp My Carroça no Recife, em selfie com os catadores cadastrados no Cataki, em uma das reuniões mensais para entrosá-los com o aplicativo
A Kombi foi comprada com o dinheiro da rescisão recebida pelo marido há cerca de três anos, quando foi demitido de uma empresa de reciclagem. No ano passado, o veículo passou por uma “pimpada”, recauchutagem que está na origem do trabalho do Pimp My Carroça. Em tradução livre, o nome da ONG significa “turbine minha carroça” e foi inspirado no programa americano de TV Pimp My Ride, que transformava latas-velhas em carros turbinados.
O projeto foi iniciado por Mundano em 2012, criando mutirões para grafitar carroças de catadores e catadoras e fazer uma série de reparos nos veículos – para aumentar sua visibilidade e autoestima.
Diante de públicos internacionais no TED e na Unesco, o grafiteiro vem comparando esses profissionais a super-heróis – que teriam o “poder” da invisibilidade na sociedade, fazendo um trabalho essencial para o meio ambiente e para a sustentabilidade das cidades, mas sem receber reconhecimento.
“No mundo todo, as empresas estão gastando bilhões falando em sustentabilidade. Mas essas são as pessoas que estão agindo na prática. Ao conectá-las, podemos aumentar sua renda e ajudá-los em sua missão”, afirmou Mundano ao apresentar o app no fórum da Netexplo.
O Cataki estava entre as dez inovações premiadas neste ano. Após a apresentação de cada uma, foi eleito pelo público como o grande vencedor deste ano.
Kombi ‘Joinha’
No fim do ano passado, a Kombi de dona Rosa foi pintada pelo grafiteiro pernambucano Johny Cavalcanti como parte do Pimp My Carroça, com apoio da escola Saber Viver, do Recife. Ganhou cores vibrantes e uma “cara” feminina, com cílios prolongados nos faróis e um sorriso largo sobre o parachoque. Dona Rosa apelidou o veículo de Joinha e diz que passou a ser reconhecida na rua, atraindo atenção por onde passa.
“Ela me trouxe muita alegria. Mas muita gente não sabe o que é arte, né? Tem gente que diz: ‘Tira esse circo daqui!’ e eu: ‘É circo, mas está me sustentando!’ Ou então: ‘Tira essa palhaçada daqui!’ e eu: ‘Não é palhaçada não, bem, é meu ganha pão!'”, conta.
Ela enumera assim as principais dificuldades na vida do catador: gente que joga vidro quebrado no lixo sem separar, gente que joga cocô de cachorro no lixo sem separar, e o preconceito.
Desde que se cadastrou na Cataki, dona Rosa conta com novos clientes fixos, como uma filial um hospital, alguns prédios no bairro de Casa Amarela e uma residência no Caxangá.
“O aplicativo é muito bom porque está dando valor à gente. Está trazendo reconhecimento. Através dele, o pessoal está notando que a gente existe.”
Ela diz que “quem a vê hoje assim”, rodando pela cidade com uma Kombi tão bonita e levando sustento para casa, não imagina o que ela já passou na vida.
Rosa nasceu em Aliança, cerca de 100 km à noroeste do Recife. Órfã de pai e mãe, aos 8 anos foi levada para a capital para viver e trabalhar na casa de uma família. O casal faleceu poucos meses depois. Ainda criança, Rosa seguiu morando com outros membros da família, num “pinga-pinga” de casa em casa. “Teve tempo de eu dormir até no chão em cima da minha roupa”, lembra.
“Graças a Deus, encontrei um meio para poder vencer na vida e nunca mexi no que é dos outros”, afirma.
Começou a trabalhar com reciclagem com o marido, e hoje conta com a ajuda do filho, de 24 anos. Engravidar não estava nos planos, mas virou uma bênção. “Ele foi um projeto de Deus. Eu mesma não queria ter filho. Passei por muita dificuldade na vida, não queria botar um filho no mundo para passar pelo que eu passei”, diz, com lágrimas nos olhos apesar de o sorriso continuar no rosto. “Eu passei por muita coisa, minha filha.”
Um catador com sua carroça ‘pimpada’, ou seja, turbinada com reparos técnicos e a arte de grafiteiros por meio da ONG Pimp My Carroça, com recursos de empresas, pessoas que decidem ‘patrocinar’ um catador ou de campanhas de crowdfunding
‘Cadastre um catador’
Segundo a coordenadora Carol Pires, a ideia do Cataki surgiu a partir da visibilidade gerada pelas mais de 300 carroças que já foram turbinadas Brasil afora pelo Pimp My Carroça – e as perguntas que se seguiram.
“A gente começou a receber pedidos de pessoas próximas falando que tinham material em casa e precisavam do contato de um catador”, conta Pires. “Faltava uma maneira de as pessoas encontrarem os catadores na região onde moram.”
Hoje, o aplicativo tem mais de 500 catadores cadastrados em cerca de cem cidades no país.
Mas é em São Paulo e no Recife que está mais consolidado. Isso porque ele depende de um trabalho gerencial e social que vai muito além da interface tecnológica, e nas duas cidades há representantes em contato permanente com os catadores.
Ellen Fernanda, coordenadora no Recife, diz que a capital tem servido como uma espécie de cidade-modelo para o aplicativo, buscando desenvolver ações para aprimorar seu funcionamento. Ela tem feito encontros mensais com os cadastrados para orientá-los no uso do aplicativo. São dicas básicas, para uma população em geral muito carente.
“Oriento eles sobre como atender o telefone, combinar a coleta, que devem pedir para alguém anotar o endereço se não souberem escrever… São muitas dificuldades”, explica. “Eu busco elevar a autoestima deles, falo sobre a importância de seu trabalho”, conta.
Ellen diz que a simples tarefa de manter o cadastro atualizado envolve um trabalho braçal enorme, já que os catadores muitas vezes perdem os celulares, mudam de chip e de número. Conseguir a doação de aparelhos também tem sido parte do trabalho, e campanhas nesse sentido também vêm sendo realizadas por voluntários do Cataki em outras cidades.
Se inclusão digital está longe de ser uma realidade para a maioria, a expectativa da ONG não é de que os próprios catadores se cadastrem nem dependam de smartphone ou acesso a internet. A ideia é incentivar que simpatizantes lhes apresentem o aplicativo e façam o cadastro para eles. Aos catadores basta ter um número de telefone, que será informado em seu perfil no aplicativo.
“A ideia é que as pessoas se apropriem mesmo. Se baixam o aplicativo e não acharem catadores em sua região, que ajudem a cadastrá-los quando os encontrarem na rua”, explica Carol Pires.
De Miguel Arraes a Eduardo Campos
A BBC News Brasil acompanhou o trabalho de coleta de Rosa numa manhã quente de sábado no Recife. Ela nos recebeu com um suco refrescante de cajá, feito da fruta e não da polpa, em sua casa, um apartamento pequeno no Conjunto Habitacional Eduardo Campos, batizado em homenagem ao falecido ex-governador de Pernambuco.
Antes disso, a família viveu durante 20 anos em uma favela que sempre alagava na época das chuvas. A “invasão” era conhecida como Vila Miguel Arraes – o avô de Eduardo Campos, que foi três vezes governador de Pernambuco.
Dona Rosa partiu na Kombi com Renato, seu parceiro de trabalho, que dirigia o veículo e encostava sempre que apareciam pilhas de caixas ou outros materiais recicláveis na calçada. Ela saltava do carro, pegava o material correndo e jogava na caçamba, os carros atrás buzinando em protesto.
A parada principal foi na filial Cultura Inglesa do bairro Madalena, de onde a dupla saiu com sacolas e mais sacolas de papel, plástico, PET e outros materiais, enchendo a Kombi. O acordo é que Rosa e Renato recebem R$ 50 em cada coleta, de 15 em 15 dias. O contato foi feito por Raquel Laureano, diretora-executiva do curso de inglês. Ela conta que eles têm buscado envolver os alunos e seus pais, incentivando que tragam materiais de casa, se não tiverem onde reciclar.
“Essa preocupação deveria ser do poder público, mas é também dos indivíduos. Acho que essa consciência está começando a aumentar com iniciativas como essas. Não adianta esperar o poder público agir”, considera.
Na primeira ida ao curso de inglês, dona Rosa foi apresentada aos professores e alunos e teve um dia de educadora: pediram-lhe que falasse sobre o que fazia e ensinasse a melhor forma de separar os materiais para a coleta.
“Minha filha, cheguei a ficar sem ter noção de como reagir. É uma coisa muito bonita, muito boa. Você já passou por muita dificuldade na vida e de repente aparece uma coisa boa assim”, orgulha-se. “Estou feliz porque estão reconhecendo o nosso trabalho.”
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