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Desmatamento e estradas na Amazônia podem levar a outra pandemia
Por Lucas Ferrante – UOL – 30 de abril de 2023 – Retroescavadeira faz o desmatamento para o garimpo ilegal na Amazônia Imagem: Fernando Martinho/Repórter Brasil
Aproximadamente um ano antes do surgimento da pandemia de covid-19, biólogos publicaram um estudo na revista científica Viruses, alertando que o avanço da degradação ambiental na região de Wuhan, na China, poderia gerar uma pandemia ao propiciar o salto zoonótico de um coronavírus presente nos morcegos da região para os humanos.
Saltos zoonóticos são infecções causadas por vírus, bactérias, fungos, parasitas e até príons, que estão estocados naturalmente em alguns organismos, e podem se espalhar para outros, incluindo humanos, por meio do contato direto ou através de alimentos, água ou meio ambiente.
Esses saltos zoonóticos ocorrem, principalmente, quando o aumento de desmatamento ou degradação florestal ocorre em áreas biodiversas, nas quais os reservatórios destes patógenos passam a ter contato direto ou indireto com outros organismos capazes de hospedar o patógeno.
Além da pandemia de covid-19, causada pelo coronavírus, outros eventos pandêmicos também foram causados por saltos zoonóticos, como a de Aids (Síndrome da Imunodeficiência Humana), causada pelo vírus HIV.
Em uma publicação científica no periódico Science, pesquisadores demonstraram que a disseminação global da linhagem pandêmica, conhecida como HIV-1 grupo M, teria começado por volta de 1920, em Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, na África, causada pelo salto zoonótico de um vírus presente em primatas.
O estudo ainda apontou que não apenas os fatores biológicos contribuíram para a pandemia, mas também os fatores sociais, visto que hidrovias e ferrovias facilitaram a disseminação do vírus.
Fatores sociais também foram cruciais para aumentar a disseminação da pandemia de covid-19, de acordo com um estudo publicado no periódico médico Preventive Medicine Reports.
Segundo a pesquisa, o aumento da mobilidade urbana em virtude do retorno presencial das escolas em Manaus (AM) — antes da vacinação — deu origem à segunda onda de covid-19 na região e ao surgimento da variante gama (P1), responsável por dois terços das mortes por covid-19 no Brasil.
Desta forma, dois fatores têm se mostrado como gatilhos para novas pandemias, sendo eles, primeiramente, o aumento de degradação florestal, ou desmatamento, em pontos com alta biodiversidade, atuando em sinergia com fatores sociais que tendem a aumentar a mobilidade dos patógenos, permitindo sua rápida dispersão e maior replicação.
Preocupantemente, é um consenso entre os estudos científicos que o aumento de degradação e desmatamento na Amazônia tende a gerar as condições propícias para o surgimento de uma nova pandemia na região, através de saltos zoonóticos.
Artigos científicos publicados nos Anais da Academia Brasileira de Ciências, e nos periódicos científicos Regional Environmental Change e Science Advances, foram incisivos em apontar que o aumento do desmatamento na Amazônia, aliado à abertura de estradas e à criação de animais, aumentam o risco de uma nova pandemia.
O artigo publicado na Science Advances ainda demonstrou que os estados do Amazonas, Acre, Amapá, Rondônia, Roraima, todos inseridos na região amazônica, apresentam alto risco de ocorrência de saltos zoonóticos.
Já o estado do Pará, também na região amazônica, apresentou médio risco de ocorrência de saltos zoonóticos.
O estudo ainda apontou que a região Norte do Brasil, onde a Amazônia está situada, e a região Centro-Oeste do Brasil apresentaram a maior incidência de hospitalizações causadas por zoonoses em todo o país.
Não apenas a degradação ambiental e o desmatamento vêm aumentando na Amazônia.
Um estudo publicado no periódico científico Land Use Policy demonstrou que a promessa de repavimentação da rodovia BR-319, que liga Porto Velho, no arco do desmatamento amazônico, até Manaus, na Amazônia central, levou a um aumento vertiginoso de desmatamento, degradação ambiental e ocupação da região devido ao maior fluxo de pessoas, madeireiros e grileiros de terras desde 2015.
No X Seminário Técnico-Científico de Análise de Dados do Desmatamento na Amazônia Legal, promovido pelo Ministério do Meio Ambiente no mês passado, evento com a participação da ministra Marina Silva, demonstrei o risco de saltos zoonóticos pela formação de novas cadeias de produção na Amazônia, como plantações para a produção de biocombustíveis, aliada à criação de animais confinados, e o risco da emersão de uma nova pandemia devido à repavimentação da rodovia BR-319.
Como já abordado em Ecoa, as evidências de fraude no processo de licenciamento da rodovia BR-319 demandam a suspensão da licença prévia e da licença de manutenção pelos órgãos ambientais.
É crucial que esses órgãos não apenas freiem o avanço do desmatamento e da degradação ambiental na Amazônia, como revejam grandes projetos que cortam a floresta e que levam a uma maior ocupação de novas áreas na Amazônia, como grandes rodovias.
O Brasil não foi capaz de dar o alerta do surgimento da variante gama, na Amazônia, antes que ela cruzasse as fronteiras brasileiras, sendo identificada primeiramente no Japão.
Isso mostra a importância da prevenção de fatores que possam propiciar o surgimento de novas pandemias, como políticas de desmatamento zero para a Amazônia, proibições de plantios para monoculturas que possam suscitar novos ciclos de desmatamento, como dendê, cana-de-açúcar e milho, além da criação de animais confinados.
Também é necessário que o Brasil reveja a sua política de abertura de estradas na Amazônia.
Adotar estas medidas é crucial para evitar o surgimento de uma nova pandemia global.
A ausência de medidas do Ministério do Meio Ambiente, ao não suspender as licenças de manutenção e repavimentação da rodovia BR-319, devem ser encaradas como falta de compromisso com o controle do desmatamento na Amazônia e, portanto, um risco para a saúde pública global.
*Lucas Ferrante é biólogo, formado pela Universidade Federal de Alfenas (Unifal), mestre e doutor em biologia (ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Dentre suas áreas de pesquisa tem investigado como plantios agrícolas e o uso de agrotóxicos afetam a fauna, especialmente os anfíbios.
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