Por Elton Alisson - Agência FAPESP - 19 de abril de 2024 - Cerca de 90% da…
A aposta da Alemanha em energia solar
Os alemães estão em meio a uma transição energética para abandonar o carvão e as usinas nucleares. A estratégia colocou o país na liderança da energia solar, mas ainda há desafios a serem superados
Em um pequeno vilarejo no leste da Alemanha, o líder comunitário Karl-Heinz Handreck explica a um grupo de jornalistas internacionais que estamos com sorte. Como o vento está soprando em outra direção, não escutamos os barulhos da operação da gigantesca mina de carvão a céu aberto nas redondezas. Mas sorte é uma palavra que está longe de descrever a comunidade, formada por quase 150 pessoas, a maioria já em idade de aposentadoria. Há planos para expandir as operações de carvão por todos os lados, deixando a pequena Taubendorf cercada. “Em cinco anos, a mina estará a menos de 100 metros de nossas casas”, diz Handreck.
Estamos no leste da Alemanha, praticamente na fronteira com a Polônia. Aqui estão depositadas as maiores reservas de carvão existente no país. Essas reservas deixaram sua marca na cultura local. O time de futebol da cidade mais próxima, Cottbus, não por acaso se chama Energie FC. Quando o país estava dividido em dois, antes de 1989, era daqui que saía toda a energia que abastecia a comunista Alemanha Oriental.
Nos últimos anos, no entanto, todo esse legado energético vem sendo colocado em xeque. Pelo menos duas áreas previstas para exploração de carvão na região foram canceladas recentemente. A termelétrica de Jaenschwalde, abastecida pelas minas que cercam Taubendorf, pode não ter vida útil para além de 2025. E a pressão da sociedade alemã – e de ativistas como Handreck – para gradativamente abandonar o carvão como fonte de energia só aumenta.
Um fenômeno semelhante acontece com a fonte de energia que iluminou as casas “no outro lado do muro” quando o país estava dividido. Historicamente, o lado ocidental da Alemanha apostou no átomo como principal fonte de eletricidade. Hoje, um terço de toda a energia elétrica gerada no país vem de usinas nucleares. Mas elas também estão com os dias contados.
Passado um quarto de século desde que o Muro de Berlim caiu e a Alemanha se unificou, o país olha para trás e decide abandonar as suas duas principais fontes de energia. Mas como manter uma das economias mais fortes do planeta – o quarto maior PIB do mundo – funcionando dia e noite sem as usinas nucleares e a carvão? O país aposta numa grande revolução. Ou, como eles dizem em alemão, numa Wende.
A mina de carvão de Jaenschwalde, na região de Brandenburgo, leste da Alemanha. No fundo, a usina termelétrica de mesmo nome. A operação de mineração ameaça um vilarejo próximo (Foto: Sean Gallup/Getty Images)
Karl-Heinz Handreck, líder do vilarejo de Taubendorf, aponta para o local onde a mina de carvão deve se expandir. O verde dos campos do local deverá dar lugar ao cinza das escavações (Foto: Bruno Calixto/ÉPOCA)
A transição
A palavra alemã Wende significa transição. Politicamente, é usada como uma mudança sistemática, radical, benigna e não violenta. A palavra foi popular nos anos 1990, usada para se referir à maior transição pacífica que o país já viveu – a queda do muro. Nos últimos anos, ela passou a ser usada ao lado de outra palavra: Energie. Com a política batizada de Energiewende, a Alemanha promete fazer uma transição profunda em suas fontes de energia, abandonando fontes fósseis e colocando todas as forças nas energias renováveis.
O principal alvo da Energiewende é a energia nuclear. Há um sentimento antinuclear muito forte na sociedade alemã, espalhado pela sociedade civil e encampado por partidos políticos. O acidente no reator nuclear de Fukushima, no Japão, em 2011, foi o estopim da nova política. Em menos de seis meses, o governo da chanceler alemã Angela Merkel conseguiu colocar em lei a Energiewende com uma estratégia extensa e compreensiva para encerrar a operação das nucleares, substituindo-as por energia renovável.
A Energiewende prevê desligar reatores nucleares que, juntos, geram 22 mil megawatts de energia. Para fazer uma comparação, é como se o Brasil tivesse um plano para desligar suas duas maiores hidrelétricas, Itaipu e Tucuruí. O plano começa fechando as usinas mais antigas e com vida útil menor. Há previsão de compensação para empresas. Em alguns casos, as empresas simplesmente fecharam, em outros, buscaram se reinventar no mercado investindo em fontes diferentes de energia. Também há empresas que buscaram reparação na Justiça.
Apesar de amplo apoio interno, o abandono da nuclear foi vista com ceticismo pela comunidade internacional. Afinal, ela não emite gases de efeito estufa e é vista como uma forma economicamente viável de produzir eletricidade. Esses argumentos não sensibilizaram o governo alemão. “Nós não acreditamos que a energia nuclear é uma boa alternativa”, diz Thomas Meister, chefe da divisão de Clima do Ministério de Relações Exteriores do governo da Alemanha. “Essa crença foi reforçada por Fukushima, mas há outros bons motivos. Os custos são altos, e não há uma solução para o problema do depósito de lixo radiativo.” O governo alemão segue à risca seu cronograma para acabar com a nuclear no país. Após Fukushima, sete usinas foram desligadas. Uma oitava foi desligada em 2015, e restam outras oito usinas que estarão desativadas até dezembro de 2022.
A usina nuclear de Philippsburg, na Alemanha. O reator Philippsburg 1 foi desativado em agosto de 2011. O país pretende desligar o reator 2 em dezembro de 2019, como parte da política Energiewende (Foto: Thomas Niedermueller/Getty Images)
Solar decola num país de pouco sol
Desativar usinas, seja da fonte que for, impõe um risco para qualquer país: como evitar um apagão? Por isso a Energiewende prevê também investimentos em energias renováveis como solar e eólica. A meta é atingir 80% de renováveis – o que significa se livrar não só das nucleares, como também do carvão e petróleo. Atualmente, a Alemanha já está perto dos 30% de renováveis. Como ela chegou a esse patamar?
Para começar, o país precisou adotar uma tarifa subsidiada para energia limpa – uma estratégia para fazer com que as renováveis pudessem competir com tecnologias já estabelecidas. Essa tarifa é paga não pelo contribuinte, mas pelo consumidor, com uma sobretaxa determinada na conta de luz. Outra medida adotada foi a desregulamentação do setor, permindo que qualquer empresa que queira comercializar energia possa ter acesso à rede para vender eletricidade. Isso abriu as portas do mercado para pequenas e médias empresas, além de cooperativas de famílias e agricultores. Por fim, a Energiewende determinou que a preferência para entrar na rede é das energias renováveis. Isso significa que o governo só começa a consumir energia gerada nas usinas fósseis após ter consumido, primeiro, a produzida pelo sol e vento.
Essas regras tiveram o efeito colateral de aumentar a conta de luz em cerca de € 2 por quilowatt/hora. Mas esse aumento não parece ter provocado grandes impactos no orçamento familiar da população – a Alemanha tem a menor taxa de inadimplência no pagamento de eletricidade da União Europeia. Além disso, essa sobretaxa tem data de validade. A legislação determina que ela seja progressivamente reduzida de acordo com o preço das energias renováveis – e os preços estão em queda. Nos últimos dez anos, o preço da energia solar caiu 74%.
Hoje, a Alemanha é o país que mais gera energia solar per capita e o segundo maior produtor de solar do mundo em números absolutos, atrás apenas da China. Em dias úteis, a solar chega a atender a um terço da demanda de energia do país. Os resultados impressionam, ainda mais se considerarmos que a Alemanha é um país de baixa incidência solar. Regiões brasileiras que menos recebem sol, por exemplo, têm mais luz solar do que a média alemã.
Menos verde do que gostaria
O governo alemão se vangloria de ser verde. A chanceler alemã, Angela Merkel, já foi ministra do Meio Ambiente e se apresenta como líder de um país pró-natureza. Seu governo apresentou metas mais ambiciosas que seus vizinhos europeus no Acordo de Paris – o tratado assinado na capital francesa e ratificado por mais de 140 países com metas para reduzir poluição emitida por fábricas, veículos e desmatamento e, desta forma, limitar o aumento da temperatura do planeta. Merkel se comprometeu a reduzir 40% de suas emissões de gases de efeito estufa até 2020, e chegar a uma redução de 95% em 2050.
Os números de 2016, no entanto, ligaram o sinal de alerta nas credenciais verdes do governo alemão. Em um ano, as emissões do país aumentaram em 0,9%. É pouco, mas qualquer pequena variação pode comprometer uma meta apertada como a alemã, já que há pouco espaço de manobra até 2020. O aumento das emissões no ano passado foi creditado a um inverno mais rigoroso, que fez com que os alemães utilizassem mais gás natural, e a um aumento no uso de combustível no setor de transporte. Mas o debate público a respeito das metas acabou expondo uma contradição da Energiewende: a benevolência com o carvão. Enquanto os planos da transição energética contam com um cronograma rígido de desligamento de usinas nucleares, não há o mesmo empenho em fechar as usinas a carvão.
“As emissões alemãs não estão caindo por causa do carvão. Podemos atuar com eficiência energética, reduzir emissões na agricultura, mas não há jeito. Se não pararmos de queimar carvão, não cumpriremos a meta”, diz Lutz Weischer, ativista da ONG Germanwatch. Segundo ele, o país precisa encontrar uma forma politicamente aceitável e economicamente viável para o desligamento progressivo das usinas a carvão, como faz com a energia nuclear. Mas abandonar o carvão é mais complicado do que parece. O crescimento gigantesco das renováveis está suprindo, por enquanto, a energia que as usinas nucleares deixaram de gerar. Mas não chegou ainda a substituir as energias fósseis. O carvão ainda representa 40% da matriz energética alemã, com forte participação nos sistemas de aquecimento das casas. Além disso, há a questão social – é difícil realocar no mercado de trabalho pessoas que passaram a vida toda trabalhando nas minas e indústrias de carvão.
O dilema interno do carvão embute o risco de sujar a construção da diplomacia climática de Angela Merkel. A Alemanha vem se esforçando a assumir um papel diplomático mais forte no mundo em relação às negociações de mudanças climáticas. O governo de Merkel tentou de várias formas manter os Estados Unidos no Acordo de Paris, por exemplo, e quando não conseguiu se colocou como uma das principais vozes em defesa do tratado internacional sobre mudanças climáticas, ao lado de França, China e Canadá. Se não conseguir liderar pelo exemplo, a Alemanha pode ter problemas para preencher o buraco deixado pelo presidente americano Donald Trump.
Um acerto de contas com a história
No sul de Berlim, um grande cilindro cercado por uma estrutura de metal chama a atenção na paisagem. Trata-se de um gasômetro há muito desativado. Estamos num campus chamado Euref, um lugar que mistura uma universidade, empresas já estabelecidades e startups. “Aqui costumava ser uma importante unidade de armazenamento de gás para iluminação. Era uma construção do século XIX, que foi abandonada na década de 1990”, diz Mauricio Rojas, engenheiro da Schneider Electric. Hoje, o local é um grande laboratório de tecnologias de mobilidade urbana e energia.
Em um passeio pelo campus, Rojas mostra algumas das invenções e inovações do local. No topo dos prédios, é possível ver aerogeradores que usam o vento para produzir energia. No estacionamento, os carros elétricos são reabastecidos com energia gerada por painéis fotovoltaicos instalados nos telhados. Um protótipo de um carro autônomo, que se move sem a necessidade de um motorista, circula pelo campus, exibindo um design construído, em parte, usando impressoras 3D.
Carros elétricos são recarregados no campus Euref, em Berlim, Alermanha. Ao fundo, a antiga estrutura de um gasômetro, hoje desativada (Foto: Bruno Calixto/ÉPOCA)
O próprio trabalho de Rojas tem o potencial de ser tão disruptivo quanto essas tecnologias. Ele pesquisa a criação e viabilidade de smart grids, as redes de energia inteligentes. Atualmente, um dos grandes problemas das energias renováveis é que elas não podem ser ligadas a qualquer hora do dia. Elas dependem de vento ou luz solar para poder funcionar. Enquanto isso, carvão e gás podem queimar faça chuva ou faça sol. As redes inteligentes, em tese, podem resolver isso. Um computador (ou vários) com um potente algoritmo, ligado em rede com as usinas e alimentado por dados com a previsão do tempo, pode definir, com velocidade e qualidade muito maior do que um operador humano, quando ligar ou desligar usinas e para onde transmitir eletricidade, dependendo da oferta e demanda de cada região. Aliada ao desenvolvimento de baterias elétricas mais potentes, essa tecnologia pode maximizar de tal forma a distribuição de eletricidade que não haveria mais necessidade de usar fósseis como energia de backup.
Se esse tipo de tecnologia vingar, a Alemanha pode dar o passo que falta para abandonar de vez o carvão e abraçar 100% de energias renováveis. É curioso que ela esteja sendo desenvolvida justamente num lugar que foi o símbolo da energia do passado. É como se o país procurasse, com a sua transição energética, acertar as conta deixadas pelas fontes mais poluentes para poder criar um sistema que ilumine casas e indústrias sem sujar o planeta. “Estamos usando a herança energética do país para desenvolver as tecnologias do futuro”, diz Rojas.
Fonte – Bruno Calixto (O repórter viajou a Berlim em maio de 2017 a convite da Embaixada da Alemanha), Blog do Planeta de 13 de junho de 2017
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