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A Batalha de São Paulo da Guerra dos Ultraprocessados

Como uma briga que poderia ser mera egolatria sintetiza uma disputa de terreno entre sistemas alimentares conflitantes

Eles não querem engolir sapos. E têm medo de pagar o pato. Nada melhor do que recorrer à sede da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) para montar trincheiras. Afinal, aqueles 16 andares especializados em instabilidade política e mascotes de gosto duvidoso devem servir de guarida a quem se sente atacado.

Começa agora a Batalha de São Paulo da Guerra dos Ultraprocessados.

Foi em 30 de maio que Mike Gibney, do Instituto de Alimentos e Saúde da Universidade de Dublin, na Irlanda, lançou do alto da Paulista novos torpedos contra a Faculdade de Saúde Pública da USP, localizada na vizinha avenida Doutor Arnaldo. O alvo era Carlos Monteiro, professor e coordenador do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens). E os fornecedores da posição estratégica foram o Instituto Tecnológico de Alimentos (Ital) e a Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação (Abia).

Não deixa de ser corajoso viajar até a cidade do adversário para dar sequência a uma guerra que parece particular. Poderia ser apenas mais uma disputa de egos, dessas que florescem aos montes no ambiente acadêmico. Mas a disputa entre Gibney e Monteiro simboliza uma guerra entre sistemas alimentares.

Uma guerra que começou décadas atrás de forma avassaladora, com os exércitos da indústria avançando rapidamente sobre nossas dietas e ganhando o terreno dos alimentos frescos ou minimamente processados (feijão, arroz). Mas que nos últimos anos ficou mais dura, à medida em que os corpos das pessoas pediram uma reação e tentaram retomar o terreno perdido.

É aí que as quatro horas seguidas de ataques a Monteiro ganham um significado especial. O professor da Faculdade de Saúde Pública entrou no foco depois que propôs uma classificação dos alimentos de acordo com o grau de processamento, no final da década passada.

A classificação NOVA passou a servir de base para políticas públicas, pesquisas e recomendações oficiais de que se evite os ultraprocessados, ou seja, formulações repletas de ingredientes estranhos e via de regra marcadas pelo excesso de açúcar, sal ou gordura. O exemplo mais claro é o Guia Alimentar para a População Brasileira, de 2014.

Essa tentativa de defender os padrões de alimentação mais saudáveis provocou uma reação. Forte. Como já dissemos aqui no Joio, o paradigma anterior se baseava em macro e micronutrientes. Um carboidrato pode ser mandioca, ou macarrão instantâneo carregado de sal. É difícil de entender. E ainda mais difícil de saber o que está dando errado quando um terço da humanidade se torna obesa ou apresenta sobrepeso.

Então, quando surge alguém que aponte o dedo, rola um bafafá. Um dos símbolos disso é Mike Gibney. No ano passado, o professor entrou nos holofotes ao assinar um artigo que atacava especificamente a classificação NOVA.

O grupo de Monteiro respondeu acusando o irlandês de ignorar evidências científicas que mostram a associação entre doenças e ultraprocessados. E os colegas de Gibney de ocultar a colaboração com empresas de alimentos. O próprio Gibney é consultor da Nestlé e de uma entidade que reúne os fabricantes de cereais matinais.

Já que falamos de café da manhã… Gibney deu uma descrição minuciosa de seus hábitos ao despertar. “Eu coloco duas colheres de aveia, quatro medidas de leite, ponho no micro-ondas, depois ponho iogurte e mel. Compro iogurte desnatado com sacarina e baunilha. É ultraprocessado. Meu café da manhã é totalmente ultraprocessado, mas eu considero extremamente saudável e não tenho a menor intenção de mudar isso.”

My friend, não leve a mal, mas isso está um tanto quanto sem graça. Espero que você tenha levado do Brasil um pouco de polvilho, de farinha de mandioca. Experimenta fazer um pão de queijo, uma tapioca. Nós temos banana e mamão. Cuscuz. Ovo. Tanta coisa boa… Por que repetiríamos todos os dias o mesmo desjejum monocromático?

“Para mim, ouvir alguém dizer que queremos que você evite cereais matinais ultraprocessados e o pão produzido em massa é totalmente inaceitável para nós, irlandeses, por causa da relevância em nossa dieta.”

A coisa começa a ficar mais interessante do ponto de vista psicológico. Há um sentimento de desterro entre os defensores dos ultraprocessados: como a maior inovação tecnológica da história da indústria de alimentos pode estar errada? Em muitos países do Norte, esses produtos respondem por mais da metade da ingestão calórica diária. No Brasil, apesar de um crescimento vertiginoso ao longo deste século, ainda cozinhamos de verdade. Comemos alimentos de verdade. E isso é algo que Gibney desconsidera.

Assim como desconsidera qualquer aspecto que não diga respeito ao paradigma dos nutrientes. O professor chegou a fazer troça do Guia Alimentar para a População Brasileira. O documento do Ministério da Saúde inovou ao considerar aspectos ambientais, econômicos e sociais da produção de alimentos. O texto inicial foi elaborado pelo grupo de Monteiro, após rodadas de conversas, e por fim submetido a consulta pública.

“Isso não é meu negócio. É o negócio de alguma outra pessoa. Mas é importante saber que isso está nas recomendações oficiais do Brasil”, disse o irlandês. Mas esse é o “negócio” de cada vez mais pessoas. Elas querem saber como o alimento chegou até a mesa. É importante tomar pé de como a vaca foi criada, se os vegetais são orgânicos ou não, quais as condições laborais dos funcionários de uma empresa.

Gibney também entende ser bobagem a leitura de que a fabricação de ultraprocessados é um fenômeno do último quarto do século passado. Para isso, apresentou produtos do século 19 que já usavam alto grau de processamento. Sim, o processamento de alimentos é algo bem mais antigo. Mas é fácil de entender que o que ocorreu foi uma explosão na fabricação de formulações com altos índices de sal, gordura, açúcar e aditivos.

A gente sabe que não é o “negócio” de Gibney, mas um dedinho de História é sempre bom. Após a 2ª Guerra Mundial, assistimos à Revolução Verde, que promoveu monocultivos com alto uso de agrotóxicos. Mas o que fazer com tanto milho e tanta soja? Uma parte foi parar na barriga de vaquinhas, porquinhos e franguinhos, que nem queriam comer esses grãos.

E a outra parte virou amidos, óleos, xaropes, líquores que se transformam em salgadinhos, biscoitos recheados, iogurtes e uma penca de coisas que você encontra nos supermercados (dá uma olhada no rótulo).

Se você pegar os índices brasileiros de obesidade e de um monte de outros países, é aí que começa um crescimento vertiginoso.

“A gente ficar combatendo a indústria da alimentação, combater os alimentos processados, ficar combatendo isso me parece que é estar, como humanidade, dando um tiro no pé. Mas é um tiro que não se sente agora. A dor vai se sentir lá na frente”, afirmou João Dornellas, presidente executivo da Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação (Abia).

Ouvimos isso tantas vezes de pessoas ligadas à indústria que talvez seja verdade que elas se sintam entrincheiradas. Que sintam que vão pagar o pato. Mas o fato é que também estão admitindo a necessidade de mudar. E, na maioria dos casos, quem decidiu alterar o padrão de alimentação não está contra as empresas, mas a favor de evitar certos produtos.

Crédito: Fiesp

Olhando para o evento sediado pela Fiesp, é impossível deixar de enxergar alguns simbolismos. O fato de um pesquisador ser recebido numa entidade industrial e não numa faculdade, é autoexplicativo. Na plateia, estavam integrantes de outras organizações de pesquisa ligados à indústria, como a Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição (Sban) e o International Life Sciences Institute (ILSI) – também já falamos um bocado sobre ambas.

Na mesa estava o Instituto Tecnológico de Alimentos, que, apesar de ser uma estatal paulista, tem como motivo existencial a prestação de serviço às empresas. E a Associação Latino-americana e do Caribe de Ciência e Tecnologia de Alimentos, cujos representantes têm rodado o continente na tentativa de frear leis e decretos que possam prejudicar os lucros das empresas.

Há críticas à classificação NOVA por parte de pesquisadores sem laços com as empresas. Engenheiros de alimentos entendem que qualquer processamento é igual e, portanto, não faz sentido falar em ultraprocessamento. O que poderia ser corrigido são os ingredientes usados em certos produtos para reduzir a presença de nutrientes e substâncias que fazem ou podem fazer mal à saúde. Mas, no geral, esses cientistas não gastam tanto tempo tentando desconstruir o trabalho de Monteiro.

Suzana Lannes, professora da USP e presidente da Sociedade Brasileira de Ciência e Tecnologia de Alimentos, estava na plateia. E apresentou uma ponderação. “A despeito de toda essa coisa em cima do ultraprocessado, se pode ou não pode, teve um ponto muito positivo que é o esclarecimento ao público, a melhoria de produtos e processos. E ainda tem muita coisa a ser discutida a partir dos agroquímicos. Acho que a indústria está se saindo muito bem nisso tudo. Todo esse esclarecimento vem só a ajudar a população.”

Desde que Gibney se lançou à cruzada contra a classificação por grau de processamento, porém, virou uma espécie de farol para pesquisadores ligados à indústria. O encontro em São Paulo forneceu munição argumentativa para quem quer atacar Monteiro.

No geral, o que vimos é que Gibney pinça no trabalho alheio elementos que sirvam para fortalecer o próprio ponto de vista. Ele escolheu algumas pesquisas que comprovariam que os ultraprocessados não estão associados a obesidade e doenças crônicas, embora os autores desses estudos tenham interpretação contrária.

“A cenoura também é um alimento não balanceado. Se você comer só cenoura, você vai ficar doente. Tirando o leite materno, nenhum alimento é balanceado. Por isso, diversificamos”, concluiu o irlandês.

Precisa caprichar para ganhar peso comendo cenoura, né, não? E é difícil imaginar alguém no mundo que coma apenas cenoura. Há uma questão matemática muito simples: se você consome alimentos com baixos índices de sal, açúcar e gordura, e bem diversificados, tem baixa chance de se tornar obeso.

É aqui que a dieta defendida por Gibney vira um problema. Refeições congeladas têm níveis altíssimos de sódio. O mesmo vale para molhos prontos e para os pães industrializados de que ele tanto gosta. Os cereais da organização que patrocina o trabalho do irlandês têm níveis elevados de açúcar, assim como os iogurtes da empresa que o tem como consultor.

Esses itens representam um baixo percentual de tudo o que a indústria de alimentos produz? No todo, sim. Mas qualquer pesquisa científica sobre publicidade mostra que são os mais propagandeados.

Assim como todas as dietas convencionadas como saudáveis os excluem. E são ricas em alimentos frescos ou minimamente processados. Independentemente de nomenclatura, a conclusão a que se chega ao analisar padrões alimentares completos e saudáveis é a mesma: evite formulações alimentares com excesso de sal, açúcar, gordura.

“De acordo com a definição de ultraprocessados, o pão produzido em massa é ultraprocessado e o pão produzido não em massa não é. Eu não sei o que isso significa. A não ser que seja artesanal é ultraprocessado? Para mim, pão é pão. Não importa quem fabrica”, diz Gibney.

Para comprovar a tese, o professor testou a resposta insulínica com quatro tipos de pão. E não encontrou diferenças significativas. Mas isso é apenas um dos aspectos e, certamente, insuficiente para dizer se a classificação NOVA funciona ou não.

Gibney pinçou uma frase de Monteiro em uma entrevista recente ao The Guardian,na qual o pesquisador brasileiro diz que, por não sabermos ainda o que os aditivos podem provocar ao corpo, o melhor é não consumi-los. “A resposta honesta é que não sabemos ainda o que está acontecendo”, afirmou.

Para revolta do irlandês. “Isso é nonsense. É irresponsável.” Para ele, também é um erro falar que esses aditivos provocam hiperpalatabilidade, ou seja, que criem sabores voltados a desarmar os mecanismos de saciedade do cérebro. Gibney entende que não há comprovação científica dessa hipótese.

Ainda que tomássemos isso como verdade, altos executivos da indústria revelam a realização de caras pesquisas voltadas a entender e a driblar o cérebro. Uma vasta compilação de confissões está no livro Sal, Açúcar, Gordura, de Michael Moss. As empresas não pouparam recursos para entender por que as pessoas têm diferentes pontos de saturação para o açúcar e como isso poderia ser usado para criar novos limites (sempre para cima).

Recentemente, Gibney afirmou a um jornal de seu país que não se pode associar alimentação e câncer, doença provocada principalmente por “má sorte” e fatores genéticos. Na visão dele, “lunáticos” estão espalhando mentiras.

Gente um bocadinho mais habilitada a falar sobre câncer tem uma visão diferente. O World Cancer Research Fund acaba de publicar uma extensa revisão das evidências existentes. Há um gráfico que mostra os fatores que “provavelmente aumentam” e “certamente aumentam” o risco de câncer. A maioria está relacionada a alimentação: gordura corporal, ganho de peso, carnes processadas, bebidas adoçadas e dieta ocidental.

Você pode decidir se quer chamar tudo isso de ultraprocessados ou não, mas não tem como chamar de alucinação. Nem de má sorte.

Na outra ponta, a dos hábitos que ajudam a prevenir o câncer, estão grãos integrais, alimentos ricos em fibras, frutas, dieta mediterrânea, padrões dietéticos saudáveis. Não, o café da manhã de Gibney não está ajudando a evitar câncer.

O Instituto Nacional de Câncer (Inca) considera que um terço dos casos ocorridos no Brasil seriam evitáveis. A maior parte com boa dieta e atividade física, ou seja, sem contar com a sorte. A soma de alimentação, álcool e sedentarismo é o principal fator de risco. O Inca recomenda claramente que se evite a ingestão de ultraprocessados.

Gibney entende que remover essas formulações da dieta demandaria uma mudança social “inaceitável” – e, de novo, o olhar é apenas para a realidade europeia. No Brasil, não é difícil encontrar alimentos frescos, embora já tenha sido mais fácil. “Então, a reformulação de produtos é o caminho.” Mais ou menos como o pato da Fiesp, que virou sapo. Mas sem perder a essência.

Fonte – João Peres, O Joio e o Trigo de 11 de junho de 2018

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