Por Jean Silva* - Jornal da USP - 1 de novembro de 2024 - Tucuruvi,…
A ciência da inquisição no século 21: o caso da África do Sul
Foto 1: Tim Noakes/Facebook
Perseguição ao cientista Tim Noakes é exemplo do poder de orquestração da indústria do açúcar e da subserviência das organizações que a cercam por dinheiro
Quatrocentas e oitenta e oito páginas para exorcizar 140 caracteres. O africano Timothy David Noakes, cientista em fisiologia do esporte, precisou escrever o livro Lore of Nutrition (Ciência da Nutrição, ainda sem tradução no Brasil) para fechar as portas do inferno abertas com a seguinte tuitada: “O bebê não precisa comer lácteos (industrializados) e couve-flor. Apenas leite materno e manter a dieta de baixo carboidrato”. Essas palavras eram apenas uma resposta a Pippa Styling, uma jovem mãe sul-africana com dúvidas sobre a dieta do filho, que começava a ingerir novos alimentos. Ela marcou Noakes na rede social. E o pesquisador, gentilmente, como era de praxe, respondeu. Eram 16h32 do dia 5 de fevereiro de 2014 e começava a perseguição ao homem nascido no Zimbábue.
Hoje com 68 anos de idade, o estudioso enfrentou 3 anos de inquisição em plena segunda década do século 21. Uma ação obscura realizada por inimigos de peso. Muitos atores – de nutricionistas a cientistas defensores de interesses prioritariamente econômicos – interpretaram os papéis de inquisidores. Todos dirigidos por uma mão forte no cenário da ciência da nutrição na África: a indústria do açúcar.
A linha de pesquisa de Noakes, que aponta sérios problemas de saúde como consequências do consumo de alimentos cheios de açúcares e ingredientes não saudáveis, foi o limite para que as trevas viessem à tona. Até a University of Cape Town (Universidade da Cidade do Cabo), na África do Sul, onde trabalhava, se voltou contra ele. Colegas de academia passaram a olhá-lo como adversário.
O establishment médico científico acumulava ressentimentos, já que o fisiologista havia demolido dogmas em temas que interessavam a pesquisadores financiados pela indústria. Objetos de estudo como hidratação, algo que O joio e o trigo contou aqui, motivação e fadiga nas competições esportivas profissionais e amadoras tiveram os parâmetros revistos no continente.
Um incômodo a quem quer manter lucros exorbitantes em prejuízo da saúde, no país que é o sétimo maior consumidor de refrigerantes do planeta e que tem índice de obesidade infantil em preocupantes 14,2%. A prevalência é mais elevada entre as meninas que vivem nas áreas urbanas, na casa dos 30%.
Vinte e oito por cento dos adultos estão obesos ou com sobrepeso em solo sul-africano. Num índice que inclui todas as faixas etárias e gêneros, chega o dado mais aterrador: a obesidade mórbida acompanha e ameaça 15% da população.
A diabetes, sozinha, matou mais de 25 mil pessoas em 2016, último ano com cálculos disponíveis. E as instalações de saúde pública do país registraram a média 10 mil novos casos da doença por mês.
Recebendo pressões nacionais e internacionais de instituições e ativistas pela alimentação adequada e saudável, e seguidas recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), o país debatia, desde 2014, a criação de um imposto sobre bebidas açucaradas, à exceção dos sucos de frutas.
Finalmente, a taxa foi aprovada pelo parlamento em dezembro passado e entrará em vigor no dia 1º de abril. Fixado em 2,1 centavos por grama de teor de açúcar superior a 4 gramas por 100 ml, o novo imposto deve elevar a arrecadação tributária em, ao menos, 2 bilhões de rands sul-africanos, o equivalente a mais de US$ 1,6 bilhão ou R$ 5,2 bilhões.
Nesse ambiente, a indústria do açúcar precisava mostrar força. Estava decidido. Tim Noakes deveria cair no inferno e ser demonizado publicamente.
Primeiro círculo: a chantagem do limbo
A partir da superfície, alguém teria de fazer a função de abrir os círculos do inferno a Tim Noakes. Foi a esse papel que Claire Julsing Strydom, presidente da Associação de Dietética da África do Sul (ADSA) à época, se prestou. Ela denunciou o professor por “conduta não profissional” junto ao Comitê de Conduta Profissional do Conselho de Profissionais de Saúde da África do Sul (HPCSA) após a troca de tuítes com Pippa Styling.
Apenas um tuíte como fundamento e o fogo estava aberto. O fisiologista passaria pelo limbo, o lugar destinado a todas as “almas” não “batizadas” pela indústria do açúcar. O objetivo de quem o tratava como pagão era começar o caminho deixando-o na geladeira por um tempo, com a ameaça de cassar-lhe a licença médica e condená-lo ao esquecimento. Uma chantagem. Se houvesse um pedido de desculpas público, a denúncia poderia ser retirada.
No entanto, Noakes escolheu lutar e defender a posição que havia manifestado no Twitter e, principalmente, a linha de pesquisa em que trabalhava. Estava disposto a enfrentar o processo no conselho para dizer que não merecia ter a licença cassada e descortinar os interesses subterrâneos daquela disputa.
“Meu primeiro argumento foi apontar como as dietas com altos teores de carboidratos são biologicamente baseadas. A maioria dos humanos é resistente à insulina. Alimentar dietas com alto teor de carboidratos resistentes à insulina produz obesidade e diabetes tipo 2, mais outras condições relacionadas à síndrome de resistência à insulina, que incluem pressão alta, câncer e demência”, diz Tim Noakes, em entrevista exclusiva para a nossa reportagem.
Por experiência do próprio corpo, Noakes sabe do que fala. Descobriu-se diabético. Além disso, viu o pai morrer vítima de diabetes tipo 2. “Minha família seguia as diretrizes dietéticas dos EUA. Acreditávamos que tudo iria bem”, conta o fisiologista africano.
A família Noakes seguia o que a maioria faz: o “remédio do fracasso”, segundo o pesquisador. Médicos dizem aos pacientes que diabetes e obesidade são doenças complexas, genéticas, crônicas, progressivas e incuráveis. A indústria patrocina pesquisas que reforçam esse discurso, num movimento circular vicioso.
“Isso absolve-os de qualquer necessidade de resolver a causa real, ou seja, os produtos que causam esses problemas de saúde e outros relacionados, em primeiro lugar”, afirma Tim.
Uma argumentação sólida de defesa surgia na mente do professor. Ele devia descer ao circuito sombrio construído pela indústria para desmontar o ataque. O que mais lhe chamava a atenção no jogo das corporações era inspirado numa citação do poeta e ambientalista estadunidense Wendell Berry: “As pessoas são alimentadas pela indústria alimentar, que não presta atenção à saúde, e são tratadas pela indústria da saúde, que não presta atenção aos alimentos.”
De acordo com Noakes, os medicamentos modernos tratam obesidade, diabetes e hipertensão como se fossem doenças separadas. “Tudo está ligado. Há uma única condição subjacente: resistência à insulina. Meus pacientes não têm pressão alta ou obesidade, por exemplo. A condição subjacente é a resistência à insulina e, se não tratamos a condição subjacente, simplesmente tratamos sintomas, não a doença”, explica o cientista.
Segundo círculo: o “pecador”
A postura combativa de Noakes o libertou do congelamento, mas ainda havia muito a enfrentar. O palco dos julgamentos dos “pecadores contra a indústria” era a próxima etapa. Nele, o médico confrontaria o começo de uma longa jornada.
“A perseguição a mim foi orquestrada pelas forças que controlam as diretrizes dietéticas em todo o mundo. Aqueles que trouxeram as acusações estavam atuando como representantes de organizações privadas”, revela o fisiologista africano.
Especificamente na África do Sul, as principais organizações de “financiamento” dos conselhos dietéticos são a Associação do Açúcar Sul-Africano e empresas de comercialização de cereais, grãos processados e óleos vegetais. Nessa conjuntura, o International Life Sciences Institute(ILSI), uma instituição aparentemente científica, compõe a linha de frente – contamos sobre a atuação do ILSI no Brasil em várias reportagens.
“O ILSI representa a Coca-Cola, a indústria farmacêutica e empresas como a Monsanto, e desempenhou um papel central (no julgamento), uma vez que várias testemunhas especializadas que se colocaram contra mim têm fortes ligações com o instituto”, conta.
Pudera. O ILSI é, literalmente, filho da Coca-Cola. Nasceu em 1978, fundado pela corporação que vende o refrigerante mais conhecido do planeta. Rhona Applebaum, diretora mundial de Ciência e Saúde da Coca até 2015, quando se “aposentou” após se ver envolvida em denúnciasde financiamento para direcionar estudos, foi presidente do instituto até o final do mesmo ano. Um histórico resumido desenha com clareza o perfil da entidade: na OMS, representantes do ILSI interferiram nas políticas antitabaco, nos esforços contra doenças crônicas, e, mais recentemente, nas orientações dietéticas que limitam a ingestão de açúcar.
A influência do ILSI se mostra tentacular no caso Noakes. A Universidade da Cidade do Cabo, ex-empregadora de Tim, e a ADSA, representada pela denunciante Claire Strydom, andavam de braços dados no intuito de condenar o pesquisador.
As evidências de envolvimento conjunto dessas organizações nos bastidores são diversas. Em 2015, quando o julgamento atravessava momento crucial, o ILSI financiou um estudo de ingestão de micronutrientes em crianças sul-africanas, conduzido por membros do Departamento de Nutrição da Universidade do Cabo. Uma “pesquisa fraudulenta”, segundo Noakes, feita para comprovar que o açúcar não seria o responsável pelo crescimento de doenças crônicas não transmissíveis no país.
O departamento acadêmico, por sua vez, prestou apoio significativo à equipe de acusação, bancando trabalhos da professora Marjanne Senekal, na mesma linha do estudo financiado pelo ILSI.
Para completar, a direção da universidade articulou e foi coautora de uma carta escrita por quatro professores, publicada em jornal local, num texto extremamente agressivo contra Tim Noakes.
Bombardeado por ex-companheiros, o fisiologista necessitava, além de se defender cientificamente, desnudar as relações detrás dos ataques e as finalidades econômicas que os dirigiam.
“Sim, eles (ex-colegas de universidade) fizeram tudo isso, incluindo o decano da Faculdade de Medicina e professores de medicina, que escreveram ao jornal local da Cidade do Cabo dizendo que eu promovia uma revolução; que eu falava de curas impossíveis, quando eu apenas relatava o que os pacientes me diziam sobre diabetes, por exemplo”, ressalta o pesquisador.
Em síntese, ele era acusado por “pares” de promover “um debate acadêmico sufocante” e de realizar trabalhos que não eram compatíveis com “os altos padrões” da universidade. Isso, apesar de ser um dos 13 cientistas classificados pela Universidade do Cabo como A1 (a classificação máxima), num ranking que foi novamente oferecido em novembro de 2016, quando o julgamento se aproximava do fim e os argumentos de Noakes se fortaleciam.
“Eu acredito que as ações antiéticas contra mim indicam até que ponto a universidade, assim como a maioria, foi capturada pelos interesses das grandes empresas, incluindo as corporações farmacêuticas e de alimentos”, avalia o professor.
Terceiro círculo: a lama
Hora de nadar no “lago da lama”, espaço reservado aos que sucumbiram ao pecado da gula. No caso em questão, a gulodice possui dois sentidos, que se encontram no fim de uma bifurcação: 1 – apetite desmedido por dinheiro. 2 – uma população que se enche de açúcar “orientada” por uma espécie de “marketing científico”.
Após a denúncia de Claire Strydom, a Comissão de Inquérito Preliminar do Conselho de Profissionais de Saúde se reuniu em 22 de maio de 2014 para resolver se Noakes seria ou não julgado. Foram dois dias de reuniões e nada concluído. A decisão ficou para um novo encontro, marcado para 10 de setembro.
Nesse meio tempo, a comissão encomendou um relatório secreto para “nortear a decisão”. A encomenda foi pedida à médica Esté Vorster, ex-presidente do ILSI na África do Sul. Pedido feito e prontamente acatado, o documento produzido por Vorster mencionava uma nova análise que, supostamente, refutava a posição de Noakes, que só teria a oportunidade de ler o conteúdo quando um funcionário do conselho o enviou, por engano, aos advogados de defesa.
“No meu julgamento, apresentamos 12 dias de evidência científica. Em contraste, a acusação baseou-se em um único estudo”
O texto citado por Vorster recebera o apelido de “Naude Review” (Revisão Naude), em referência à autora principal, Celeste Naude. O estudo é aquele apoiado pelo ILSI e considerado uma fraude por Tim Noakes.
“Não havia base científica para os ataques. No meu julgamento, apresentamos 12 dias de evidência científica, incluindo o contra-interrogatório. Em contraste, a acusação baseou-se em um único estudo, o Naude Rewiew, que é irremediavelmente falho e até fraudulento. Os argumentos científicos produzidos pela acusação eram facilmente destruídos por nossos advogados de defesa”, enfatiza Noakes.
Realmente, uma boa pesquisa mapearia a situação sem muitas dificuldades. Celeste Naude, no ano de 2014, palestrou no “Simpósio Açúcar e Saúde”, evento da Associação do Açúcar, a mesma entidade que pagou os gastos com a pesquisa liderada por ela em 2015.
Em linhas gerais, a “Naude Review” classifica as dietas de baixo carboidrato (glicídios e açúcares) num patamar de consumo de 45% diários desses nutrientes. E descreve como “equilibrada” uma dieta com base de até 65% ao dia.
Quando a revisão foi publicada, em julho de 2016, as organizações de saúde financiadas pela indústria de junk food da África do Sul entraram em ação, usando a análise para tentar desacreditar Noakes. O material de divulgação da pesquisa recomendava entrar em contato com representantes da ADSA e HPCSA para mais informações.
Com ar triunfante, a Associação do Açúcar informou, nas redes sociais, “que novas descobertas desmascararam as alegações de que dietas pobres em carboidratos resultam em mais perda de peso”.
Só em dezembro de 2016 Tim Noakes conseguiu espaço e tempo para responder cientificamente. Em dupla com a pesquisadora estadunidense Zoë Harcombe, publicou a crítica “The universities of Stellenbosch/Cape Town low-carbohydrate diet review: mistake or mischief?” (As universidades de Stellenbosch/Cape Town na revisão da dieta de baixos carboidratos: erro ou prejuízo?), a respeito da “Naude Review”, mostrando que nem mesmo os padrões relatados na seleção de estudos para a revisão foram seguidos.
Quarto círculo: os avarentos
A “missão” da indústria é acumular riquezas materiais acima de preocupações com direitos fundamentais, como saúde, alimentação adequada e informações seguras. E algumas entidades ditas científicas fazem de tudo para engordar o caixa.
“Nenhuma unidade do ILSI no mundo é instituição científica. O que se tem, no ILSI, é uma organização funcionando para a Coca-Cola e muitas outras organizações com reputação duvidosa, como a Monsanto”, sentencia Tim Noakes.
De acordo com ele, financiamentos de empresas como a Coca-Cola são chamados na África de “fruta baixa”. Ou seja, são fáceis de alcançar. As corporações, sempre espertas, têm consciência de onde e com quem deixar essas frutas.
“Há cientistas que são atraídos para esse tipo de financiamento. Eles são mais narcisistas e mais fáceis de ser controlados pelos financiadores, pois são criticamente dependentes desses recursos”, analisa.
A indústria do açúcar, portanto, sabia a quem procurar com o objetivo de atacar o pesquisador. Nomes mais facilmente influenciáveis para encontrar o que as corporações queriam mostrar estavam à mão, no ILSI.
Não mais que um decoreba é a resposta típica das organizações financiadas pelas corporações quando se fala em doenças crônicas não transmissíveis e obesidade. Os altos e crescentes índices desses males seriam responsabilidade de pessoas que não se cuidam por “preguiça”. Dessa forma, uma questão difusa, de saúde pública, é individualizada. Os maus hábitos dos consumidores se tornam o centro do debate, numa manobra de desvio de foco.
Isso é ótimo à economia das corporações, que produzem itens de baixa qualidade nutricional em larga escala e os vendem em ritmo acelerado. E péssimo ao bolso dos cidadãos, do qual sai dinheiro para comprar comida porcaria e, depois, remédios. Duplamente péssimo: porque o prejuízo, muitas vezes, estoura no sistema público de saúde, nos tributos recolhidos, e são usados para reparar problemas causados pelo trilhardário setor privado da indústria alimentar. A África do Sul é um retrato fiel dessa situação.
Além de ser ex-presidente do ILSI, Esté Vorster manteve laços com a Associação do Açúcar Sul-Africano, que lhe financiou pesquisas por anos. Ela, inclusive, é integrante do painel científico da entidade, o que a OMS definiu “como um conflito de interesses“, recomendando que a médica “se abstivesse de participar dos debates específicos e do processo de tomada de decisões para o desenvolvimento de recomendações e orientações sobre os açúcares em âmbito mundial”.
No entanto, na África do Sul, ela ainda goza de um status de pesquisadora respeitada quando se fala em qualquer tópico relacionado a junk food. Enquanto presidia o ILSI, desenvolveu e foi coautora das primeiras orientações dietéticas do país, sempre par e passo com a Associação do Açúcar, a financiadora do primeiro workshop que balizou as diretrizes, realizado no Zimbábue.
Nesse evento, o ILSI pagou passagens e estadias a delegados que compactuavam com as orientações para “partilhar a experiência sul-africana com 11 outros países africanos.” A presidente do grupo de trabalho era Penny Love, que foi consultora da Associação do Açúcar, o que incluía organizar simpósios sobre “açúcar e saúde”.
Vorster e outro integrante do ILSI, o irlandês Michael Gibney (o mesmo que, em 2017, encabeçou um ataque à classificação NOVA, base do Guia Alimentar para a População Brasileira, criada pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde, liderado pelo professor da Faculdade de Saúde Pública da USP Carlos Monteiro), publicaram as primeiras diretrizes alimentares da África do Sul em 2001, no Journal of Clinical Nutrition. A publicação incluiu um artigo intitulado “Desenvolvimento de orientações alimentares dietéticas para a África do Sul – o processo”. Carol Browne, diretora da Associação do Açúcar, assinou como coautora, declarando a afiliação profissional como “relações públicas” da organização.
Mesmo assim, a expressão “conflito de interesses” não aparece em nenhum dos materiais publicados sobre as diretrizes. Porém, os documentos as manifestam por outras palavras: “os alimentos ricos em açúcares evitam doenças crônicas por vários efeitos e mecanismos”, garante uma parte do texto. Outro trecho traz a afirmação de que “a ingestão moderada de açúcar e alimentos ricos em açúcar também pode fornecer uma dieta saborosa e nutritiva”. De outro lado, inexistem recomendações para limitar a ingestão de açúcar.
O Departamento de Saúde da África do Sul aceitou as orientações para 2001. Provisoriamente, mas aceitou. Depois de pressões da sociedade civil e de alguns poucos cientistas, entre eles, Tim Noakes, a repartição decidiu cobrar dos “especialistas” que as diretrizes abordassem limitações ao consumo de açúcar.
O governo adotou oficialmente as primeiras diretrizes em 2003, com a pequena advertência de “ingerir alimentos e bebidas que contêm açúcar com moderação e evitar o ingrediente entre as refeições”.
Nove anos depois, em 2012, o governo sul-africano lançava a segunda edição das diretrizes dietéticas. E lá estava Esté Vorster, dessa vez como autora principal. O show de aberrações estava garantido. Apesar de a equipe dedicada ao “suporte técnico do açúcar” observar que “o consumo de açúcar adicionado parece estar aumentando constantemente em toda a população sul-africana”, as novas orientações foram ainda mais favoráveis à indústria açucareira. A advertência de não ingerir açúcares entre as refeições foi removida e substituída por uma frase pouco enfática “usar açúcar e alimentos e bebidas ricas em açúcar com moderação”.
Além de Vorster, a ADSA pediu a participação da indústria na criação das diretrizes de 2012. A indicada foi Sue Cloran, gerente de nutrição e marketing da Kellogg’s, e membro da força-tarefa do ILSI na Europa.
Três em um: ira + “heresia” = ciência violentada
Pode-se dizer que, durante o processo, Noakes viveu um conflito em várias trincheiras. Confrontou a ira da indústria e daqueles que a defendem fielmente, ainda que precisem “pecar” contra a ciência. E até violentá-la para proteger interesses privados.
Esté Voster chegou a esse ponto. Um problema para julgar e condenar Tim Noakes era a fragilidade da denúncia original de Claire Strydom, baseada no Twitter. A defesa do acusado dizia que “não havia base em evidências científicas”.
Na tréplica, não foi Strydom quem teve destaque, mas, sim, Vorster. Ela respondeu que não havia necessidade de apoiar a denúncia com “evidência experimental” e “que as referências das orientações dietéticas baseadas em alimentos pediátricos sul-africanos seriam suficientes”.
A partir dessas premissas nada confiáveis, a médica concluía que Noakes “ou não está familiarizado ou não confia nas atuais orientações dietéticas da África do Sul, e, portanto, não é qualificado para aconselhar sobre questões alimentares”. Claro que, em nenhum momento, ela falou sobre o fato de ser uma das principais autoras das orientações financiadas pela indústria açucareira.
Apesar de todos os problemas apresentados, o relatório de Vorster foi bem-sucedido no propósito inicial: a comissão responsabilizou Noakes em 10 de setembro de 2014. A sentença, chocante para ele e os advogados de defesa, alegava que o pesquisador teve “comportamento ou conduta não profissional, agindo contra a conformidade das normas e padrões de sua profissão e fornecendo conselhos não convencionais sobre amamentação de bebês em redes sociais”.
Oitavo círculo: hipocrisia
Perspectivas jornalísticas superficiais do julgamento de Tim Noakes eram publicadas aqui e ali na África do Sul. Repórteres que compareceram a uma audiência viram Claire Strydom desabar em lágrimas. Parecia difícil crer que aquele rosto delicado tomado pelo choro fosse parte de uma articulação pró-açúcar.
Strydom, contudo, era apenas a parte mais visível da investida contra o pesquisador. Havia peças muito mais poderosas atrás das cortinas. Quando apresentou a denúncia, Claire, além de presidente da Associação de Dietética da África do Sul, era consultora nutricional da Kellogg’s.
Com o julgamento iniciado, ela apagou a maioria da documentação on-line que expunha o relacionamento com a corporação. No entanto, não deu para esconder tudo. Ainda hoje é possível ver rastros. No site da empresa “para soluções nutricionais” pertencente a Strydom estão as experiências como consultora de muitas megaempresas, Kellogg’s inclusa.
Dentro da ADSA, Claire não está sozinha. A diretora Linda Drummond é “manager” de nutrição e relações públicas da Kellogg’s. Cheryl Meyer, responsável pela comunicação da associação, e Leanne Kiezer, tesoureira, eram, respectivamente, consultora e assistente nutricional da transnacional.
Os textos institucionais da ADSA procuram a isenção. “Nós não acreditamos no endosso de marcas para as comunidades para que trabalhamos” é a tônica do falatório, o que não combina com o mais de 1/3 da receita da entidade saído de patrocinadores corporativos, incluindo Nestlé e Unilever.
Tem mais. Em parceria com a Sociedade de Nutrição da África do Sul (NSSA), a ADSA organiza um congresso anual de nutrição. Os patrocínios são os óbvios. Gigantes das indústrias alimentar e farmacêutica; Associação do Açúcar Sul-Africano, Unilever, Nestlé Nutrition Institute, Kellogg’s, Glaxo Smith Kline e Discovery Vitality.
Em maio de 2014, as sociedades de nutrição locais ainda receberiam reforço institucional do ILSI, com o primeiro encontro sobre nutrição do instituto em território sul-africano. Dele, foi extraído um grupo de trabalho para o país. Isso ocorreu nove dias antes da primeira reunião da comissão da HPCSA que decidiria se Noakes seria julgado. A decisão foi adiada, mas a linha de frente a serviço do açúcar não perdeu tempo.
Nunca uma força-tarefa do ILSI havia sido criada com a especificidade de se dedicar à nutrição na África do Sul. E, logo, surgiria mais uma “coincidência”. A primeira atividade oficial do grupo foi a apresentação no congresso de nutrição da ADSA de 2014, com foco em construir “parcerias de colaboração entre academia, governo e indústria”.
Era setembro daquele ano, justamente quando Noakes recebia a notícia da confirmação do julgamento no conselho federal.
Três diretores do Departamento de Saúde da África do Sul falaram na sessão, representando as direções Nutricional, de Promoção da Saúde e Nutrição e de Doenças Não Transmissíveis, o que ajuda a dimensionar o poder da indústria do açúcar no país, que Tim Noakes enfrentava.
Nono círculo: a derrota da traição
Depois de cumprir um longo e tormentoso caminho, ficou mais fácil para Noakes compreender que não eram Claire Strydom ou Esté Vorster as grandes responsáveis pelo julgamento. Cada movimento deixava mais evidente quem estava mexendo as peças. Vieram as audiências e, em novembro de 2015, o conselho convocou “peritos” para formar o grupo de acusação.
Fora a previsível convocação de Vorster, vieram Ali Dhansay, Salomé Kruger e Willie Pienaar. Dhansay e Kruger possuem registros de relações com a indústria de comida porcaria.
Dhansay, que é pediatra, também presidiu o ILSI da África do Sul, em 2013, quando trabalhou em cooperação com representantes das megaempresas Coca-Cola, Mars, Nestlé e Bayer. Atualmente, é presidente da Sociedade de Nutrição da África do Sul, entidade de longeva proximidade com a indústria. Mais grave: chefia o South Africa Medical Research Council (Conselho de Pesquisa Médica da África do Sul). O homem que lidera a produção de pesquisas de intervenção nutricional para o governo sul-africano é o mesmo que mantém laços apertados com as corporações do açúcar.
Histórias de financiamentos pelo dinheiro do açúcar também não faltam a Salomé Kruger. Ela, que se apresenta como cientista da nutrição, teve pesquisa bancada pela Associação do Açúcar Sul-Africano. O trabalho atenua os efeitos da alimentação excessiva e de má qualidade e coloca o sedentarismo como o “principal determinante da obesidade em mulheres negras na província do Noroeste do país”. O estudo segue o padrão adotado pelo Global Energy Balance Network, da Coca-Cola, que patrocinou pesquisadores de vários países para comprovar que o problema não está no refrigerante, mas nas pessoas preguiçosas e sedentárias.
Noakes enfrentava um batalhão, mas a narrativa que mantinha era consistente. As audiências se arrastaram até 2017 e o pesquisador teve a oportunidade de responder uma a uma às críticas dos que o tinham como alvo. Dentre a estratégia de acusação, o único documento pretensamente científico usado contra ele (a análise de autoria de Celeste Naude e defendida por Esté Vorster) foi dissecado.
“Na verdade, fornecemos provas de que o documento é fraudulento. Os autores ainda precisam explicar como o artigo pode ter tantos erros. E as universidades em que trabalham não conseguiram completar avaliações críveis desses documentos para mostrar que os erros podem ser explicados por falha humana em vez de intenção deliberada de prejudicar a minha posição científica”, desabafa o professor.
Tim precisava contra-atacar de maneira fulminante. Para não deixar dúvidas, a defesa mostrou o quanto a adoção da dieta industrial moderna, à base de alimentos ultraprocessados, coincide com o aumento de doenças crônicas não transmissíveis. Também se concentrou na resistência à insulina como o principal motor das chamadas “doenças do estilo de vida”, que, na concepção de Noakes, são distúrbios nutricionais.
Em 21 de abril de 2017, o cientista foi absolvido do “crime” que não cometeu pelo comitê do HPCSA, por 4 votos a 1. Sequelas chegaram, porém. Se não materiais, já que os dois advogados principais, Mike van der Nest e Ravin Ramdass, trabalharam de graça, as consequências emocionais foram inevitáveis.
O desafio, então, era sair do estado depressivo após o trauma a que ele e familiares foram submetidos.
“Minha esposa e eu ficamos incrivelmente estressados durante todo o julgamento. Não podíamos pensar em nada além do julgamento e eu estava bastante deprimido, o que é o oposto do meu estado normal. Quando terminou, comecei a me curar, mas a depressão ameaçava voltar quando me lembrava do que passamos. Agora, esse poço de depressão parece ter sido esvaziado”, confessa o professor.
Talvez, uma das mais importantes saídas terapêuticas para Noakes combater a depressão e o estresse tenha sido perceber, depois de passada a tormenta, o que representou o resultado do processo: uma contundente derrota para todos os que promovem e se beneficiam das atuais diretrizes dietéticas sul-africanas.
“Eles nunca esperaram as consequências de suas ações imorais. Eles nunca imaginaram que escreveríamos um livro sobre tudo o que aconteceu comigo nos últimos anos. Agora, suas ações estão registradas para o mundo ver. Eles não conseguem se esconder das consequências do que fizeram”, diz Noakes.
É nessa parte que entra o segundo mecanismo terapêutico usado por Timothy David Noakes. O livro Lore of Nutrition, escrito em parceria com a jornalista sul-africana Marika Sboros, fornece respostas científicas a todos os ataques sofridos pelo pesquisador, que, na obra, não foge de nenhum tema. Traz, inclusive, a publicação dos argumentos de acusação na íntegra.
“É um livro de ciência, mas apresentado como se fosse um romance. Não poderíamos ter um veículo melhor para levar nossa mensagem para a África do Sul e, depois, para o mundo”, reflete o cientista, que agora aguarda o resultado do julgamento de uma apelação da acusação junto ao HPCSA, que deve sair ainda neste mês.
Mais de 36 mil pessoas, principalmente profissionais de saúde de várias partes do planeta, tinham assinado, até o fechamento desta reportagem, uma petição criada por um grupo de médicos independentes dos Estados Unidos reivindicando que o processo contra o pesquisador seja extinto.
Enquanto isso, Noakes segue trabalhando e afirma que a missão é levar o mais longe possível a mensagem de uma alimentação realmente equilibrada, com “comida de verdade” e baixa quantidade de carboidratos/açúcares, principalmente para os resistentes à insulina. Ele está perto de iniciar um teste de uma dieta econômica e baixa em ultraprocessados e carboidratos nas comunidades mais pobres da África do Sul.
O cientista conta que, após a publicação do livro, se emocionou ao receber mensagens de “um grande número de colegas médicos”, que escreveram para anunciar mudanças de práticas, se concentrando no papel da nutrição nas doenças crônicas.
“Esperamos que o livro também ajude o público a perceber até que ponto sofremos lavagem cerebral para acreditar numa série de mitos alimentares promovidos para o benefício financeiro das indústrias farmacêutica e alimentar. Que as pessoas percebam que o que acreditamos sobre alimentos e o que escolhemos comer como resultado serão os principais determinantes de como vivemos. E, igualmente importante, de como morremos”, finaliza Tim Noakes.
De quem conhece
Se Tim Noakes é referência há tempos no Continente Africano e ganhou projeção nos Estados Unidos e Europa, na América Latina o trabalho dele ainda é pouco conhecido. Mesmo o caso do julgamento bancado pela indústria do açúcar foi quase negligenciado pelos noticiários daqui.
Um dos poucos que acompanha sistematicamente a pesquisa do cientista africano e que tem conhecimento profundo sobre as circunstâncias da “guerra nutricional” travada na África do Sul é o médico José Carlos Brasil Peixoto, de Porto Alegre.
“O que a indústria e as associações financiadas por ela fizeram ao Tim Noakes foi uma demonstração do poder financeiro das corporações. Foi uma exibição que levou um recado a pesquisadores do mundo todo: ‘Quem se posicionar contra a indústria do açúcar e dos ultraprocessados vai sentir o nosso poder’”, destaca Peixoto.
Para ele, a postura de Noakes colocou “em alerta máximo” os interesses da grande indústria alimentar. Por isso, a reação veio com um exemplo de força e coerção.
“Naturalmente, as forças do poder estão totalmente infiltradas em instituições oficiais, na educação, entidades de regulamentação e vários órgãos de governo. Há nomes pomposos que representam e, ao mesmo tempo, encobrem esses interesses. Aparentemente, na África do Sul, assim como no Brasil, a justiça é o braço forte do rei. Obviamente, a ciência de verdade não existe para garantir interesses. No entanto, se os financiadores das pesquisas são os mesmos que lucram com seus resultados, quem pode chamar isso de ciência?”, questiona o médico gaúcho.
Nota de Rodapé: as pequenas descrições dos círculos do inferno presentes no texto não expressam nenhum tipo de posição religiosa do autor ou de O joio e o trigo. São, na verdade, referências literárias e remetem à obra A Divina Comédia, escrita pelo autor florentino Dante Alighieri, no século 14.
Nota de Rodapé 2: saiba mais sobre a atuação de organizações como o ILSI no Brasil aqui e aqui.
Fonte – Moriti Neto, O Joio e o Trigo de 06 de março de 2018
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