Por José Tadeu Arantes - Agência FAPESP - 31 de outubro de 2024 - Estratégia…
A humana é uma “espécie anômala” – explodiu os mecanismos espontâneos de autorregulação das populações animais que habitam o nosso pequeno e frágil planeta
O papa Francisco vem denunciando um complexo estado de crises, não apenas ambiental, mas também civilizacional. O sociólogo Giuseppe Fumarco vai ao pensamento de Edgar Morin para tentar compreender esse estado. Segundo o professor, antes de pensar em saídas, é preciso compreender a complexidade em que estamos imbricados. Por isso, recupera o pensamento de Morin quando diz que “a complexidade não é uma receita que se oferece para nós, mas sim o apelo à ‘civilização das ideias’. A barbárie das ideias significa também que os sistemas de ideias são bárbaros uns em relação aos outros. As teorias não sabem dialogar umas com as outras. A palavra barbárie, de fato, quer dizer ‘fora de controle’”. Para Fumarco, o autor evidencia que “embora aparentemente progrida a ‘civilização’ de muitos povos, ao mesmo tempo, têm-se incríveis regressões”. É o caso do Ocidente, que vive seu fetichismo pelo consumo enquanto países do Oriente são destroçados.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o sociólogo também reflete sobre Donald Trump, alinhado como força contrária a Francisco. “A escolha de Trump nos permite entender o que significa quando se fala de ‘novas ignorâncias’. Como muitos ilustres pedagogos do século XX tinham previsto, sem uma sistemática ‘educação ao civismo’, a democracia só pode degenerar”, destaca. E, ainda, avalia a inabilidade da esquerda mundial para compreender crises. “A esquerda também aderiu aos desvios neoliberais, já que não amadureceu ao longo do tempo uma consciência intelectual que lhe torne capaz de enfrentar os desafios totalmente novos que a globalização coloca’, dispara.
Giuseppe Fumarco é sociólogo na Itália, foi professor de Direito e Economia nas escolas superiores, formador de adultos em várias entidades e pesquisador do Istituti Regionali di Ricerca Educativa – IRRE Piemonte (ex-IRRSAE). Escreveu um livro de história do pensamento econômico sobre J. A. Schumpeter e dois estudos sobre a autonomia escolar e a profissão docente. Mais recentemente, ocupou-se do pensamento da complexidade, chegando, por fim, à vasta produção de Edgar Morin, sobre a qual realiza palestras e seminários.
IHU On-Line – A partir de Edgar Morin [1], como compreender o conceito de globalização? E de que forma sua perspectiva pode iluminar compreensões sobre o nosso tempo e nossas crises?
Giuseppe Fumarco – Vou responder expondo por inteiro a definição que Morin nos dá da “idade do ferro planetária” que estamos vivendo:
“‘A idade do ferro planetária’ indica que entramos na era planetária na qual todas as culturas e todas as civilizações já estão em interconexão permanente. Mas indica também que, apesar de todas essas intercomunicações, estamos em uma barbárie total nas relações entre raças, culturas, etnias, potências, nações e superpotências. Nós estamos nesta idade do ferro, e ninguém sabe ‘se’ e ‘quando’ sairemos dela. A coincidência entre a idade do ferro planetária e a ideia de que estamos na pré-história da mente humana, na era da barbárie das ideias, não é uma coincidência fortuita. Pré-história da mente humana significa que, no plano do pensamento consciente, estamos apenas no início. Ainda estamos submetidos a modelos mutilantes e disjuntivos do pensamento e é bastante difícil pensar de modo complexo. A complexidade não é uma receita que se oferece para nós, mas sim o apelo à ‘civilização das ideias’. A barbárie das ideias significa também que os sistemas de ideias são bárbaros uns em relação aos outros. As teorias não sabem dialogar umas com as outras. A palavra barbárie, de fato, quer dizer ‘fora de controle’. Por exemplo, a ideia de que o progresso da civilização é acompanhado pelo progresso da barbárie é uma ideia totalmente aceitável apenas se compreendermos a complexidade do mundo histórico-social. A recente atomização das relações humanas (também resultantes dos processos de civilização urbana com todos os fatores de bem-estar que ela trouxe consigo) leva a agressões, à barbárie, a insensibilidades incríveis. É preciso superar as ilusões eufóricas do Progresso sem cair nas visões apocalípticas ou milenaristas; trata-se de entrever que estamos, talvez, no fim de certos tempos e, esperamos, no início de tempos novos.”
IHU On-Line – Como compreender a nova era que vivemos, o Antropoceno[2] ?
Giuseppe Fumarco – O termo “antropoceno” não foi cunhado por Morin, mas pelo químico holandês Paul Crutzen [3], no ano 2000. É composto pelo grego ἄνϑρωπος (“homem”), com o acréscimo do segundo elemento, “ceno”. Pode-se definir assim a época geológica atual em que o ambiente terrestre, no conjunto das suas características físicas, químicas e biológicas, é fortemente condicionado, tanto em escala local quanto em escala global, pelos efeitos da ação humana: com particular referência ao aumento das concentrações de CO2 na atmosfera, o derretimento das geleiras, o aumento tendencial médio da temperatura terrestre e a consequente elevação do nível dos mares, o desmatamento e a desertificação de algumas partes do planeta etc. E, mais em geral, a poluição de toda a biosfera. Na realidade, a classificação por eras geológicas à qual se atêm os especialistas desse setor continua nos colocando no Holoceno [4], que iniciou há 11 mil anos e ainda não se concluiu.
“Antropoceno”, portanto, significa conotar uma época a partir da qual a presença e a intervenção do homem sobre a natureza e sobre os equilíbrios ambientais está se tornando cada vez mais “pesado” e alcança um limiar crítico para além do qual alguns desses aspectos de degradação ecológica tornam-se irreversíveis.
IHU On-Line – No que consistem e quais os desafios para se compreender a crise ecológica, definida pelo papa Francisco?
Giuseppe Fumarco – O desenvolvimento (evolutivo e involutivo, ao mesmo tempo) das nossas sociedades na era do antropoceno se “rapidizou” (em espanhol, “rapidación”), no sentido de que sofreu – particularmente depois da revolução industrial do século XX – um processo de aceleração devido à evolução da tecnociência que não tem nada a ver com os tempos dos processos biológicos e ecológicos naturais do planeta.
Como ressalta o Papa: “embora a mudança faça parte da dinâmica dos sistemas complexos, a velocidade que hoje lhe impõem as ações humanas contrasta com a lentidão natural da evolução biológica”, acrescentando, em um parágrafo posterior: “Depois dum tempo de confiança irracional no progresso e nas capacidades humanas, uma parte da sociedade está entrando em uma etapa de maior consciencialização. Nota-se uma crescente sensibilidade relativa ao meio ambiente e ao cuidado da natureza, e cresce uma sincera e sentida preocupação pelo que está acontecendo ao nosso planeta” (Laudato si’, par. 18 e 19].
A Encíclica [5] prossegue evidenciando a “cegueira da tecnologia” (par. 20), o problema da má eliminação dos resíduos, da poluição: “A terra, nossa casa, parece transformar-se cada vez mais em um imenso depósito de lixo” (par. 21). É essa “cultura do descarte” que deriva também da circunstância de que “ainda não se conseguiu adotar um modelo circular de produção” (par. 22).
Depois, é reproposta a problemática do aquecimento climático global, devido ao uso intensivo de combustíveis fósseis e à consequente necessidade, para a humanidade, de mudar de estilos de vida, de produção e de consumo (par. 23).
Círculos viciosos
A Encíclica também acena aos numerosos “círculos viciosos ambientais” (cfr. conceito de “recursividade” em Morin), dando o exemplo do derretimento das geleiras polares e das elevadas altitudes que são “efeito” do aumento global da temperatura e, ao mesmo tempo, “causa” de um aumento adicional dela (por redução do efeito de espelho da irradiação solar das geleiras, que, em consequência da sua reduzida superfície refletora, permanece ainda mais aprisionada na atmosfera). Depois, é citado outro círculo vicioso, ligado ao desmatamento selvagem que reduz a capacidade do patrimônio florestal global de capturar dióxido de carbono e liberar oxigênio, combatendo, assim, o aumento da toxicidade da atmosfera (par. 24). A Encíclica conecta tais comportamentos negativos ao estilo de vida “ocidental” com o seu impacto negativo sobre as populações mais pobres do planeta: “As mudanças climáticas dão origem a migrações animais e vegetais…”, que são muitas vezes recursos para as populações locais, as quais também se veem, assim, forçadas a emigrar: “É trágico o aumento de emigrantes em fuga da miséria agravada pela degradação ambiental” (par. 25).
Uma terra cada vez mais cinzenta e limitada
A Encíclica continua examinando criticamente a questão da água (por exemplo, a pobreza de água pública na África) (par. 27 e ss.), da perda da biodiversidade (par. 32 e ss.), do impacto ambiental das iniciativas econômicas “a serviço das finanças e do consumismo” (par. 34), da retirada descontrolada dos recursos hídricos (par. 40), e como tudo isso tem como consequência o fato de que “esta terra onde vivemos se torne realmente menos rica e bela, cada vez mais limitada e cinzenta”[6] .
IHU On-Line – É possível afirmar que a crise civilizacional é o núcleo do estado de crises que vivemos? Por quê?
Giuseppe Fumarco – Morin afirma: “Pré-história da mente humana significa que, no plano do pensamento consciente, estamos apenas no início. Ainda estamos submetidos a modelos mutilantes e disjuntivos do pensamento e é bastante difícil pensar de modo complexo. A complexidade não é uma receita que se oferece para nós, mas sim o apelo à ‘civilização das ideias’. A barbárie das ideias significa também que os sistemas de ideias são bárbaros uns em relação aos outros. As teorias não sabem dialogar umas com as outras. A palavra barbárie, de fato, quer dizer ‘fora de controle’. Por exemplo, a ideia de que o progresso da civilização é acompanhado pelo progresso da barbárie é uma ideia totalmente aceitável apenas se compreendermos a complexidade do mundo histórico-social”.
Esta última observação significa que, embora aparentemente progrida a “civilização” de muitos povos, ao mesmo tempo, têm-se incríveis regressões. Enquanto no Ocidente se vive no fetichismo mercantilista e no hiperconsumismo que desperdiça (sem, por isso, ter eliminado a pobreza e o desemprego, que, ao contrário, na última década, aumentaram quase por toda a parte), em outros contextos do mundo em desenvolvimento não foram resolvidos problemas essenciais, tais como o de saciar a todos ou garantir a todos o acesso à água potável. Além disso, observamos que alguns grandes países de antiga civilização da Ásia seguem insensatamente o modelo ocidental, com perigosas consequências para os equilíbrios ecológicos.
Em nível de “noosfera” (a esfera de pensamento e das ideias), quase inacreditavelmente, recuperaram vigor contrastes mortíferos que alguns autores definiram – em nossa opinião, erroneamente – como “choques de civilizações”. Basta ver aquilo que acontece em nível de nações de religiosidade muçulmana, tanto como conflitos internos (xiitas contra sunitas) quanto como “contradependência indesejada” desses países em relação ao Ocidente.
“Em vez de buscar a unidade na diversidade e de salvaguardar a diversidade na unidade, ainda hoje, as relações entre os Estados e as nações são em nível de barbárie”
Psicopatologia das relações entre os povos
Nas relações internacionais, particularmente, prevalecem lógicas imperialistas, de domínio, de prevaricação, de fanatismo e de extremização das diferenças religiosas e espirituais etc. Em vez de buscar “a unidade na diversidade” e de salvaguardar “a diversidade na unidade”, ainda hoje, em 2017, as relações entre os Estados e as nações são em nível de barbárie.
Os Estados Unidos persistem em uma visão unilateral das suas relações com o resto do mundo, e, assim, torna-se difícil mover-se rumo àqueles equilíbrios multipolares que, sozinhos, poderiam garantir paz e segurança para as gerações futuras. Nestes últimos anos, em particular, pode-se fazer uma leitura daquilo que acontece em nível geopolítico internacional nos termos de uma verdadeira “psicopatologia das relações entre os povos” causada, ao mesmo tempo, pelo comportamento paranoico de alguns importantes expoentes das classes políticas dirigentes nacionais e pelo comportamento hiperegoísta das classes que detêm o poder em nível econômico transnacional (a nova classe capitalista transnacional). Todos comportamentos que impulsionam “de facto” muitas nações a agirem umas em relação às outras na lógica bárbara e atávica do “amigo/inimigo” (ou você está comigo ou está contra mim).
IHU On-Line – Qual sua leitura de Laudato si’? Como analisa a forma que Francisco tece a teia de relações entre as crises até chegar à formulação de uma crise ecológica?
Giuseppe Fumarco – Só posso concordar plenamente com a análise do papa Francisco, assim como argumentado na minha intervenção publicada na newsletter do [Centro de Estudos] “Sereno Regis”: “A encíclica Laudato Si’, o pensamento de Edgar Morin, a complexidade da realidade” [7].
IHU On-Line – De que forma o documento apostólico pode inspirar outras concepções que levem a pensar para além da crise ecológica? E, nesse sentido, quais os limites do documento?
Giuseppe Fumarco – Um dos limites mais problemáticos da Laudato si’ consiste na circunstância de que o Papa, lá, não aborda a questão demográfica. No meu livro “Complexus” [8] , eu defendia:
“Partimos de uma primeira constatação banal: os 7 bilhões de indivíduos que povoam o planeta (entre os 8 e os 9 bilhões previstos para 2050) há muito tempo já superaram a capacidade do ecossistema que os sustenta. Cada alerta neste campo já é irremediavelmente tardio. A humanidade – em particular desde a Revolução Industrial – prosseguiu antropizando selvagem e destrutivamente a biocenose e o biótopo em que habitava e, assim, se metamorfoseou […]. Poderá (talvez) sobreviver, mas em condições psiquicamente alienadas. Para rastrear uma relação mais equilibrada com a natureza, devemos remontar para bem antes da Revolução Industrial.”
Devemos sempre recordar que todos os problemas que estamos elencando seriam de origem muito inferior se, em vez de sermos 7 bilhões, fôssemos, por exemplo, na ordem de alguns milhões sobre todo o planeta. No meu texto, eu citava o grande etólogo austríaco Konrad Lorenz [9], que, em um livreto publicado em 1973, intitulado Os oito pecados capitais da nossa civilização, colocava de forma significativa entre os dois primeiros “pecados” a “superpopulação mundial” e a consequente “redução/devastação do espaço vital”.
Pode-se estar de acordo ou não com o elenco das criticidades propostas por Lorenz (que aqui, por razões de espaço, não retomamos), mas o fato, significativo para nós, é que um etólogo atento às lógicas dos comportamentos animais coloca na raiz dos muitos desvios atuais da humanidade justamente o dado quantitativo do excessivo povoamento do planeta por parte da espécie Homo sapiens. A humana é uma “espécie anômala”, que fez explodir os mecanismos espontâneos de autorregulação das populações animais que habitam o nosso pequeno e frágil planeta.
A partir da denúncia do “Clube de Roma” [10] de Aurelio Peccei [11] (fim dos anos 1960), muitas foram as tomadas de posição de personagens renomados em favor da temática da redução da natalidade e das políticas de contenção da população.
“O homem não é só sapiens, mas também demens, isto é, destrutivo, agressivo”
IHU On-Line – Como pensar outro modelo de desenvolvimento global? E quais os desafios para conscientizar a humanidade de que cada um é parte do todo nessa construção de outro modelo civilizacional?
Giuseppe Fumarco – Pergunta, por si só, “complicada” demais, mais do que complexa. Um novo “modelo de civilização”, por enquanto, é impensável. O homem não é só “sapiens”, mas também “demens”, isto é, destrutivo, agressivo etc. Sofre a hubris (desmesura, do grego) em consequência das contínuas turbas que irrompem no seu cérebro “triúnico” sujeito a uma dialética permanente entre paixões e racionalidade, instintos e emoções…
Quanto a pensar em um “novo modelo de desenvolvimento” (abriria mão do “global”), por enquanto, para mim, isso significa retornar para as questões não resolvidas que o século XX nos deixou. Uma acima de todas: qual deve ser o papel de um Estado “suficientemente” democrático (pois a democracia também é uma ideologia, eu diria muito “utópica”) para um novo “welfare state” que não tropece nas tesouras da dívida pública? A resposta keynesiana parecia adequada, mas, neste momento, os economistas sofrem maciçamente a nefasta influência do pensamento liberal neoclássico.
Por fim: não tenho respostas sobre a questão de como “conscientizar a humanidade” para fazer com que ela compreenda que “cada um é parte do todo”. As taxas de escolarização aumentaram um pouco em todos os países, mas, por enquanto, não parece que isso tenha tido um impacto tão positivo sobre as “tomadas de consciência”… A confusão e o “ruído” da hipercomunicação de massa atordoam as mentes, e novas ignorâncias, paradoxalmente, crescem precisamente agora.
IHU On-Line – O mundo vive um momento ímpar com a ascensão da “extrema-direita”, que prega o nacionalismo radical e recusa o outro, como exemplo a figura de Donald Trump[12] e suas propostas que recusam o enfrentamento da crise ecológica. Como chegamos a esse momento?
Giuseppe Fumarco – O “soberanismo” e o retorno ao “particular” constituem a lógica reação por parte dos povos que veem justamente na globalização (assim como ela está acontecendo) riscos, inseguranças, novos medos etc. A nova classe capitalista transnacional parece caracterizada por uma não eticidade impressionante. Novas injustiças na distribuição de renda desenham um mundo onde os ricos se tornam cada vez mais ricos e os pobres, cada vez mais pobres. Sem sinais significativos de inversão dessas tendências, a humanidade certamente não terá um futuro “vivível”.
“O caso estadunidense e a escolha de Trump nos permitem entender o que significa quando se fala de ‘novas ignorâncias’”
O caso estadunidense e a escolha de Trump nos permitem entender o que significa quando se fala de “novas ignorâncias”. Como muitos ilustres pedagogos do século XX tinham previsto, sem uma sistemática “educação ao civismo”, a democracia só pode degenerar e reabrir o caminho para todo tipo de neototalitarismos. Trump e a direita são os primeiros sinais. Jornalismo e meios de comunicação de massa têm uma grande parte de responsabilidade nessas regressões globais: muito poucos se movem contra a corrente.
IHU On-Line – E, por outro lado, em que medida é possível afirmar que a “esquerda” global é inábil na compreensão da complexidade da teia da vida, para muito além do paradigma do consumo e desenvolvimento?
Giuseppe Fumarco – A esquerda (salvo raras exceções minoritárias) também aderiu aos desvios neoliberais, já que não amadureceu ao longo do tempo uma consciência intelectual que lhe torne capaz de enfrentar os desafios e os pontos nodais totalmente novos que a globalização (ou, melhor: a “planetarização”) coloca. Além disso, na Europa, os chamados movimentos “populistas” pregam que não se pode mais pensar em termos de direita e de esquerda: erro muito grave, pois essa atitude ambígua e “agnóstica” aumenta o nível de confusão. O pós-ideologismo certamente não devia ser abordado em termos de simplificação, mas, sim, como aceitação do desafio da complexidade.
IHU On-Line – A maior das desigualdades de nosso tempo consiste em quê? E como enfrentá-la?
Giuseppe Fumarco – Há diversos níveis de desigualdades: a desigualdade das oportunidades desde o nascimento, as desigualdades entre os diversos países, as diversas nações e os diversos grupos étnicos, as desigualdades dentro dos países individuais e das nações individuais, as desigualdades de gênero etc. Temos diante dos nossos olhos um desconfortante panorama de desigualdades de todos os tipos.
Esta também é a minha tristeza mais profunda, que se liga a uma sensação pessoal negativa de impotência. Eu admiro o Papa pelo otimismo que ele consegue expressar e difundir ao seu redor. Mas temo que não seja suficiente: Francisco é escutado e aplaudido, mas os chamados poderes fortes e o establishment transnacional continuarão se movendo de modo automático de acordo com os próprios mecanismos endógenos perversos.
Infelizmente, o “desafio da complexidade” impunha a adoção de novos registros conceituais, de novos mapas mentais capazes de tentar, ao menos, enfrentar, senão resolver também e “sobretudo” esses problemas. A desigualdade em nível planetário – como bem escreveu o Papa – se liga à degradação ecológica. O “todo” é complexo precisamente por ser inter-relacionado, conectado… às vezes por fios invisíveis.
Ninguém tem nem terá, a meu ver, a coragem de enfrentar, no futuro próximo vindouro, o “desafio dos desafios”, o mais radical, que certamente não é a busca do igualitarismo absoluto, mas, pelo menos, de uma igual oportunidade para todos no nascimento. Hoje, isso é pura Utopia. Amanhã… quem viver verá (João Paulo II).
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Giuseppe Fumarco – Bergoglio vem das minhas terras, de um vilarejo em Asti. Os meus parentes são “monferrinos” exatamente como os seus antepassados antes da migração para a Argentina. Eu ainda tenho parentes distantes na Argentina, com os quais às vezes estou em contato. Isso criou, desde já, um feeling subterrâneo com esse papa de ar tão bondoso; a minha gente, muitas vezes, foi definida pelos escritores justamente como que caracterizada por uma certa bondade natural.
Notas
[1] Edgar Morin (1921): sociólogo francês, autor da célebre obra O Método. Os seis livros da série foram tema do Ciclo de Estudos sobre “O Método”, promovido pelo IHU em parceria com a Livraria Cultura de Porto Alegre em 2004. Embora seja estudioso da complexidade crescente do conhecimento científico e suas interações com as questões humanas, sociais e políticas, se recusa a ser enquadrado na sociologia e prefere abarcar um campo de conhecimentos mais vasto: filosofia, economia, política, ecologia e até biologia, pois, para ele, não há pensamento que corresponda à nova era planetária. Além de O Método, é autor de, entre outros, A religação dos saberes. O desafio do século XXI (Bertrand do Brasil, 2001). Confira a edição especial sobre esse pensador, intitulada Edgar Morin e o pensamento complexo, de 10-09-2012. O IHU, na seção Notícias do Dia, em seu sítio, vem publicando uma série de textos e reflexões sobre o pensamento de Morin. (Nota da IHU On-Line) [2] Antropoceno: termo usado por alguns cientistas para descrever o período mais recente na história do Planeta Terra. O sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU tem tratado dessa perspectiva em diversas publicações. Entre elas “Antropoceno: ou mudamos nosso estilo de vida, ou vamos sucumbir”. Entrevista especial com Wagner Costa Ribeiro, publicada nas Notícias do Dia, de 29-02-2016. (Nota da IHU On-Line) [3] Paul Josef Crutzen (1933): químico holandês, laureado com o Nobel de Química de 1995, por seu estudo sobre a formação e decomposição do ozônio na atmosfera. Membro da Pontifícia Academia das Ciências em 25 de junho de 1996. É professor do Instituto Max Planck de Química em Mainz, Alemanha. O asteroide 9679 Crutzen é denominado em sua homenagem. Ele cunhou o termo antropoceno e desenvolveu a teoria a que este corresponde. (Nota IHU On-Line) [4] Holoceno: divisão da escala de tempo geológico, é a última e atual época geológica do Quaternário. O começo de o Holoceno é definido na mudança climática correspondente à do final do episódio frio conhecido como o Dryas recente, após a última glaciação, e abrange os últimos 11.784 anos, tendo 2000 como referência de tempo base. Ele é um período interglacial em que a temperatura foi mais suave e diferentes calotas desapareceu ou diminuição do volume, o que causou uma elevação do nível do mar. (Nota da IHU On-Line) [5] O entrevistado se refere a Encíclica Laudato Si’: encíclica do Papa Francisco, na qual critica o consumismo e desenvolvimento irresponsável e faz um apelo à mudança e à unificação global das ações para combater a degradação ambiental e as alterações climáticas. Publicada oficialmente em 18 de junho de 2015, mediante grande interesse das comunidades religiosas, ambientais e científicas internacionais, dos líderes empresariais e dos meios de comunicação social, o documento é a segunda encíclica publicada por Francisco. A primeira foi Lumen fidei em 2013. No entanto, Lumen fidei é na sua maioria um trabalho de Bento XVI. Por isso Laudato Sí’ é vista como a primeira encíclica inteiramente da responsabilidade de Francisco. A revista IHU On-Line publicou uma edição em que analisa debate a Encíclica. (Nota da IHU On-Line) [6] As referências às afirmações do Papa Francisco são tiradas diretamente dos parágrafos numerados da encíclica “Laudato si’: Encíclica sobre o cuidado da casa comum”, Livraria Editora Vaticana, Roma, 2015. (Nota do entrevistado) [7] O texto foi publicado em Português pelo IHU, no Cadernos Teologia Pública número 114. (Nota da IHU On-Line) [8] “Complexus. Leggere il presente sulle orme di Edgar Morin”, Effetto Farfalla, 2013. Istituto per l’Ambiente e l’Educazione “Scholé Futuro”, Onlus, Turim. (Nota do entrevistado) [9] Konrad Zacharias Lorenz (1903-1989): foi um zoólogo, etólogo e ornitólogo austríaco. Foi agraciado com o Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1973, por seus estudos sobre o comportamento animal, a etologia. Em 1935 descreveu o processo de aprendizagem nos gansos e criou o conceito de “imprinting”. Este é um fenômeno exibido por vários animais filhotes, principalmente pássaros tais quais pintinhos e patinhos. Após saírem dos ovos seguirão o primeiro objeto em movimento que eles encontrarem no ambiente, o qual pode ser a mãe, mas não necessariamente. (Nota da IHU On-Line) [10] Clube de Roma: é um grupo de pessoas ilustres que se reúnem para debater um vasto conjunto de assuntos relacionados a política, economia internacional e, sobretudo, ao meio ambiente e o desenvolvimento sustentável. Foi fundado em 1966 pelo industrial italiano Aurelio Peccei e pelo cientista escocês Alexander King. Tornou-se muito conhecido a partir de 1972, ano da publicação do relatório intitulado Os Limites do Crescimento, elaborado por uma equipe do MIT, contratada pelo Clube de Roma e chefiada por Dana Meadows. O relatório, que ficaria conhecido como Relatório do Clube de Roma ou Relatório Meadows, tratava de problemas cruciais para o futuro desenvolvimento da humanidade, tais como energia, poluição, saneamento, saúde, ambiente, tecnologia e crescimento populacional, foi publicado e vendeu mais de 30 milhões de cópias em 30 idiomas, tornando-se o livro sobre ambiente mais vendido da história. (Nota do IHU On-Line) [11] Aurelio Peccei (1908-1984): foi um estudioso e industrial italiano, mais conhecido como o fundador e primeiro presidente do Clube de Roma – uma organização que Levantou a atenção pública considerável em 1972 com seu relatório os limites ao crescimento. (Nota da IHU On-Line) [12] Donald John Trump (1946): é um empresário, ex-apresentador de reality show e presidente eleito dos Estados Unidos. Na eleição de 2016, Trump foi eleito o 45º presidente norte-americano pelo Partido Republicano, ao derrotar a candidata democrata Hillary Clinton no número de delegados do colégio eleitoral; no entanto, perdeu no voto popular. Trump tomou posse em 20 de janeiro de 2017 e, aos 70 anos de idade, é a pessoa mais velha a assumir a presidência. Entre suas bandeiras estão o protecionismo norte-americano, por onde passam questões econômicas e sociais, como a relação com imigrantes nos Estados Unidos. Trump é presidente do conglomerado The Trump Organization e fundador da Trump Entertainment Resorts. Sua carreira, exposição de marcas, vida pessoal, riqueza e modo de se pronunciar contribuíram para torná-lo famoso. (Nota da IHU On-Line)Fonte – João Vitor Santos, tradução Moisés Sbardelotto, IHU de 25 de março de 2017
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