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A inovação budista para se adaptar à mudança climática

Estupa de gelo perto do monastério de Phyang, Ladakh, em abril de 2016Estupa de gelo perto do monastério de Phyang, Ladakh, em abril de 2016 PROYECTO ESTUPAS DE HIELO.

Engenheiro cria geleiras artificiais inspiradas em monumentos para combater a seca no Himalaia

Índia sempre oferece exemplos de adaptação aos meios naturais mais adversos. Em junho, depois de oito longos meses de inverno, as estradas de Ladakh, no extremo noroeste do país, se livram de colossais blocos de gelo. A mais de 3.000 metros de altitude, a vegetação desaparece, e as rochas se exibem perante desafiadores precipícios. Os rugidos do vento são o único som nestas terras desoladoras e de exuberante beleza. As únicas notas de cor, em muitos quilômetros ao redor, são bandeiras de preces budistas e parcos monastérios brancos, erguidos de forma caprichosa entre penhascos. A cultura e paisagem de Ladakh são virtualmente idênticas às da terra do Dalai Lama.

Este pequeno Tibete se abre a turistas, alpinistas e místicos sedentos por paisagens de alta montanha, festividades budistas, meditação e esportes radicais. A maioria desconhece que os camponeses locais batalham contra os efeitos de uma acelerada deglaciação que põe sua subsistência em risco. Também ignoram as novas invenções locais para se adaptar aos efeitos da mudança climática. Entre as mais recentes estão as estupas de gelo, monumentos sagrados que servem como reservatórios de água congelada para a irrigação.

Jean Paul é um experiente viajante francês que conhece bem o Tibete e é um apaixonado pela região ladakhi. No verão passado, ao visitar o lago Tsokar, um dos lugares favoritos para a observação de aves migratórias, teve uma desagradável surpresa: o lago estava praticamente seco. Conforme lhe contaram os aldeões, era a primeira vez que o viam assim. A grua de pescoço negro, um ave mítica no budismo tibetano, estava ausente, e só alguns asnos selvagens rondavam o que era agora uma várzea seca. A surpresa de Jean Paul poderia se explicar pela combinação da redução das nevadas e de um aumento constante e intenso das temperaturas.

Enquanto as geleiras planas derretem em questão de dias, uma cônica pode levar semanas. SONAM WANGCHUNK, FUNDADOR DAS ESTUPAS DE GELO

Em Ladakh, um dos lugares mais afastados da industrialização no mundo todo, a temperatura subiu dois graus desde 1980. É o mesmo aumento que, comparado aos níveis pré-industriais, a comunidade internacional se comprometeu a evitar até o final deste século, na cúpula de Paris de 2016 – embora alguns dirigentes, como Donald Trump, tenham retirado seu país do acordo.

Sem água não há vida selvagem e, se ela não chegar a tempo, a agricultura tampouco é possível. Em Ladakh, os assentamentos humanos se adaptaram durante séculos para dispor da água do degelo das geleiras no começo da primavera. Assim, os camponeses têm o tempo exato para semear antes que chegue o tórrido calor do verão, e colher antes que as temperaturas desabem abaixo dos 30 graus negativos. Com o derretimento das geleiras, elas recuaram para cotas mais altas. Ali permanecem mais tempo refrigeradas, e só degelam no final da primavera. Tarde demais para os agricultores.

Tenzin é um dos camponeses de uma pequena aldeia de Markha, um estreito vale onde o caudaloso rio Zanskar, um afluente do Indo, serpenteia entre precipícios de rochas avermelhadas, e onde a única vida que aparece das alturas é a das vigilantes cabras azuis do Himalaia. Tenzin acha muito difícil que os jovens possam seguir a tradição agrícola se continuar nevando menos, e entende, com resignação, que os jovens abandonem as aldeias.

Trabalhador posa junto a uma estupa de gelo em processo de construçãoTrabalhador posa junto a uma estupa de gelo em processo de construção PROYECTO ESTUPAS DE HIELO

A vida em Ladakh exige uma capacidade extraordinária de adaptação, e as mudanças climáticas são extremas. Embora o aumento de temperaturas produza secas no começo da primavera, também acarreta um excesso de água no verão. Em junho, quando as temperaturas são mais altas do que o habitual, acelera-se o derretimento das geleiras. Enormes blocos de gelo se fundem com rapidez e transbordam o caudal dos rios, formando lagoas glaciares. Essa água estancada é muito perigosa: em 2010, uma tempestade repentina transbordou algumas lagoas e alagou 71 povoados, incluindo a capital regional, Leh. Pelo menos 255 pessoas morreram nessa catástrofe.

A solução: um cone gelado

A deglaciação e seu impacto na agricultura viraram a obsessão de Sonam Wangchuk, um engenheiro e pedagogo ladakhi. Não foi o primeiro: no final dos anos noventa, outro engenheiro local chamado Chewang Norphel já criava grandes lagos gelados nas encostas da alta montanha, desviando córregos. Mas Norphel tinha um obstáculo para ligar esses reservatórios às aldeias: a altura. Fascinado por essa inovação, Wangchuk se propôs superar o obstáculo.

Um pedaço de gelo debaixo de uma ponte em um dia ensolarado de maio deu a pista a Wangchuk: o gelo se conservava graças à sombra, apesar do calor. Essa imagem o inspirou a desenhar uma estrutura cônica onde o gelo faz sombra a si próprio. “A base larga de um cone permite que mais superfície de gelo faça sombra a si mesmo (…). Enquanto as geleiras planas se derretem em dias, uma cônica pode levar semanas”, explica Wangchuk no vídeo promocional The Monk, the Engineer and the Artificial Glaciar (“o monge, o engenheiro e a geleira artificial”).

Tecnologia e desenvolvimento sustentável

Às margens do rio Indo, escondido entre vastas esplanadas desérticas, perto do povoado de Phey, encontra-se o internato Secmol, fundado por Wangchuk em 1988. Seu critério de admissão é bem peculiar: ter sido reprovado em algum outro centro escolar. Entre edifícios tradicionais de adobe, fornos solares, estufas e hortas, muitos jovens ladakhis aprendem um ofício para desenvolver suas aldeias de forma sustentável.

A estupa gelada foi enfeitada com bandeiras de oração, e mantras foram entoados

Foi lá que Wangchuk desenvolveu com seus alunos as estupas de gelo. Em uma aula gravada para um documentário do canal Al Jazeera, o professor explica a seus alunos com uma mangueira e um balde d’água como se constrói uma estupa de gelo. O balde é colocado no alto de um morro, a mangueira funciona como sifão. Wangchuk dobra um pedaço da mangueira, e a água jorra para cima, “quando cai e entra em contato com o vento de 20 graus negativos, ela congela”, descreve o professor.

O balde com água representa um riacho a 60 metros de altura, o qual se bifurca através de tubos, representados pela mangueira. Os canos percorrem quase três quilômetros sob a terra, até a base da estupa; lá, sua única saída é através de tubos verticais de 15 metros, o pedaço dobrado da mangueira. Em seu extremo há um aspersor para que a água, ao cair, crie uma base ampla.

Quando as temperaturas caem sem piedade, entre dezembro e janeiro, o equipamento de Wangchuk começa a funcionar. Trabalham de noite, aproveitando as temperaturas gélidas e a escuridão para que o gelo se forme rapidamente. Em questão de semanas, as estupas alcançam os 25 metros de altura e uma capacidade superior a 150.000 litros. O objetivo é que possam fornecer água para a irrigação dos campos de março a maio, “meses críticos para a semeadura”, observa Wangchuk ao canal indiano Fator Daily.

Uma estupa de gelo, à noiteUma estupa de gelo, à noite PROYECTO ESTUPAS DE HIELO

Mas há outros objetivos: criar uma universidade alternativa, o Instituto de Alternativas do Himalaia de Ladakh. Um centro onde serão pesquisadas soluções científicas para os problemas de adaptação à mudança climática no Himalaia. Seu futuro campus já conta com 5.000 árvores, irrigadas pelo degelo das estupas e que foram plantadas em 2015 por mil pessoas, entre eles aldeões, monges e militares. O imenso e árido vale ao redor de Phyang começa a se vestir de verde.

Tradição local e desafios globais

A espiritualidade vibra nesta terra de lamas. O Dalai Lama passa seus verões em Ladakh, onde reúne multidões em seus ensinamentos espirituais. Os ladakhis e os 7.000 refugiados tibetanos vivem em seu cotidiano uma conexão mística com seu entorno. A cada ano as aldeias convocam um astrólogo para escolher o dia auspicioso para semear. Antes de começar, celebra-se uma cerimônia para apaziguar os espíritos da água e da terra, que podem se zangar quando se pica a pedra, ara-se ou se abrem os canais de irrigação.

Essa relação mística motivou o desenho das estupas de gelo. Assim explica Suryanarayanan Balasubramanian, matemático e membro da equipe de Wangchuk: “A semelhança com as estupas não é casual e permite integrá-las na paisagem e na cultura dos povos”. Uma integração também apreciada no Ocidente. Seu desenho inovador lhe valeu o prestigioso prêmio suíço Rolex de Empreendedorismo em 2016, e o catedrático da Universidade de Glasgow Sean Johnston, especializado em tecnologia e meio ambiente, opina que as estupas de gelo “são um exemplo de como a tecnologia pode ajudar a adaptação à mudança climática incluindo valores locais”.

À esquerda, destaca-se uma estupa de gelo em plena paisagem desérticaÀ esquerda, destaca-se uma estupa de gelo em plena paisagem desértica PROYECTO ESTUPAS DE HIELO

Uma dimensão sagrada é o que distingue essas geleiras artificiais de muitas outras adaptações à mudança climática. Em 2015, quando se construiu a primeira estupa, convidou-se para sua inauguração o lama Drikung Kyabong Chetsang Rinpochey, um dos mais importantes no budismo tibetano. A estupa gelada foi enfeitada com bandeiras de oração, e mantras foram entoados.

Chetsang Rinpochey estimula a exportação das estupas de gelo para onde puderem ser úteis. Na verdade, alguns monastérios não demoraram a tentar produzir estupas geladas com seus próprios meios, embora seja cedo, porque “ainda estão sendo feitos ajustes na fase piloto”, comenta Suryanarayanan. Além disso, a equipe de Wangchuk já levou as estupas aos Alpes e aos Andes para procurar aplicações dos novos lagos glaciares na drenagem de água e na geração de energia.

Entre 18 e 23 de março foram realizados o Fórum Internacional da Água e o Fórum Alternativo Internacional da Água, em Brasília, e as políticas de acesso à água monopolizaram os debates. Os desafios da mudança climática representam novas oportunidades, inclusive para aqueles que, como os camponeses ladakhis, não contribuíram para suas causas.

Fonte – Jordi Albacete, El País de 07 de maio de 2018

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