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A mercantilização da água avança ‘pari passu’ com sua escassez

Ilustração: LPS

A disponibilidade de água doce, em estado líquido, não poluída e acessível define o estado dos recursos hídricos do planeta. Nossas sociedades estão gerando uma crise sem precedentes de degradação quantitativa e qualitativa desses recursos. O estresse hídrico, a escassez e a escassez aguda de água, segundo o Índice Falkenmark (Falkenmark Water Stress Indicator) já são, e serão doravante cada vez mais, uma das maiores ameaças à satisfação das necessidades hídricas elementares da manta vegetal, dos humanos e dos outros animais. Diversos fatores concorrem para seu agravamento, entre os quais obviamente as mudanças climáticas e o aquecimento global, já que estes interferem na evaporação e na variabilidade térmica e dos ventos sobre a superfície dos oceanos (ENSO), alteram os padrões de precipitação (monções, secas e inundações), diminuem o nível dos rios, lagos e reservatórios, bem como a reciclagem dos aquíferos e o estoque de neve dos cimos das cordilheiras (Andes, Himalaia, Sierra Nevada etc), cruciais para o abastecimento sazonal de mais de um bilhão de pessoas.

Em 2013, Aiguo Dai, da University at Albany, no estado de Nova York, publicou um trabalho no qual recordava que “os registros históricos dos índices de precipitação, de fluxo de água e de seca mostram aridez crescente desde 1950 sobre muitas áreas terrestres”. E ao comparar as projeções avançadas pelos modelos com a realidade observada, afirmava: “Concluo que as mudanças observadas na aridez global até 2010 são consistentes com as predições dos modelos, os quais sugerem secas graves e disseminadas nos próximos 30 a 90 anos sobre muitas áreas terrestres, resultantes de menor precipitação e/ou maior evaporação”[I].

As secas, algumas sem precedentes nos registros históricos, que devastam regiões inteiras do planeta neste segundo decênio acrescentam ainda mais evidência ao que os dados e as projeções apontam de modo convergente. A Austrália, sobretudo sua região Sudeste, viveu entre 1995 e 2009 o que se chamou a “seca do Milênio”. Ela voltou ao país a partir de 2015 e em março de 2017 atinge 90% do Queensland (NE do país). Entre 2006 e 2011, a Síria sofreu sua pior seca dos registros históricos. Atribui-se às suas consequências uma parte considerável da responsabilidade pela guerra que destroça o país desde 2011. Vários países da África subsaariana, as Américas do Norte, Central e do Sul, o Oriente Próximo, a Ásia Central, a China, o Paquistão, a Índia e os países à volta do Mediterrâneo, agrupando mais da metade da população mundial, fornecem uma imagem do agravamento nos três níveis de estresse hídrico (baixo, médio e grave) em 2005 e em 2030 nos BRICS, nos países da OCDE e no resto do mundo.

Foto: reprodução

Por alarmante que seja, esse mapa não dá conta da evolução das secas no Brasil, tal como projetado por duas simulações climáticas (HadGEM2 ES e Miroc5) coordenadas por José Marengo, do Centro de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (CEMADEN), às quais a revista da Fapesp dedicou  matéria de capa em sua edição de novembro de 2016. Desta se retiram os dois mapas do Brasil, abaixo figurados, que indicam, segundo uma síntese dessas duas simulações, o enorme alastramento das áreas com alto risco de secas graves no Brasil entre 2011 e 2040 [II].

Foto: Reprodução

Em 2011, as áreas de alto risco de secas restringiam-se sobretudo ao Nordeste e à região à volta e ao norte de Brasília, ao passo que em 2040 elas devem abranger parte substancial do território brasileiro, incluindo a Amazônia, onde, após as  secas de 2005 e 2010, “números provisórios mostram 2016 como o ano em média mais seco dos registros históricos sobre a bacia amazônica” [III].

Mas outro fator, além das mudanças climáticas antropogênicas, causadas estas, sobretudo, pela avidez dos setores afluentes das sociedades contemporâneas por energia, minérios, madeira, fibras e outros materiais, intervém diretamente nesse quadro já grave para torná-lo absolutamente crítico: o controle corporativo do capitalismo globalizado sobre o sistema alimentar humano e animal. Esse modelo converte os produtos agrícolas em commodities, fomenta a exportação de água sob a forma de alimentos, o consumo crescente de carne, terrivelmente demandante de água (1 kg de carne de vaca requer cerca de 15 mil litros de água, enquanto 1 kg de trigo, entre 500 e 4.000 litros [IV]), e a apropriação brutal dos recursos hídricos pelo agronegócio e pelas corporações. Os grandes traders (as assim chamadas ABCD companies [V]), os bancos, os gigantes da “alimentação” [VI], dos fertilizantes e dos agrotóxicos visam a maximização do lucro, independentemente das possibilidades do solo e da disponibilidade de água de cada região do planeta, com consequências por vezes já catastróficas para as populações mais vulneráveis em várias regiões do globo.

“Cerca de 3,8 trilhões de m3 de água são usados pelos humanos anualmente, 70% dos quais são consumidos pelo setor agropecuário, sendo que 550 bilhões de m3 são desperdiçados antes de chegar ao consumidor” [VII]. E a demanda de água, impulsionada pelo modelo suicida do agronegócio globalizado não para de crescer. Segundo o U.N. World Water Development Report, de 2015, “em 2050, a demanda global de água deve aumentar 55%, enquanto as reservas definham. Se as tendências atuais não mudarem, o mundo terá apenas 60% da água de que necessita em 2030”. Nada indica, no momento, mudanças relevantes nessas tendências. Ao contrário, o desmatamento causado pelo agronegócio (na Amazônia, ele aumentou quase 75% desde a aprovação do Código Florestal em 2012) cresce em toda a parte do planeta, agravando ainda mais a escassez hídrica.

Foto: Antonio ScarpinettiRepresa do Cantareira na seca de 2014: registros mostram aridez crescente em várias regiões do planeta

Para combater essa máquina corporativa de privatização e esgotamento dos recursos hídricos, prepara-se o Fórum Alternativo Mundial da Água, o qual terá lugar em Brasília em 2018, tal como divulgado pelo portal Crisálida da Unicamp nesta semana (veja-se www.crisalida.eco.br). Será, por certo, um dos eventos políticos mais importantes do ano que vem.

[I] A. Dai, “Increasing drought under global warming in observations and models”. Nature Climate Change 3, 52–58 (2013) <https://www.nature.com/nclimate/journal/v3/n1/full/nclimate1633.html>.

[II] Cf. Marcos Pivetta, “Um Brasil mais vulnerável no século XXI”. Fapesp,  249, XI/2016, pp. 16-21.

[III] Cf. Índice de Precipitação Padronizada (I/ 2015 – XII/2016) do INMET, cf. World Meteorological Organization (WMO), Statement on the State of the Global Climate 2016, p. 14 (em rede).

[IV] “How much water is needed to produce food and how much do we waste?” The Guardian, 10/I/2013.

[V] As “ABCD companies” – Archer Daniels Midland (ADM), Bunge, Cargill and Louis Dreyfus – moldam o financiamento e comercialização das commodities agrícolas e definem o modelo alimentar mundial. Cf. S. Murphy, D. Burch, J. Clapp, “Cereal Secrets. The world’s largest grain traders and global agriculture”. Oxfam, agosto de 2012 (em rede).

[VI] Eis, por ordem decrescente de faturamento, os controladores da água e da alimentação mundial: Nestlé S. A., Unilever Group, PepsiCo Inc., Coca-Cola Co, Mondelez International Inc., Mars Inc., Groupe Danone S. A., Associated British Foods PLC, General Mills, Kelogg Co. Juntas, essas dez corporações faturaram em 2013 mais de US$ 436 bilhões. Se fossem um país, elas seriam o 23º PIB do mundo. Tiveram lucros superiores a US$ 46 bilhões e gastaram ao menos US$ 23 bilhões em publicidade, embora sejam mal avaliadas pela Oxfam em termos de uso sustentável da água. Cf. “10 companies that control the world’s food”. MarketWatch, 2/IX/2014 (em rede).

[VII]“How much water is needed to produce food and how much do we waste?” The Guardian, 10/I/2013.

Luiz Marques é professor livre-docente do Departamento de História do IFCH /Unicamp. Pela editora da Unicamp, publicou Giorgio Vasari, Vida de Michelangelo (1568), 2011 e Capitalismo e Colapso ambiental, 2015, 2a edição, 2016. Coordena a coleção Palavra da Arte, dedicada às fontes da historiografia artística, e participa com outros colegas do coletivo Crisálida, Crises SocioAmbientais Labor Interdisciplinar Debate & Atualização (crisalida.eco.br).

Fonte – Jornal da UNICAMP de 22 de maio de 2017

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