Por Jean Silva* - Jornal da USP - 1 de novembro de 2024 - Tucuruvi,…
A proibição da caça do javali em São Paulo e a ditadura dos falsos protetores
Governador de São Paulo sancionou lei que proíbe a caça de Javalis. Foto: Luiz Guilherme de Sá/Ibama.
O estado de SP acaba de promulgar uma lei típica para arrecadar votos em ano eleitoral. Trata-se do PL299/2018, de autoria do deputado estadual Roberto Tripoli (PV), votado às pressas, em seção extraordinária sob regime de urgência e sem a menor discussão técnica ou consulta à sociedade. Sob o falso pretexto de proteção à fauna e à biodiversidade, a lei proíbe a caça de espécies declaradas nocivas no Estado de SP. É o caso dos javalis, uma das piores espécies exóticas invasoras do planeta, que ameaçam a saúde humana, a agricultura e a biodiversidade.
Javalis vêm expandindo sua distribuição no Brasil e só em São Paulo já afetam mais de 320 municípios — em 2013 eram 64! O abate de espécies nocivas é amparado desde 1967 pelas leis federais de proteção à fauna (5197/67) e dos crimes ambientais de 1998 (9605/98).
No caminho inverso de outros países que sofrem com a invasão dos javalis, em 2010 o IBAMA proibiu o controle de qualquer espécie exótica através da IN 08/2010 (qualquer semelhança com o atual PL299/2018 de SP não é mera coincidência). Até que, em 2013, após os javalis se tornarem um risco sanitário, ambiental e social iminente no país, o IBAMA revogou a catastrófica normativa, declarando a nocividade dos javalis e regulamentando o abate da espécie em todo território nacional através da IN 03/2013. Desde então, Ministério do Meio Ambiente (MMA) e Agricultura (MAPA) vem atuando juntos, através do grupo de assessoramento técnico para auxiliar a estratégia nacional de controle da espécie no Brasil – o PAN Javali (Plano Nacional de Prevenção, Controle e Monitoramento do Javali Sus scrofa no Brasil), formado por especialistas, poder público e sociedade civil, incluindo representantes dos protetores dos animais. É a principal e mais bem articulada e embasada iniciativa para lidar com o problema hoje no Brasil, e serve de exemplo de como gerir fauna neste país.
“(…) a única diferença entre javalis e sinantrópicos é o habitat que ocupam, pois tanto um quanto o outro são uma ameaça à saúde pública e devem ser controlados. Quem irá arcar com o prejuízo caso seja deflagrado um caso positivo de aftosa nos rebanhos paulistas?”
A lei que o Estado de São Paulo acaba de promulgar não só vai contra a estratégia nacional de controle dos javalis, ameaçando acordos internacionais de conservação e comércio exterior, como expõe a sociedade ao perigo de estar submetida a fanfarrões que impõem decisões unilaterais aparentemente sem o menor conhecimento de causa.
O PL 299 vem ao encontro da demanda de grupos de proteção e defesa animal que enxergam o controle do javali como exemplo de maus-tratos e, portanto, possui amplo alcance sentimental nos eleitores e legisladores mal informados. Ironicamente, a mesma lei exclui as espécies sinantrópicas do texto, como ratos e pombos. Ora, se o fundamento do bem-estar animal reside no reconhecimento da senciência animal, por que então aceitar os piores tipos de sofrimento a que ficam submetidos os ratos no ato de controle em áreas urbanas? O uso de venenos para controle populacional de espécies sinantrópicas nocivas causaria ao animal menos sofrimento do que a caça?
Espécies sinantrópicas são importantes vetores de zoonoses e, portanto, uma questão de saúde pública que não pode ser negligenciada. Assim também são os javalis. Além de zoonoses, javalis podem transmitir doenças para a fauna nativa e rebanhos de gado, como, por exemplo, a febre aftosa. Nessa perspectiva, a única diferença entre javalis e sinantrópicos é o habitat que ocupam, pois tanto um quanto o outro são uma ameaça à saúde pública e devem ser controlados. Quem irá arcar com o prejuízo caso seja deflagrado um caso positivo de aftosa nos rebanhos paulistas?
O projeto amparado sob o falso pretexto de proteção à fauna ignora, ainda, que javalis, além de funcionarem como reservatórios de doenças, podem predar ou excluir por competição outros animais da fauna nativa e de criação. Certamente nenhum dos falsos protetores dos animais parecem se importar com o meio ambiente e o bem-estar da fauna e dos rebanhos ou com a saúde e segurança alimentar do homem do campo, pois do alto de sua arrogância e por trás de seus gabinetes e escritórios nos centros urbanos, jamais sentirão os efeitos perversos ocasionados pelo crescimento desenfreado das populações de javalis.
O projeto que defendem e que virou lei está baseado no falso argumento de que caça é sinônimo de maus-tratos aos animais. Inclusive tentam redefinir o termo caça, na tentativa de pervertê-lo. Quem destrói ninhos, abrigos e os recursos à manutenção da vida animal não está exercendo atividade de caça: está vandalizando o meio ambiente ou, se autorizado, controlando espécie invasora. Caça é perseguição, captura e abate com finalidade de alimentação ou esporte, e é um método efetivo no controle das populações de javali, principalmente se combinado adequadamente a outros métodos.
Em todos os lugares do mundo onde há o problema da invasão do javali usa-se a caça como uma das alternativas para controle populacional da espécie. Javalis possuem uma das taxas reprodutivas mais altas entre mamíferos terrestres de mesmo porte, iniciando reprodução antes do primeiro ano de vida e dando crias de 5 a 6 filhotes 2 vezes por ano. Diferentemente de algumas espécies nativas que possuem baixa resiliência frente à pressão de caça, javalis precisam ser abatidos em proporções que chegam a 70% do tamanho populacional para que se consiga retrair o crescimento e conter os danos que causam. Só na Europa, onde, apesar de serem nativos não são menos preocupantes, estima-se que 2 milhões de javalis são abatidos todos os anos e que, devido à diminuição no número de caçadores nos últimos 20 anos, houve um crescimento populacional da espécie, que teve como consequências o aumento expressivo no número de acidentes rodoviários envolvendo javalis e de doenças que ameaçam a saúde humana e agropecuária.
“Javalis possuem uma das taxas reprodutivas mais altas entre mamíferos terrestres de mesmo porte, iniciando reprodução antes do primeiro ano de vida e dando crias de 5 a 6 filhotes 2 vezes por ano.”
Uruguai, Argentina, Austrália, Estados Unidos, entre outros países onde javalis são invasores, não abrem mão de permitir a caça para controle populacional da espécie, empregando sempre métodos adicionais para aumentar a eficiência de controle, nunca usando um único método como alternativa. Proibir totalmente a caça de javalis é, portanto, prova cabal de irresponsabilidade e ignorância gerencial para lidar com o problema dos javalis.
Por fim, trata-se de uma lei que, além de ser redundante, já que a própria constituição paulista proíbe a caça em seu artigo 204 (e sujeita à ADIN no STF), joga na mão do poder público toda a responsabilidade pelo controle de todas as espécies nocivas do Estado, proibindo empresas e pessoas físicas de exercê-la. Tínhamos cerca de 1300 cidadãos no Estado de SP prestando gratuitamente o serviço de controle da espécie noviça javali e, numa canetada, o governador passa a onerar a máquina governamental com todos os altos custos envolvidos em controle de espécie invasora (recursos humanos, logísticos, etc.), como se estivesse sobrando dinheiro nos cofres públicos.
Esta lei contraria o que vem se configurando no mundo atual como novo paradigma de gestão de fauna e de gestão de conflito humano-fauna e que MMA e MAPA, através do PAN-Javali, vêm dando o exemplo para o Brasil: participação e conciliação dos interesses dos diversos agentes envolvidos e afetados direta e indiretamente e não apenas de um grupo específico, a fim de criar alianças na resolução de conflitos homem-fauna e não aprofundá-los. Com esta lei, São Paulo encontra-se no caminho de aprofundar o problema do javali no Estado, pois além de criar uma regra desacreditada entre os que possuem conhecimento técnico do problema indica que, a contar pelos formuladores da lei, muito provavelmente, propostas burlescas e mirabolantes serão criadas para solucionar o problema.
Felipe Pedrosa é Ecólogo, doutorando em Ecologia e Biodiversidade pela UNESP de Rio Claro-SP.
Marcelo Osório Wallau é Engenheiro Agrônomo, doutor em Zootecnia, pesquisador e extensionista da Universidade da Flórida e membro da Equipe Javali no Pampa.
Clarissa Alves da Rosa é Ecóloga, doutora em Ecologia Aplicada, e pesquisadora associada ao Instituto Alto Montana.
Fonte – O Eco de 02 de julho de 2018
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