Por Ellen Nemitz · ECO - 18 de dezembro de 2024 - Câmara ressuscitou “jabutis” da…
A projeção política do vegetarianismo
“Devemos deixar de lado o misticismo, a religião e as doutrinas New Age que tanto adentraram o vegetarianismo ao longo dos anos, especialmente durante a última década. É necessário que nos formemos e conheçamos a evidência que apoia esta ideia, caso queiramos que esta dieta seja considerada no interior do debate político”. É o que defende Ezequiel Arrieta, no início de seu livro Vegetarianismo en el debate político (2014), para deixar claro de que lado está.
Arrieta é um médico muito jovem, vegetariano de nascimento, de Córdoba, que nos últimos anos se dedicou a indagar a forma como a produção de alimentos de origem animal está prejudicando terrivelmente o meio ambiente – as terras, as águas, a atmosfera – e, por conseguinte, quem o habita. Tanto se apaixonou pelo tema, que não só escreveu o livro, como também abandonou o doutorado que estava realizando sobre fisiologia reprodutiva e começou outro em que investiga os efeitos de diferentes cenários de dieta sobre o uso da terra, a emissão de gases de efeito estufa e a conservação de ambientes naturais.
Divulgador científico com experiência, Arrieta não economiza em detalhes, dados e argumentação na hora de explicar a razão pela qual seria bom para nós mesmos e para nossos(as) vizinhos(as) que diminuamos, o quanto antes, o consumo de produtos de origem animal: carnes (de boi, de porco e de frango, entre outras), leite e ovos. “Precisamos restaurar superfícies de matas e terras que estão degradadas. Ainda que se faça a agricultura e a pecuária bastante eficientes, há uma proporção do impacto ambiental que não poderá ser reduzida. A única forma para isto é reduzindo a oferta e a demanda destes alimentos”, adverte.
Como se inicia o seu interesse em investigar para colocar o vegetarianismo no debate político?
Eu sou médico de formação e, além disso, sou vegetariano de nascimento. Mais ou menos em 2012, comecei a investigar questões de ecologia que gostava de ler relacionadas ao meio ambiente e cheguei a um relatório muito grosso da FAO(Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação), que se chama A longa sombra do gado (2006). É um relatório muito longo e completo sobre a pecuária, que estabeleceu um antes e um depois no que é investigação em produção de alimentos em nível mundial. O relatório comentava que a pecuária era uma das principais fontes do efeito estufa, e a partir disso começaram a fazer um montão de estudos. Causou-me um pouco de curiosidade e, além disso, por minha formação, sabia que as dietas vegetarianas têm importantes benefícios à saúde.
Então, decide escrever o livro Vegetarianismo en el debate político?
Sim, quis escrever um livro porque tinha uma necessidade imperiosa de compartilhar o que estava aprendendo, porque sempre fiz divulgação científica, em diferentes espaços. Quando publiquei o livro (em 2014), já havia me formado médico e estava fazendo meu doutorado anterior, que era em fisiologia reprodutiva. Naquele momento, pedi a alguns investigadores que eram conhecidos no campo da ecologia e da nutrição se podiam ser os revisores de meu livro e aceitaram de muito boa vontade e me deram bons retornos. Isso me fez pensar que não tinha uma visão tão errada sobre o assunto e me trouxeram o desejo de saber mais e de receber mais críticas. Sendo assim, continuei compartilhando com muitos investigadores daqui, de Córdoba e da Argentina, presenteei setenta livros. E, em determinado momento, abandonei meu doutorado anterior e mudei para outro, relacionado a temas que apresento no livro.
No livro, você expõe a ineficiência do modelo alimentar atual, que é baseado em produtos de origem animal, por questões econômicas, sanitárias e ambientais, entre outras. Como caracteriza este modelo?
É um tema muito complexo de abarcar e, às vezes, até difícil de debater e de conversar, porque as pessoas têm muitos preconceitos, particularmente em um país como a Argentina, com uma cultura tão próxima ao consumo de carne. Por isso, é bom separar qual é a tendência mundial e qual é o enfoque regional. A Argentina tem uma questão muito singular em relação ao restante dos países do mundo, porque conta com um grande consumo de carne de boi, mas, em nível mundial, se consome muito mais carne de porco e de frango. E os animais maiores precisam de mais recursos para se alimentar. Ou seja, um boi precisa de mais água, mais terra, mais comida que um frango. Se precisamos alimentar animais para depois nos alimentar desses animais, há uma questão de cadeias tróficas que são inevitáveis. Se nos alimentamos dos animais, estamos sendo o terceiro elo da cadeia alimentar. Então, temos que gerar um monte de recursos para alimentar todos esses animais. E mais ou menos a partir dos anos 1960, após a revolução verde, o consumo de carne em nível mundial explodiu, multiplicou-se por cinco, começaram a lhe destinar muitos recursos, e aí apareceu o feedlot e a agricultura industrial em volta da produção de alimento de origem animal. Todo este aumento no consumo de carnes, de frango, de porco, de boi, de leite, de ovos. A agricultura industrial permitia produzir maior quantidade de forragem, como soja e milho, para poder alimentar estes animais em feedlots e, dessa maneira, produzir maior quantidade.
Na Argentina, cerca de 70% da superfície agrícola é destinada à criação de gado. Que implicâncias possui este uso da terra?
Sim, é muita coisa. Quando é necessário mais terra para a criação, avança-se sobre espaços que antes eram florestas, matas, que eram pastagens naturais e que se tornam pastagens artificiais, ou esteiros que é preciso secar para fazer plantações. Ao mesmo tempo, por haver tantos animais, são emitidos muitos gases de efeito estufa. Com a grande quantidade de excrementos se gera contaminação, que tem a ver, entre outras coisas, com a grande quantidade de antibióticos que é fornecido aos animais, não só para que as infecções sejam prevenidas, como também para promover o crescimento. É uma trama muito complexa, que também impacta na saúde e que torna necessário que analisemos criticamente o tema da segurança alimentar.
De que maneira define a segurança alimentar e como é afetada por este modelo, baseado na produção pecuária?
A segurança alimentar é basicamente abastecer de comida de qualidade e em quantidade suficiente para todos. Em meados do século passado, quando se cria a FAO, começaram a questionar a respeito da quantidade de pessoas no mundo com fome, desnutridas. Então, fomentou-se esta ideia de que aumentando a produtividade do campo, e assim a oferta de comidas, se solucionaria a fome, por questões de mercado. Por consequência, supunha-se que ao ter mais comida, baixaria o preço e as pessoas poderiam comprar mais facilmente. Bom, isto não aconteceu assim, porque continua existindo muitas pessoas com fome. Houve uma redução, é verdade, mas se passaram 50 anos e continua existindo 700 milhões e pessoas no mundo em estado de desnutrição. Nessa época, o consumo de carne começou a ser promovido porque era considerada um alimento fundamental para a segurança alimentar, porque possui proteína e nutrientes que são fundamentais. Mas, a realidade é que as pessoas com menos recursos não são as que têm acesso a esses produtos. No entanto, nesta questão de segurança alimentar se costuma falar que a pecuária é fundamental, que não se deve deixar de promover o consumo de carne porque estes são alimentos fundamentais para a nutrição das populações que menos têm. Mas, quando são analisados os dados, nota-se que o maior consumo de carne se dá nas cidades e em populações de rendas médias e altas. Então, estas populações das grandes cidades são as que estão produzindo o grande impacto ambiental que a pecuária acarreta.
Quais são os impactos ambientais deste modelo alimentar?
Há muitos, mas os principais são os que impactam sobre a biodiversidade e a mudança climática. Esta forma de agricultura e pecuária que temos hoje em dia utiliza uma enorme superfície de terra e, para isso, avança sobre ecossistemas naturais que nos prestam serviços sem que percebamos, como sequestrar o dióxido de carbono da atmosfera, nos prover de água e prevenir de inundações, por exemplo, além de ser o habitat de diferentes comunidades aborígenes. Desmatou-se um montão para poder avançar com este tipo de modelo, os animais levam 70% do total da América do Sul. Além disso, tem a questão da mudança climática, porque a produção de alimentos é responsável pela emissão de um terço dos gases de efeito estufa, dos quais 80% vêm da pecuária.
E o problema é que nem tudo o que os animais produzem é dióxido de carbono que, eventualmente, poderia ser sequestrado, por exemplo, reflorestando…
Claro. Diferente do setor energético e do transporte que, sim, emitem dióxido de carbono, a pecuária e a agricultura emitem dois gases que são superpotentes e muito difíceis de controlar, que é o metano e o óxido nitroso, através do que se chama fermentação entérica, que são os arrotos e os gases dos bois, e a excreção e a urina, que é o metano; e o óxido nitroso vem também da excreção, da urina e da aplicação de fertilizantes ao solo. Hoje em dia, para poder produzir um montão de soja e de milho para alimentar os animais, devo sim e sim aplicar fertilizantes porque os solos não dão e, além disso, para que os solos não percam nutrientes, porque, caso contrário, é insustentável. Então, tudo isso emite gases que ficam na atmosfera muito tempo, o gás metano permanece [por] cem anos e o óxido nitroso trezentos anos. Então, por aí, os produtores ou alguns técnicos que analisam como podemos mitigar a pecuária não leva em conta que fazendo sequestro de carbono não podem atenuar o aquecimento global pelo metano e óxido nitroso. E com os fertilizantes também existe o problema da eutrofização, porque ao aplicar tantos fertilizantes se enche de nutrientes as correntes de água – os lagos, os rios, os arroios -, explodem a vida, se consome o oxigênio e se morre toda a vida. Estamos contaminando os cursos de água, o Golfo do México, por exemplo, é um desastre devido à atividade agropecuária e a grande aplicação de fertilizantes na bacia do Mississipi.
Que outros modelos produtivos pode haver como alternativa ao que impera atualmente?
A agroecologia baseada em evidências. Na realidade, chama-se agroecologia, mas como foi também tomada por grupos meio místicos que começaram a lhe meter um montão de coisas meio raras como a astrologia, nós preferimos chamá-la assim. Trata-se da ciência da agroecologia, que é a aplicação da ecologia à produção de alimentos, entender os agroecossistemas como entidades que devem ser manejadas com muito cuidado e conhecimento. O que a agroecologia promove é a produção de alimentos com base no conhecimento e não tanto no uso de um montão de energia, de máquinas, fertilizantes e agroquímicos, mas, ao contrário, aproveitando as propriedades que possuem muitas espécies, que interatuam entre si para produzir alimentos de maneira eficiente. E é algo muito bom como alternativa da agricultura industrial. De qualquer maneira, não é necessário que seja sim e sim agroecologia ou sim e sim agricultura industrial, pode ser uma questão diversificada que se adapta a cada região.
Como é uma dieta sustentável?
Dieta sustentável é um conceito que surgiu há pouco tempo, o conceito tem aproximadamente uns 6 anos, e foi cunhado pela FAO. Na realidade, não se sabe muito bem o que é uma dieta sustentável. A definição é bonita, porque diz que são dietas ambientalmente amigáveis, que fazem um uso eficiente dos recursos naturais, que são culturalmente aceitáveis, que são economicamente acessíveis, que geram impactos positivos à saúde, que são nutricionalmente adequadas. Ou seja, é um conceito muito amplo, muito complexo. Mas, devido a essa complexidade e a esse detalhe que é “culturalmente aceitável”, não se pode determinar o que é uma dieta sustentável, porque dependerá de cada região. Não é o mesmo produzir uma dieta sustentável na China que uma dieta sustentável na Argentina, e dentro da Argentina não é o mesmo uma dieta sustentável na Capital Federal e uma Ushuaia ou em Jujuy, porque dependerá do tipo de produção que se faça. Os especialistas concordam em que as dietas sustentáveis são baixas em conteúdo de origem animal e abundantes em conteúdo de alimentos de origem vegetal. São dietas que teriam um baixo conteúdo em carnes, ovos e lácteos, e dentro das carnes haveria uma menor proporção de ruminantes, que são os bois, as cabras e as ovelhas. E pelo lado dos alimentos de origem vegetal deveria ter uma boa proporção de legumes e cereais, e abundantes frutas, verduras, sementes.
Quais são os mitos que há em torno do vegetarianismo?
Os mitos em torno dos vegetarianismos têm a ver com os mitos que há ao redor da carne. Existe o mito de que a proteína adequada só está na carne, quando na realidade é possível conseguir todos os aminoácidos que necessitamos para um correto crescimento e desenvolvimento nos alimentos de origem vegetal, combinando inteligentemente legumes e cereais. A taxa de anêmicos na população vegetariana não é maior que a taxa de anemia da população que come carne. A vitamina B12 é um tema particular, porque é produzida pelas bactérias do solo, que em um momento eram incorporadas à carne, ao tecido animal, porque os animais se alimentavam de coisas que estavam no solo, mas hoje em dia isso já não existe mais, porque quase todos os animais são criados em feedlots. Então, o porco e o frango que estão no feedlot requerem suplementos com B12. Porém, nós, vegetarianos, o que fazemos é tomar o suplemento com B12, ao invés de consumir o suplemento que dão aos animais através do consumo de sua carne. A ideia de que há etapas críticas na vida que requerem carne como alimento também é um mito. Todo o ciclo de vida requer uma dieta balanceada e equilibrada, e pode ser levada tranquilamente sem nenhum produto de origem animal, seja na gravidez, infância, lactância ou velhice. Inclusive, há atletas profissionais que são vegetarianos. A redução no consumo de carne gera muitos benefícios à saúde, reduz os riscos de enfermidades cardiovasculares, de diabetes tipo 2, de sobrepeso e obesidade, e alguns tipos de cânceres. Então, o vegetarianismo também é muito interessante do ponto de vista da saúde pública.
Fontes – Verónica Engler, Página/12, tradução Cepat, IHU de 22 de novembro de 2016
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