Por Jean Silva* - Jornal da USP - 1 de novembro de 2024 - Tucuruvi,…
A revolução da floresta
Como a agrofloresta, uma técnica de agricultura que copia a natureza, sem o uso de venenos ou fertilizantes, pode frear as mudanças climáticas, recuperar ecossistemas, libertar mulheres e acabar com a fome no mundo
A paisagem evidenciava os estragos: uma imensidão de terra sem vida, enfeitada com bananeiras fracas e plantas marcadas por pragas. Sezefredo plantava comida, mas só colhia desgosto. “Com o solo ruim, as bananeiras saíam da terra e, às vezes, dava praga. Era uma tristeza.” Os ganhos com o plantio mal pagavam a alimentação dos funcionários que ajudavam na colheita. Um dia de trabalho na lavoura rendia o suficiente para comprar uma lata de óleo. Não viu outra saída a não ser colocar a propriedade à venda.
Até que, em 1995, um tal de Oswaldinho apareceu na cidade para vender seu peixe. Agrônomo contratado pela Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo, Oswaldo Souza tinha a missão de promover feiras entre produtores locais. Mas carregava dentro de si uma paixão bem maior. Seu peixe era a agrofloresta – um sistema integrado de árvores e plantas de diferentes espécies em uma mesma plantação, com uso zero de fertilizantes ou agrotóxicos.
Homem das florestas
Oswaldinho conheceu agrofloresta com Ernst Götsch, um suíço radicado no Brasil. Nos anos 1970, quando ainda vivia na Europa, o agricultor e pesquisador começou a fazer experimentos que combinavam o cultivo de diferentes espécies de plantas no mesmo espaço, como faziam os fazendeiros europeus até o início do século 20. E reparou que seu feijão ficava mais forte quando estava próximo de árvores. Melhor ainda depois que essas árvores eram podadas. Percebeu ainda que não bastava cuidar apenas de uma planta (ou uma espécie): era preciso cuidar de todo o sistema em volta das plantações.
Parecia sem sentido naquela época em que as ideias da revolução verde começavam a dominar as regras da agricultura.
A população mundial crescia rapidamente e a preocupação era como alimentar essa gente toda. O jeito era reduzir o tempo até a colheita e aumentar a produção. A solução apareceu, então, com maquinário pesado, fertilizantes, veneno e sementes selecionadas. Os tratores agilizavam o processo todo e os produtos químicos criavam artificialmente as condições ambientais certas para manter a planta saudável. Nessa lógica da monocultura, qualquer outra espécie (insetos e ervas daninhas) são invasoras e devem ser eliminadas.
Só que, no meio do processo, o solo se acaba, fica mais compactado e impermeabilizado (ou seja, seco). A isso ainda se juntam outros problemas, como a erosão, contaminação do meio ambiente por agrotóxicos, assoreamento de rios, fortalecimento das pragas. E dá-lhe fertilizante para fazer crescer e veneno para matar.
Assim, a cada novo ciclo, mais cara a produção, mais seco o clima, e menor a biodiversidade. Em plantações de orgânicos funciona quase do mesmo jeito, mas com insumos naturais. E os únicos vencedores são os grandes produtores – os Sezefredos e tantos outros agricultores pequenos não conseguem fechar a conta no azul.
Ernst compreendeu todas as falhas desse modelo. E quanto mais se aprofundava em sua pesquisa, mais se afastava das ideias da revolução verde. Encontrou na termodinâmica um conceito para entender como acontecia o impacto negativo da agricultura. É o princípio da entropia, que mede o desgaste e a desordem de um sistema. Imagine sua cozinha – cada vez que você prepara um prato, a louça aumenta e a sujeira cresce. Você bagunça aquele espaço. A natureza funciona do mesmo jeito. Quando o homem transforma o cerrado mato-grossense e as terras da Amazônia em extensas plantações de soja, a natureza entra em desequilíbrio. A louça se acumula e uma hora a conta chega – menos vida, mais pragas, pobreza, aquecimento global e seca.
No sul da Bahia, entre as cidades de Ituberá e Piraí do Norte, a conta da Fazenda Fugidos da Terra Seca andava bem vermelha. E foi para lá que Ernst se mudou em 1984. Comprou 500 hectares de terras improdutivas. “As bananeiras não ficavam de pé. Ficavam deitadas pelo vento. Vinha a chuva e formava uma grande enxurrada. Depois vinha a seca”, lembra Ernst. “Diziam que gringo é burro. Que não sabe escolher terra.”
Como mágica
O gringo burro não queria ser mais um a criar o caos. Decidiu se integrar àquele meio, tirar da natureza sua comida e ganha-pão e ainda assim mantê-la saudável. Se havia entropia, o melhor era buscar o oposto, a sintropia, a capacidade de reorganização das coisas. Encontrou na floresta a melhor saída.
Em qualquer área descampada, o mato é o primeiro a aparecer. Essas “ervas daninhas” se dispersam rapidamente e precisam de poucos nutrientes, então se adaptam melhor à escassez de recursos. É por isso que o matinho nasce na rachadura da calçada ou domina a paisagem de Chernobyl. Ele tem um papel fundamental na recuperação do solo, retendo a umidade e descompactando-o. Como tem ciclo de vida breve, ainda melhora a fertilidade da terra, por conta da ação dos micro-organismos que trabalham na decomposição do mato. Mais rico, o solo cria condições para que plantas cada vez maiores e longevas cresçam. Até que tudo se transforma em uma grande floresta.
A natureza, porém, não tem pressa. Pode demorar milhares de anos até que ela chegue a seu clímax – tudo depende da fertilidade do solo e de pássaros e outros animais que espalhem sementes por lá.
Ernst copiou a natureza e deu a ela a rapidez que a agricultura pede. Criou um sistema de plantio complexo, com plantas selecionadas para cumprir um papel em cada etapa desse processo de regeneração natural – com estratos cada vez maiores. Todas as sementes são espalhadas ao mesmo tempo, bem adensadas – e a escolha de cada espécie depende também da função dela na nossa vida. Alface, rúcula e milho podem fazer o papel do mato. Um pouco maior, a mandioca, por exemplo, as sucede. É quase como uma família: o brócolis cria o mamoeiro, que cria a trema (uma árvore nativa), que cria o ingá, que cria o abacateiro, que cria a castanheira. Até que o mamoeiro cresce, o brócolis desaparece daquele espaço e o estrato da floresta sobe um degrau. Aí a floresta evolui até chegar aos ipês e cedros – que podem ser cortados e vendidos como toras de madeira.
Quanto mais complexo o sistema (com maior interação entre várias espécies, inclusive o homem), mais completa a floresta, maiores as chances de que se torne saudável. “Tenho que ser uma presença benéfica naquele meio. E não pensar apenas no que eu posso tirar disso. O resultado é a abundância”, afirma Ernst. Nesse compasso sincronizado, até formigas, tão combatidas na agricultura convencional, entram na dança. O papel delas é fazer a poda natural e depositar ainda mais matéria orgânica no solo, fabricando um adubo verde. E tudo bem se a cotia aparecer para comer castanhas e o tucano devorar o açaí: em algum momento, eles vão devolver as sementes para o chão e espalhar mudas em um lugar novo.
Ao homem cabe a tarefa de aprimorar ainda mais a poda – até cortar galhos grandes ou derrubar árvores inteiras, sem peso nenhum na consciência ou no equilíbrio do ecossistema. É que perder uns galhos faz um bem danado às plantas. Os microrrizas, uma simbiose entre fungos e raízes, fazem a festa: começam a produzir ainda mais ácido giberélico, um hormônio vegetal, que estimula seu crescimento e o de suas vizinhas, já que as raízes se embaralham sob a terra. Além disso, a poda permite a entrada de luz, que aumenta em até 70% a taxa de fotossíntese. Com mais fotossíntese, maior a captação de gás carbônico, responsável pelo efeito estufa, da atmosfera. Aí quando aquele galho vai para o chão, o carbono fica preso no solo e é liberado aos poucos durante a decomposição – num tempo bem mais lento do que aconteceria em um solo sem tanta matéria orgânica.
E como na floresta uma árvore que cai abre espaço para o reinício do ciclo, a retirada de uma espécie mais velha permite que aquele brócolis que cedeu espaço para o mamão possa voltar a brilhar por lá.
Esse trabalho coletivo acelera o processo de produção (desde o primeiro ciclo, seja em uma área de 100 metros quadrados ou de 100 hectares, pelo menos um pé de alface você vai ter), mas, ao invés de sugar nutrientes, ele enriquece o solo. Com bônus: aumenta a umidade e a incidência de chuva na região.
E o gringo que não sabia comprar terra viu a Mata Atlântica dominar seus 500 hectares. É de lá que manda cacau orgânico de primeira qualidade para a Itália e de onde Ernst obtém uma enorme variedade de frutas e vegetais que, se não vão para a mesa, viram comida para a fauna que passou a morar lá. A fazenda ganhou até um novo nome: Olhos d’Água, em homenagem às 14 nascentes que ressurgiram.
Pelo mundo
Oswaldinho vendeu bem seu peixe. E Sezefredo, hoje aos 73 anos, nem em pesadelo pensa em se livrar do sítio cheio de palmeiras e outras árvores. Dolíria Rodrigues, do quilombo Terra Seca, também não. Impossível olhar a farta floresta no quintal dela e imaginar o cenário de 20 anos atrás: uma casa de pau-a-pique cercada de capim, com baixa produção de feijão, arroz, milho e cana. A agrofloresta trouxe de volta nascentes e fez surgir outras novas. A chuva nunca mais lavou a terra e assoreou o rio – pesquisas na região mostram que uma agrofloresta de 15 anos tem capacidade de absorção equivalente a uma floresta secundária de 70 anos. E ainda que as vendas de verduras e frutas gerem pouca grana (um salário mínino, em média), parou de depender do marido. “Antes eu não conseguia nem comprar um calçado para os meninos. Hoje, com meu esforço, eu consigo. E em até dois anos ainda vou ter um carro”, conta. A casa também já não é mais de barro.
Sezefredo e dona Dolíria representam apenas duas das mais de cem famílias da Cooperafloresta, cooperativa de Barra do Turvo de produtores agroflorestais, que fazem dinheiro com a venda de seus produtos – ainda que com dificuldade em entrar no mercado, por conta da popularidade baixa de algumas frutas e verduras. E já produzem até goiabada, banana-passa, polpas de frutas e farinhas vegetais, graças à pequena indústria de processamento de alimentos financiados pelo projeto Agroflorestar, da Petrobras. Uma ajuda e tanto para uma cidade com o segundo pior Índice de Desenvolvimento Humano de São Paulo.
Mas não é só no sul de São Paulo ou da Bahia que agrofloresta dá certo. Ernst consegue replicar o modelo em diversos ecossistemas. Já deu certo na Amazônia, cerrado, caatinga e até na região do Salar de Uyuni, na Bolívia. Em paralelo, sem influência do suíço, agroflorestas já nasceram na Indonésia e em países da América Central e África, com poder de frear a expansão do deserto do Saara. E a tendência é crescer cada vez mais: foi apontada pela ONU como forma de reduzir a fome e a pobreza no mundo. O Movimento dos Sem Terra também faz sua parte, espalhando agroecologia por seus assentamentos. E até Miguel, da novela Velho Chico, sonha em transformar as terras do avô Afrânio em agrofloresta.
No mundo real, a Fazenda da Toca, em Itirapina, interior de São Paulo, administrada por um dos herdeiros do fundador do grupo Pão de Açúcar, Pedro Paulo Diniz, há poucos meses abandonou a produção orgânica de laticínios para se dedicar às agroflorestas. Há três anos, ele tenta tornar esses produtos financeiramente viáveis. Como o uso de máquinas é limitado, essas plantações exigem mais trabalho manual – o que encarece a produção. A saída foi adaptar algumas máquinas para cuidar da poda e preparo da terra, enquanto os agricultores ficam com a parte mais delicada da colheita. Em até dois anos, a Toca promete colocar os frutos dessas colheitas nos mercados.
Mais do que processo, a agrofloresta carrega uma filosofia. Das organelas de uma célula à biosfera, toda a vida é baseada em uma rede de sistemas complexos que interagem entre si, em uma intensa troca de energia. Assim também deve funcionar a agricultura. “Você não é o mais inteligente ali. Não é o dono. É só uma parte, uma célula”, diz Ernst. É o que ele chama de amor incondicional, sem competição ou escassez. Com abundância e cooperação. E, como mostra a floresta, quem não cumpre sua função sai mais cedo do jogo – que, nesse caso, é a Terra.
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