Por Jean Silva* - Jornal da USP - 1 de novembro de 2024 - Tucuruvi,…
A sobrepesca corporativa e a depleção dos cardumes
Uma abundante literatura científica e jornalística não cessa de alertar para a atual tendência ao colapso dos cardumes [I]. De modo que, tal como ocorre com os demais aspectos das crises socioambientais em que vamos naufragando, não será razoável alegar ignorância quando esse declínio, causado pela sobrepesca corporativa, pela poluição industrial e pelo aquecimento das águas, chegar ao fim da linha.
A publicação pela FAO da edição de 2016 de seu The State of World Fisheries and Aquaculture enfatiza “a urgência de reverter a atual tendência de sobreexporação e poluição de modo a restaurar os serviços do ecossistema aquático e a capacidade produtiva dos oceanos” [II]. Deixando de lado a concepção produtivista e antropocêntrica desse documento, que reduz o mais antigo laboratório de vida do planeta a uma fábrica de peixes em falta de matéria-prima, importa aqui chamar a atenção para o quadro gravíssimo de sobrepesca causado pelas grandes corporações da pesca e pela pesca de rede de arrasto (trawling). A voracidade das sociedades intensamente carnívoras em que nos tornamos mais que dobrou nos últimos 55 anos per capita. Sempre segundo a FAO, nos anos 1960, consumíamos 9,9 kg de peixe per capita por ano. Nos anos 1990, 14,4 kg per capita. Em 2013, 19,7 e em 2014, 20,1 kg per capita, sendo que já em 2013 os países industrializados consumiram 26,8 kg de peixe per capita, em boa parte importado dos países pobres, posto que os mares setentrionais já não são mais capazes de satisfazer o apetite euro-norte-americano.
Num documento anterior, a FAO afirmava que 52% dos estoques globais de peixes estavam completamente explorados (fully exploited), 17% sobreexplorados (overexploited) e 7% já haviam sido esgotados (depleted) [III]. No relatório de 2016, baseado em dados de 2013, a situação da sobrepesca deteriorou-se ainda mais, com “31,4% dos estoques de peixes pescados num nível biologicamente insustentável”, 58,1% dos estoques já completamente explorados e apenas 10,5% deles ainda com potencial para maior exploração. A própria FAO admite, contudo, que a qualidade de seus dados é discutível, posto serem fornecidos por governos interessados em ocultar o declínio de seus recursos ícticos [IV].
Dados mais realistas são fornecidos pela Sea Around US, uma organização sediada na University British Columbia, membro da Global Fisheries Cluster e liderada por grandes especialistas do tema. Estimam esses pesquisadores que cerca de 30% da pesca global é clandestina e, portanto, não contabilizada pela FAO [V]. A figura 1, abaixo, ilustra bem o problema.
Esses dados mostram que, já em 2003, 32% dos cardumes haviam colapsado, 39% eram pescados além de sua capacidade de restauração, 29% estavam no limite da sustentabilidade e 0% ainda tinha potencial para maior exploração. Num artigo de 2016, os dois estudiosos sêniors da Sea Around Us, Daniel Pauly e Dirk Zeller, mostram o claro declínio dos estoques marítimos de peixe, iniciado nos anos 1990 e descrito no gráfico da figura 2 [VI]:
O gráfico mostra que esse declínio é da quase exclusiva responsabilidade das corporações da pesca, um setor fortemente oligopolizado. De fato, segundo Henrik Österblom e coautores de um trabalho publicado em 2015, treze corporações multinacionais controlam entre 19% e 40% dos maiores e mais valiosos estoques de peixes marítimos, “incluindo espécies que desempenham funções importantes em seus respectivos ecossistemas. Elas dominam todos os segmentos da produção de alimentos marinhos, operam através de uma extensa rede de subsidiárias e estão profundamente envolvidas nas tomadas de decisão relativas à pesca e à aquacultura” [VII]. O faturamento dessas treze corporações (0,5% das 2.250 empresas do ramo da pesca e aquacultura no mundo todo) corresponde a 18% do valor da alimentação marinha em 2012 (USD 252 bilhões).
A FAO não apenas não identifica corretamente os verdadeiros responsáveis pela brutal redução dos cardumes, mas subestima a dimensão do problema, ao afirmar que a pesca suprimiu dos mares 86 milhões de toneladas de peixes em 1996 e 81,5 milhões em 2014. Os números reais são significativamente maiores. Segundo Pauly e Zeller, nos anos 1990 a pesca marinha atingiu um pico de 130 milhões de toneladas, caindo desde meados dessa década a uma taxa de 1,22 milhão de toneladas ao ano, para atingir 109 milhões em 2010 [VIII]. Pauly avalia em outra sede que “a pesca está diminuindo 2% ao ano, mas ela parece mais estável. O que eles estão fazendo é dizimar um estoque e em seguida mover-se para outro, o que significa que acabarão com os peixes em poucas décadas” [IX].
Essa taxa de diminuição é convergente com uma meta-análise levada a efeito por uma equipe de 14 estudiosos coordenados por Boris Worm, da Dalhousie University (Nova Scotia, Canadá) [X]. O estudo, publicado em 2006, apresentou resultados tão alarmantes, que suscitou um longo artigo no New York Times [XI], no qual Worm declarava que uma extrapolação das tendências observadas levava a um colapso de 100% dos cardumes examinados já em 2048, tal como mostra a figura 3:
E o estudioso concluía: “Não tenho bola de cristal e não sei o que o futuro trará. Mas há um ponto final na linha e ele ocorrerá ainda em nosso tempo de vida”.
Apenas a título de exemplo, um terço de todas as espécies de tubarões, esses magníficos animais que povoam os mares há 400 milhões de anos, está agora ameaçado de extinção. Considera-se que cerca de cem milhões deles são mortos por ano, sobretudo pelos grandes navios, que os caçam por suas barbatanas ou simplesmente os descartam [XII].
Sim, como se não bastasse sua responsabilidade na depleção dos cardumes, as corporações são as maiores responsáveis pelo desperdício de sua própria mercadoria. Se alguém ainda pensa que o capitalismo é o melhor sistema econômico no que se refere à alocação de recursos, que pense de novo. Os grandes navios pesqueiros descartam quase 10% da pesca global, nada menos que 10 milhões de toneladas de peixe por ano, tal como se pode observar no gráfico 2, acima. “Isso é o equivalente a jogar fora 4.500 piscinas olímpicas de peixe por ano”, afirma Dirk Zeller, um dos autores do estudo [XIII]. Ele explica que esse descarte ocorre por cinco razões: (1) as técnicas de pesca tornam alguns peixes incomercializáveis; (2) os peixes são demasiado pequenos; (3) as espécies estão fora de estação; (4) a pesca almeja outras espécies e (5) os navios continuam a pescar na esperança de pescar peixes maiores, descartando nesse caso os menores, pois não há lugar para todos nos congeladores e as cotas já foram atingidas.
Mais da metade das grandes metrópoles do mundo são costeiras. O mar que as inundará periodicamente ao longo da segunda metade do século será, como visto, um mar sem peixes. Mas ele se terá transformado, em contrapartida, em depósito de lixo da civilização industrial, com dominância de plásticos, poluentes orgânicos persistentes (POPs), metais pesados, metilmercúrio, nitrogênio e resíduos sólidos urbanos (RSU), como se verá no próximo artigo.
[I] Veja-se, por exemplo, o livro-reportagem de Charles Clover, “The End of the Line”, de 2006, o documentário homônimo de Rupert Murray, baseado nesse livro e lançado em 2009, disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=sXNhQn9VeKs>, o depoimento de Paul Watson, criador da ONG Sea Shepherd, sobre a próxima extinção do atum azul, em <https://www.youtube.com/watch?v=Dt-07H6RN5Y> e o belo e terrível documentário Sharkwaterde Robert Stewart, de 2006, disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=pZ1ZtJJi0c4>.
[III] Cf. FAO, “General situation of world fish stocks” (sem data).
[IV] Cf. FAO, The State of World Fisheries (cit, p. 16): “Data quality remains a concern for some major producers. Marine catches reported by Indonesia and Myanmar have increased markedly and continuously in the last 20 years. However, the fact that reported capture production did not decline significantly or continued to increase when natural disasters occurred (e.g. the tsunami of December 2004 and Cyclone Nargis in May 2008) made FAO concerned about the reliability of their official statistics”.
[V] Cf. “Sea Around Us study finds 30 per cent of global fish catch is unreported”, 18/VI/2016.
[VI] Cf. Pauly & Zeller, “Catch reconstructions reveal that global marine fisheries catches are higher than reported and declining”. Nature Communications, 7, 19/I/2016.
[VII] Cf. Henrik Österblom et al., “Transnational Corporations as ‘Keystone Actors’ in Marine Ecosystems”, Plos One, 27/5/2015. Dessas 13 multinacionais, 4 têm sede na Noruega, 3 no Japão, 2 na Tailândia, uma na Espanha, uma na Coreia do Sul, uma na China e uma nos EUA.
[VIII] Cf. “Sea Around Us study finds 30 per cent of global fish catch is unreported”, 18/VI/2016 (cit.).
[X] Cf. Boris Worm et al., “Impacts of Biodiversity Loss on Ocean Ecosystem Services”. Science, 314, 5800, 3/XI/2006, pp. 787-790. [XI] Cornelia Dean, “Study Sees ‘Global Collapse’ of Fish Species”. The New York Times, 3/XI/2006. [XII] Cf. M. Hoffmann et al., “The impact of conservation of the status of the world’s vertebrates”. Science, 330, 2010, pp. 1503-1509; Martine Valo, “Massacre en haute mer”. Le Monde, 1/IV/2015. [XIII] Cf. Dirk Zeller et al., “Ten million tonnes of fish wasted every year despite declining fish stocks”, 16/VI/2017, Sea Around UsLuiz Marques é professor livre-docente do Departamento de História do IFCH /Unicamp. Pela editora da Unicamp, publicou Giorgio Vasari, Vida de Michelangelo (1568), 2011 e Capitalismo e Colapso ambiental, 2015, 2a edição, 2016. Coordena a coleção Palavra da Arte, dedicada às fontes da historiografia artística, e participa com outros colegas do coletivo Crisálida, Crises SocioAmbientais Labor Interdisciplinar Debate & Atualização (crisalida.eco.br).
Fonte – Texto Luiz Marques, Fotos Reprodução, Edição de imagem Luis Paulo Silva, Jornal da UNICAMP de 03 de julho de 2017
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