Dia destes eu proferi uma palestra, na modalidade online, sobre COMO OBRIGAR O MUNICIPIO A CUMPRIR A POLÍTICA NACIONAL DE RESIDUOS SÓLIDOS e dela me despertei para escrever este ensaio. Aqui abordarei o tema em outro caminho que o da palestra. Primeiro vou apresentar hipóteses que levam o município a não cumprir a política nacional de resíduos sólidos, depois formularei hipóteses da apatia social pelo descumprimento da Política Nacional e por fim dizer qual mecanismo há para ser usado, tanto para o combate à inércia municipal quanto para o despertamento social.
Qual a razão para que o ente público não cumpra a PNRS? A principal peça do sistema: o gestor público. E não me refiro aqui somente ao prefeito, mas à totalidade dos servidores públicos. O gestor público prefeito, de regra, é um profundo desconhecedor técnico. Ele fala, convence, arregimenta, lidera, mas não é um técnico em saneamento. Isto é o impeditivo? Absolutamente não. É apenas a principal desculpa, especialmente depois do século das luzes que guindou a ciência e o tecnicismo à categoria de grandeza única para ação humana acertada. Mas a lógica da vida e o pé no chão nos dizem o contrário. As grandes decisões e concepções humanas nascem do contato com a realidade e do senso comum para o desenvolvimento lógico do raciocínio no caminho para a solução do obstáculo, problema ou dificuldade. Daí pode-se fazer ciência.
Só se afasta do fedor aquele a quem o fedor lhe atinge as narinas. Candidatos cheiram os fedores, mas prefeitos não têm olfato para eles, porque já se distanciaram da fonte fétida… O maior problema do gestor público é o distanciamento da realidade. Tudo porque a burocracia transforma a realidade em estatística e lhe entrega relatórios cadenciais sobre o problema. O lixo passa a ser custo e não mais saúde e nem mal cheiro, muito menos um cenário feio e de crueldade.
O prefeito até fala, “precisamos resolver isto” e aí pede para burocracia. A primeira camada burocrática é a de confiança, é seu primeiro escalão, seu secretariado. Se conseguir furar esta primeira camada entrará no estado profundo da burocracia, também conhecido por deep state. Aí as coisas tomam contornos mais complexos, porque cada agente passou num concurso para uma função específica. Mas o secretário que assumiu compromisso com o prefeito vai se reunir com outros secretários e será baixada uma portaria conjunta nomeando uma comissão multidisciplinar. Reunidos todos, a contragosto, porque cada um já tem sua atividade prevista em lei, somará o problema do lixo. Vão lembrar que o concurso não foi prestado para esta função. O concurso foi para procurador, mas na prova não caiu direito dos resíduos, o concurso foi para engenheiro civil e na prova não caiu engenharia sanitária. O técnico ambiental fez prova para fiscal, cobrar cumprimento de leis e não pensar em soluções. Enfim, quando reunidos descobrem duas possibilidades: ou se faz um concurso para o cargo específico de técnico em resíduos sólidos ou que se contrate uma empresa especializada, porque, oras, eles são especializados e os servidores ficarão livres para voltarem aos seus quefazeres para os quais acreditam que seus concursos os habilitaram.
A primeira hipótese, embora maravilhosa, porque a secretaria ganharia um ou mais servidores, esbarra num problema: o índice ou coeficiente de gastos com a folha já não permite. O município já compromete mais de 52% do que arranca da população para manter o monstro estatal. Então sobra a segunda ideia. Uma grande ideia, diga-se de passagem, porque estão cumprindo seu dever com a sociedade e seu patrão aparente. Então, elaborarão o termo de referência para que seus colegas do setor especializado de licitações façam uma licitação. e o problema para primeira comissão está solucionado.
Assim o estado profundo entrega a solução para o prefeito, passados já dois anos do início do mandato e o prefeito não sente mais o fedor do lixo, já que agora são os seus caminhões, e não mais o do outro prefeito, que derramam chorume pelas vias públicas. O candidato não entendia, mas o agora prefeito sabe que a população tem que entender: existe uma burocracia que ele precisa cumprir, senão ele responderá por improbidade e improbidade não é só roubar, mas não cumprir princípios administrativos como o da eficiência.
Como a população entende, o prefeito, cônscio de seu dever sendo cumprindo, ordena a despesa e que se faça a licitação para contratar os especialistas que encontrarão uma solução ao lixo para sua cidade.
Quando sai o edital, feito no esmero possível do setor especializado em fazer somente licitações, da comissão nomeada conforme lei só para licitar, os maus empresários da iniciativa privada impugnam o edital, porque eles não têm a preocupação com o social, somente com o vil metal da contratação que almejam junto à administração. Começa-se uma guerra jurídica e de vaidades. Recursos que são negados, porque onde já se viu, a comissão não cometeria erros, se é especialista em fazer licitações. Chega uma hora que a última decisão é do prefeito e ao seu lado vai estar o secretário, justificando o porquê do recurso, porque negou no mérito ou apenas está segurando na forma. E depois de muita conversa, o secretário avisa o prefeito: as empresas não têm razão, mas se forem para a justiça, sabe como é, cabeça de juiz e bunda de nenê, somado à jurisprudência majoritária, a chance das empresas melarem o certame é muito grande. O prefeito vai bater a mão na mesa, esbravejar, reclamar que ninguém entende como ele sofre para fazer as coisas certas, que os empresários são calhordas, que os funcionários deveriam ter visto isto antes, onde estava o procurador do município(?), mas ele precisa decidir e não pode desmoralizar a administração assumindo que não soube fazer e também não deve ceder às empresas. Aí, como que Salomão descendo-lhe em espírito decide: cancela tudo, arruma e faz de novo. Magnífico! Ninguém poderá dizer nada e mais um ano se perdeu na decisão salomônica de agradar ou desagradar a todos.
Chegamos ao quarto ano, aí já estamos em campanha e o Tribunal de Contas, junto com a Justiça eleitoral, atrapalhando o bom andamento da administração, vem com um calendário e acaba após maio inviabilizando o certame e a solução do lixo mais uma vez.
Mas o prefeito tem consciência que agiu bem, ele mandou fazer, mas a burocracia é intransponível, seu eleitor vai entender, ele tem provas nas mãos, licitação cancelada por culpa dos empresários, portarias de nomeação de comissão para resolver, pareceres, etc. Ele fez tudo, se alguém quiser ignorar que ignore, mas ele e Deus sabem que ele fez tudo…
Acredito que aqui encerro minha hipótese que de algum modo explica a síndrome de Nimto, ou do “não no meu mandato”, para a solução do lixo.
Vamos agora para a hipótese da apatia social para o cumprimento da Política Nacional de Resíduos Sólidos. Aqui mais uma vez a doença começa por um vírus chamado positivismo cujo DNA começou no século das luzes, mas ele mesmo toma corpo na idade moderna, aquela que balançou o berço da belle époque. Amor à ciência e à lei foi a doutrina passada para cada criança deste país ainda em tenra idade. Ordem e Progresso. Ordem pela obediência à lei e progresso conforme o avanço científico. Esta criança, agora adulto, nem se lembra disto e nem imagina que tenha amor por isto. Mas o resultado prático foi: deixe tudo nas mãos dos técnicos, dos cientistas, dos juristas, condes encastelados em feudos da ciência, senhores de almas que não formaram, escravocratas sociais travestidos de democratas, decidindo para o que toma por servo, o que entende que é melhor para sua vida.
Como é brutal o desconhecimento da história, as luzes ofuscaram o passado e os que habitam por este tempo nesta terra acham que podem entregar suas vidas aos iluminados para decidirem o melhor para si, com amparo na ciência. Mas esta geração desconhece que os iluminados são de carne osso, regidos pelas mesmas paixões da massa, finitos como ela, limitados a pisar este solo por no máximo um século e que a ciência que hoje praticam é na qualidade o que se fala do ensino público.
Não sou contra a ciência, eu sou um cientista. Mas não deposito fé na ciência. Ciência trato da mesma forma como a ciência trata seus objetos, com método e provas fáticas. Fé deposito em Deus.
Mas esta ideia de que alguém deve decidir, de preferência um técnico, cria na população a síndrome do jeca, que talvez seja maior que Monteiro Lobato retratou em Urupês. O jeca aqui é em espírito, na materialidade ele é moderno e já galgou classe.
O pensamento do jeca é que alguém tem que fazer, mas alguém sem nome e nem face. Isto cria um estado de letargia que quando a população se vê de frente com o problema, apenas resmunga, traz um reclamo em voz baixa e pronto, espera a tal justiça, espera a lei, espera o técnico.
Nem preciso dizer que lei não resolve. Lenio Streck foi franco ao escrever no livro Nas brechas da Lei (nome para lá de sugestivo) que o direito não cabe na lei. Já lembrei em outro ensaio o problema do fruto e a árvore. Árvore boa não dá fruto ruim e árvore ruim não dá fruto bom. Olhem para o nosso legislativo em suas três esferas. O que esperar deles? Embora a população reclame, e com razão, não consegue ver que destes mesmos homens não sairão boas leis. É um problema de árvore.
Uma lei produzida assim, como deverá ser interpretada? Sob a insegurança que o judiciário nos proporciona nos exemplos da corte constitucional. Exemplos? O direito é para dar segurança e paz à sociedade. Desta razão decorre um tal direito ao esquecimento, que o STF já reconheceu e até publicou a 5º Edição do Boletim de Jurisprudência Internacional com este título “Direito ao Esquecimento”. Mas a razão de esquecer se esqueceu a corte e leu onde não havia escrito que seria imprescritível a cobrança do dano ambiental. Quiçá os herdeiros de Cabral já coçaram a cabeça… Está certo que a depender de como as coisas caminharem, alguém em algum momento virá com um tal efeito modulador e segurará ou dará novos contornos aos efeitos da decisão. Mas tudo isto é incerto, tudo isto se torna insegurança jurídica. Esta é uma crítica acadêmica.
Neste diapasão em que tudo é constitucional neste país, é claro que tratamento de lixo uma hora acabará nas alças da corte e então? Então não se iludam. A lei não é o que está escrito, mas aquilo que for decidido de forma irrecorrível, até que apareça um recurso novo, um fato novo, e novamente haja outra decisão.
Mas ainda assim a população acredita na justiça. Talvez porque ela, em tempos incertos, acaba promovendo à força uma espécie de fraternidade legal. Parece que ouço Bastiat dizer “eu não consigo sinceramente entender como a fraternidade pode ser legalmente forçada, sem que a liberdade seja legalmente destruída e, em consequência, a justiça legalmente pisada. ”
Por outro diapasão, embora o homem comum saiba que há uma raiz amarga, talvez nem de longe imagine o nome, que tão mal fez para a academia, que até há poucos minutos na história era uma academia de um único farol a iluminar o direito, o farol social, vindo do socialismo, nas faculdades. O farol que admite o controle absoluto tão festejado pelo estado policialesco, sob expressões tiradas do mar onde navegavam, como de Lacordaire que disse “entre o fraco e o forte é a liberdade que escraviza e a lei que liberta”.
A população vê uma faculdade ruim, mas se esquece que a toga foi forjada intelectualmente nela. Bebeu em excesso do positivismo científico e da teoria crítica de Frankfurt. Ainda que o concurso público seja mérito, é necessário esclarecer que um mérito de saber e responder aquilo que seus professores do pensamento social e suas teorias críticas recheiam as provas.
Mas não é só a toga que passou pela faculdade. Todo os tecnocratas que formam a tecnocracia. Tecnocracia é o nome pomposo do entregar o controle de sua vida nas mãos de quem não lhe representa e nem pensa como você.
Mas também pudera, pensa o cidadão. Se entrega o ente público nas mãos do político, ele finge ser como a população, para se mostrar o progressista ávido no mandato. Se entrega nas mãos do técnico, ao menos ele terá nas mãos o uso da ciência! Boa justificativa! Mas o problema é que a ciência não é em si a razão da sociedade e nem seus valores. O ser humano tem uma alma, que tem exigências que o mundo do método nem sonha por onde passa e nisto se inclui o nosso problema resíduo.
A relação com o sujo, o limpo, o lixo, o ganho, a perda, vai muito além de uma obrigação legal, fundamentada num parecer técnico e discutida no judiciário. Tudo isto nada resolve, porque se resolvesse, nossa nação não estaria no patamar que está. Vejam todos o festejado novo marco do saneamento. Com a promessa de dar flexibilidade e permitir à sociedade agir em prol do saneamento, o que é elogiável, traz consigo a mão escondida, de ultrajar a Política Nacional de Resíduos Sólidos, para dar mais prazo para maus gestores, verdadeiros delinquentes da norma, manterem seus lixões, ao arrepio da saúde dos que pagam a conta e carregam este país, por mais alguns anos.
A lei não apagará o mal, mas aliviará o desconforto do judiciário cobrar uma lei, que há diversos anos não vem sendo cumprida. Trará paz para egressos do executivo que descumpriram a lei.
Então o que fazer, qual o mecanismo para resolver o problema do lixo? Passa primeiro pelo respeito. Respeito ao cidadão comum e em especial o mais pobre desta nação que depende do sistema único de saúde. Passa por entender tanto o senhor (o povo) e o servidor (o político e o funcionário público) os seus papéis.
O senhor manda e deve ser obedecido em sua vontade, porque ele paga a conta. A generosidade do político, o erro do técnico, tudo é pago pelo senhor da nação e a conta é cada vez mais cara quanto mais pobre é o cidadão.
Passa urgente pela redução do estado. A burocracia é o substrato da corrupção e do atraso. É o caminho da perdição. Ela é responsável pelos obstáculos e pelas brechas. Não pode o cavalo valer mais que o cavaleiro. Mas neste país, o estado vale mais que o cidadão. Sem respeito algum, suga-lhe todas as riquezas, mesmo que o direito diga que deve ser respeitado a capacidade contributiva e vedado o confisco. Direito que não cabe na lei, ainda mais numa lei que por ousar constar o direito precisou ser interpretada pelo judiciário de modo a garantir o aguilhão estatal como sócio majoritário da produção privada.
Passa pela população usar do seu conhecimento do fato, passar a usar a lógica, a concatenação de ideias não contraditórias, ousar em declarar ela o que é verdadeiro e o que é falso e retomar as rédeas. Chega de bromas! Se há água servida rolando pelo chão, não tem justificativa técnica que garanta a permanência deste mal. Não há todo o tempo do mundo para cessar este descalabro. Não há burocracia que justifique o injustificável. Mas dia após dia, sempre tem uma desculpa técnica, um dinheiro na alínea errada do orçamento, uma licitação deserta, um projeto complexo…
E tem o discurso das instituições. Ora a instituição tem este compasso! Não existem instituições. Existem pessoas que dão vida as instituições. O estado é o político de plantão e o servidor ali alocado.
Mas como a população vai sair da letargia? A conversa se tornaria muito mais longa do que já imagino, porque passa por cada pai poder educar seu filho e não deixar que o estado o doutrine. Ensiná-lo que ser cidadão é poder pensar e julgar por si mesmo, e não pelos outros. É ter conhecimento de causa, não de forma rasa, mas de forma profunda. É adquirir conhecimento e não adquirir diploma. É ousar caminhar e nunca ter medo. Mas o estado agiu como serpente: o cidadão só tem tempo para tentar viver e nunca para filosofar. Primo vivere, deinde filosofare, já haviam dito os romanos.
Talvez agora, quando as coisas supérfluas começam a desaparecer em razão de um vírus, em que tiranos se revelam, em que a ciência se demonstra fraca por não ser consenso, em que o medo de morrer se torne tão forte, que exija a experiência da coragem, o cidadão saia da letargia, deixe a apatia e assuma que ele deve capitanear o estado. Neste momento, não só o problema dos resíduos, sua coleta e tratamento será resolvido, sem desculpa técnica do tempo, do dinheiro, sem esperar que outro faça, sem depender de lei ou decisão judicial, porque saúde, predicado necessário para a vida, não espera.
Rogel Martins Barbosa, é advogado, Ph.D em Direito dos Resíduos, autor de obras jurídicas e professor de cursos como o História dos Resíduos, onde conta a história da humanidade através do lixo e o Curso Livre de Direito dos Resíduos. É o criador do canal resíduos, meio ambiente e estado no https://t.me/residuos
Necessario incentivo na reciclagem de residuos. Educação ambiental nas escolas, educando o futuro do amanha. Educação ambiental maciça na população das cidades.