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A transposição e a morte do rio São Francisco

“A ideia de aproveitamento das águas do São Francisco para projetos de irrigação de grande envergadura não é ruim”, mas considerando o “estado de fragilidade” dos afluentes que o alimentam, a execução de uma obra como a da transposição do rio São Francisco terá como consequência “acelerar a morte do rio”, diz Altair Sales Barbosa à IHU On-Line.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, o antropólogo comenta a inauguração do eixo leste da transposição do rio São Francisco, e afirma que “a pressa desenfreada para inaugurarem as obras se enquadra nos moldes ditados pelo modelo econômico que rege a política brasileira, visando à expansão de fronteiras agrícolas para atender as exigências do capital internacional, sem a devida preocupação com as consequências ambientais e sociais para o futuro regional e mesmo para o futuro do planeta”.

Barbosa explica que a transposição afetará “drasticamente a dinâmica” não só do rio São Francisco, mas de sua bacia hidrográfica, que “é formada por rios senis, que já atingiram seu estado de equilíbrio”. “As consequências do sistema de transposição serão danosas e num curto espaço de tempo levará à morte a maioria dos afluentes do São Francisco, incluindo o próprio rio. Isto acontecerá porque com a dinâmica alterada o transporte de sedimentos arenosos aumentará de forma assustadora, gerando dentre as consequências o assoreamento, já que a maioria dos afluentes do São Francisco corre por áreas da Formação Urucuia, cuja característica principal é a ocorrência de um arenito frouxo”. Além disso, ressalta, “o rio São Francisco integra um sistema composto por elementos intimamente interligados”, portanto “qualquer alteração nesses elementos provoca alteração no sistema como um todo”.

Altair Sales Barbosa possui graduação em Antropologia pela Pontificia Universidad Católica de Chile, doutorado em Arqueologia Pré-Histórica pela Smithsonian Institution – National Museum of Natural History, de Washington, Estados Unidos. É coordenador do projeto Enciclopédia Virtual do Cerrado pelo Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, do qual é sócio titular.

No dia 16 de maio, das 19h30min às 22, ele profere a conferência O Sistema Biogeográfico do Cerrado, as comunidades tradicionais e cultura, dentro da programação do evento Os biomas brasileiros e a teia da vida, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Veja a programação completa.

IHU On-Line – Como o senhor reage diante da entrega da primeira parte da transposição do rio São Francisco, que leva água até Pernambuco?

Altair Sales Barbosa – A pressa desenfreada para inaugurarem as obras da transposição do rio São Francisco se enquadra, atualmente, nos moldes ditados pelo modelo econômico que rege a política brasileira, visando à expansão de fronteiras agrícolas para atender as exigências do capital internacional, sem a devida preocupação com as consequências ambientais e sociais para o futuro regional e mesmo para o futuro do planeta.

IHU On-Line – Era ou não desejável realizar essa obra no São Francisco? Por quê? Quais são os impactos geológicos de uma transposição?

Altair Sales Barbosa – A ideia de aproveitamento das águas do São Francisco para projetos de irrigação de grande envergadura não é ruim, mas no estado de fragilidade e degradação em que se encontram seus alimentadores, executá-la é acelerar a morte do rio. A bacia tem que ser vista de maneira global. Como já é conhecido, o rio São Francisco integra um sistema composto por elementos intimamente interligados, e qualquer alteração num desses elementos provoca alteração no sistema como um todo. As águas da bacia do São Francisco dependem basicamente dos aquíferos Urucuia e Bambuí, cuja recarga depende das águas das chuvas, absorvidas pelo complexo sistema radicular das plantas do Cerrado.

Cerrado

O Cerrado é uma formação complexa que depende de inúmeros fatores para a sua existência. Entres estes fatores, incluem-se alguns mamíferos que têm a capacidade de quebrar, no mecanismo do seu intestino, a dormência das sementes de algumas plantas e se tornam disseminadores dessas plantas, cujas tecnologias ainda não foram desenvolvidas para produção em viveiros. Outro fator importante é a polinização por vespas e abelhas indígenas endêmicas do Cerrado. Não é necessário falar que a fauna do Cerrado se encontra em processo acelerado de extinção, portanto o processo natural de disseminação vegetal está afetado.

O Cerrado, enquanto ambiente e formação vegetacional, já atingiu seu apogeu evolutivo. Isto significa que, uma vez degradado, não se recupera jamais na plenitude de sua biodiversidade. A discussão da revitalização não passa de uma falácia que revela desconhecimento da história evolutiva do Cerrado. Algumas plantas do Cerrado demandam séculos para atingirem a maior idade.

Se considerarmos o Cerrado com um todo, ou seja, incluindo todos os seus subsistemas, menos de 5% de sua área original está preservada. Nos chapadões onde ocorre a recarga dos aquíferos, este índice ainda é menor.

IHU On-Line – Quem foram os principais apoiadores e opositores da transposição? Pode nos apresentar quais são os argumentos utilizados em favor da obra e quais são os contrários?

Altair Sales Barbosa – Quando o Governo Federal, em 2005, anunciou o projeto de transposição do rio São Francisco, grande parte dos pesquisadores brasileiros, conhecedores da ecologia regional, se posicionou contrária ao referido projeto. Juntamente com os pesquisadores, vários segmentos sociais de agricultores familiares, ribeirinhos e Comissão Pastoral da Terra também se juntaram a essas vozes — a mais expressiva e esperançosa foi expressada através do gesto do bispo da diocese de Barra, D. Luis Cappio. Entretanto, o fim do protesto deste bispo, explicitado através de um jejum de vários dias, associado à decisão do Supremo Tribunal Federal de ordenar a retomada das obras para a transposição do rio São Francisco, funcionou como uma ducha de água fria, despejada em todos os movimentos que possuem uma visão diferenciada da posição oficial sobre a transposição. E apagou de vez a esperança que alguns mantinham na capacidade de diálogo dos governantes.

A promessa do então governador da Bahia de revitalizar as cabeceiras dos alimentadores do São Francisco não passou de uma ilusão, porque cientificamente é impossível concretizar este fato.

IHU On-Line – A transposição do rio São Francisco se divide em dois eixos, o Norte e o Leste. Pode nos explicar cada um deles e de que modo a água do rio será transportada para os quatro estados que receberão essa água?

Altair Sales Barbosa – O atual projeto de transposição do rio São Francisco consiste na construção de dois eixos adutores, que se interligam a eixos adutores menores, dispersos em várias direções. O primeiro eixo, denominado Eixo Norte, terá, segundo dados oficiais, 402 quilômetros de extensão por 25 metros de largura e 6 metros de profundidade. Será totalmente construído em massa concreta. Entretanto, dados não oficiais informam que esse eixo terá uma extensão superior a 600 quilômetros, não contabilizando os adutores colaterais. A água que abastecerá esse eixo será bombeada para o canal a partir da cidade de Cabrobó e passará prioritariamente por terras do Estado do Ceará e Rio Grande do Norte.

O segundo eixo se denomina Eixo Leste e de acordo com dados oficiais terá uma extensão de 220 quilômetros em linha reta, tomando como orientação o eixo principal. Todavia, esse eixo se une a um emaranhado de eixos menores, cuja somatória total ultrapassa os 1.000 quilômetros. Passará em terras dos Estados de Pernambuco e Paraíba. Sua captação se fará através de bombeamento de água, a partir da represa de Itaparica. A construção, toda em concreto, terá as mesmas características do Eixo Norte, com 25 metros de largura por 6 de profundidade.

Mapa do projeto de Transposição do São Francisco (Fonte: Portal do Governo Federal)

IHU On-Line – Que avaliação faz do processo de construção da obra?

Altair Sales Barbosa – Este sistema de transposição afetará drasticamente a dinâmica do rio São Francisco e toda sua bacia, que é formada por rios senis, que já atingiram seu estado de equilíbrio. Este estado já foi afetado algumas vezes pela construção de barragens. As consequências do sistema de transposição serão danosas e num curto espaço de tempo levará à morte a maioria dos afluentes do São Francisco, incluindo o próprio rio. Isto acontecerá porque com a dinâmica alterada o transporte de sedimentos arenosos aumentará de forma assustadora, gerando dentre as consequências o assoreamento, já que a maioria dos afluentes do São Francisco corre por áreas da Formação Urucuia, cuja característica principal é a ocorrência de um arenito frouxo.

A transposição, da forma como se nos apresenta, aumentará também a velocidade dos rios na sua calha principal. Isto provoca em todos os afluentes o fenômeno denominado sugamento dos aquíferos, que serão sugados em velocidade maior para alimentarem os rios agora mais velozes desde seus cursos superiores.

Como já é conhecido, em função da retirada da cobertura vegetal nativa para monocultura, os aquíferos não estão sendo recarregados como deveriam e de ano em ano diminuem em seus níveis. O sugamento funcionará como um aspirador sugando a última poeira dos cantos de alguns aposentos que alguém esqueceu de varrer.

IHU On-Line – Um dos principais argumentos dos governos do PT e PMDB ao defenderem a transposição do rio São Francisco era o de que a obra beneficiaria 12 milhões de pessoas em quatro estados, Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. Por que na sua avaliação esse argumento é frágil e por quais razões a obra é controversa?

Altair Sales Barbosa – Infelizmente, o discurso da geração de empregos e do enriquecimento fácil, usado pelos políticos sem a devida assessoria científica, tem servido de base para iludir o povo. O tempo tem demonstrado o quanto esse discurso é falacioso.

É claro que se houvesse o estudo adequado de toda a bacia do São Francisco e um zoneamento agroecológico correto, algumas áreas poderiam usufruir da irrigação para produção, sem a necessidade da transposição da forma como está se concretizando.

IHU On-Line – Como a população desses quatro estados tem reagido ao processo da transposição e especialmente neste momento, com a entrega de parte da obra? A população também está dividida em relação às vantagens e desvantagens dessa obra?

Altair Sales Barbosa – Pequena parcela da população tem reagido de forma mais veemente. Isto porque falta organização e falta consciência. Se esses dois elementos existissem, a reação seria bem maior.

Conhecimento do problema que a transposição trará, muitos têm, mas a consciência que é capaz de mudar comportamentos, poucos a têm. A resistência fica por conta de pequenos grupos organizados da Igreja Católica, como a Comissão Pastoral da Terra, ribeirinhos, pescadores e alguns artistas que abraçaram a causa. Felizmente a consciência está se alastrando, o que poderá ter, no futuro, resultados concretos.

IHU On-Line – O senhor comentou recentemente que há uma disputa por água no Oeste da Bahia entre população local e multinacionais do agronegócio. Como essa disputa vem ocorrendo e por que as empresas se beneficiam da transposição, e a população, não?

Altair Sales Barbosa – Há cerca de um mês, fiz uma vistoria em alguns rios do oeste da Bahia, vertente do São Francisco e outros situados a leste do Espigão Mestre, que vertem para o Tocantins. A situação é de pura calamidade, basta analisar as imagens de satélite da região para verificar a migração das nascentes desses rios, bem como o desaparecimento de outros.

Os grandes empreendedores dessas iniciativas são absenteístas, não vivem no local, por isso mesmo não sabem dimensionar a grandeza do crime que estão cometendo, não só contra as populações tradicionais, mas contra os bens naturais e a própria humanidade, uma vez que o prejuízo ambiental já concretizado é irreversível. Para quem conhece a dinâmica da ecologia do Cerrado, tem pleno conhecimento deste fato. Seus representantes, verdadeiros capatazes, se alinham aos que dominam a política do Estado da Bahia, através dos órgãos que deveriam cuidar do meio ambiente, e não favorecerem e facilitarem a sua destruição. Os representantes destes órgãos desconhecem as diferenças com que o Sertão de Dentro se manifesta em relação à dinâmica ecológica de Salvador ou do Litoral.

Algumas pessoas que exercem cargos políticos, assentados em Salvador e algumas regionais, funcionam como “cabeça de ponte” entre a população que os elegeu confiando nas suas “boas intenções”, e os capatazes dos empresários alienígenas. Juntos proporcionam o suicídio ambiental e humano pela ação dos que detêm o poder, e o suicídio da população, por omissão, que vê seus bens naturais e seus valores humanos serem erodidos, mas que não têm a força necessária para frear o processo de degradação e destruição da natureza e das comunidades.

É importante salientar que o Cerrado do oeste da Bahia é de fundamental importância para a recarga do aquífero Urucuia, através da absorção das águas das chuvas. As águas desse aquífero sustentam os rios que correm paralelamente encaixados e que são os responsáveis diretos pela vida e perenização do rio São Francisco, “um patrimônio nacional”. Mas o Cerrado do oeste da Bahia também é importante para a vida no Planeta, pois, pelas suas características evolutivas, exerce o papel de sequestrar grande índice de carbono da atmosfera, numa época em que o efeito estufa põe em risco a vida na Terra. Portanto, este ambiente, se preservado, pode ser considerado também um Patrimônio da Humanidade.

Desde que o grande capital se implantou na área, o Cerrado em todos os seus gradientes vem sendo, paulatinamente, delapidado na plenitude de sua biodiversidade, incluindo as águas. Portanto os autores dessa façanha estão cometendo um crime contra a humanidade. Talvez não tenham as condições e inteligência necessárias para avaliarem as consequências nocivas advindas de tais atos. Mas, também, podem ter sido engolidos pela ganância do lucro, o que é ainda pior. Uma coisa é certa, nesta situação não cabe a frase bíblica “Perdoai, Senhor, porque eles não sabem o que fazem”.

Os frutos dessa desarmonia serão colhidos ainda na geração atual. Não pensem que somente os filhos e netos herdarão o sofrimento, cuja semente está sendo plantada, porque a natureza não espera quando entra em desequilíbrio.

IHU On-Line – Especificamente para o Rio São Francisco, quais serão as consequências ambientais da transposição?

Altair Sales Barbosa – O rio São Francisco nasce no Cerrado de Minas Gerais, na Serra da Canastra, percorre mais de 3.000 km até sua foz. Ao longo desse percurso, vai engrossando suas águas, principalmente com seus afluentes da margem esquerda, que formam as sub-bacias dos rios Paracatu, Urucuia, Carinhanha, Corrente e Grande. Todos esses rios e seus alimentadores menores estão morrendo a cada hora que passa. Alguns já desapareceram para sempre. Isto acontece porque os dois grandes aquíferos que fazem o São Francisco brotar e o alimentam ao longo do seu percurso, estão secando.

Para entender este fato, é necessário recuar no tempo, pelo menos 45 milhões de anos. É nesta época que o Cerrado adquire suas feições atuais, cuja vegetação possui um sistema radicular complexo. Por este fator, começou a reter as águas das chuvas que caíam principalmente nos Chapadões do Noroeste de Minas e Oeste da Bahia, Distrito Federal e Nordeste Goiano e parte do Tocantins. Estas águas, primeiro são armazenadas nas rochas decompostas, que formam o lençol freático, depois, pela abundância, infiltram pelas brechas das rochas do subsolo e se acomodam nos lençóis profundos. No Bambuí, esta água, após atravessar a Formação Urucuia, que é arenosa, se armazena nas imensas galerias comuns às formações calcárias. No Urucuia a água foi formando, com o tempo, grandes reservatórios que se acomodavam entre os poros do arenito.

Aquíferos

Quando os aquíferos retiveram água suficiente, esta começou a brotar, na forma de nascentes, principalmente nas testas da Serra e na forma de pequenas lagoas nas áreas aplainadas, formando as veredas. Com o tempo as águas, como lágrimas milagrosas, começaram a descer em direção a leste, alimentando a calha do seu condutor mor, o rio São Francisco. E assim, foram se formando paisagens que deveriam ser maravilhosas. Ao longo dos rios surgiam lagoas e banhados, onde se multiplicavam, em grande quantidade, os peixes que outrora eram abundantes, não só no São Francisco, mas em todos os seus afluentes.

Na realidade os afluentes da margem esquerda são os principais responsáveis pela perenização do rio São Francisco, pela sua oxigenação e, em última instância, pelo seu nascedouro e existência. A água armazenada neste grande espaço geográfico abrange desde a Serra da Canastra ao sul, até a chapada das Mangabeiras ao norte e se limita a oeste pelo Espigão Mestre, que separa Goiás e Tocantins de Minas e Bahia. Nos Chapadões formados a leste do Espigão Mestre, existem grandes depósitos de arenito que constituem a Formação Geológica Urucuia, de idade Cretácea, formada entre 140 e 65 milhões de anos. A formação Urucuia repousa sobre a Formação Bambuí, calcário de idade Pré-Cambriana e Paleozoica Inicial, com média de um bilhão de anos. Essas duas formações geológicas armazenam águas que formam dois grandes aquíferos, responsáveis pelas águas que fazem jorrar a nascente do São Francisco e de todos os seus afluentes da margem esquerda, que, em função de secções geomorfológicas, estão agrupados em dois grandes conjuntos. O primeiro se situa desde a Serra da Canastra até a Serra da Capivara, na fronteira entre Minas Gerais e Bahia. O segundo se situa desde esta Serra até os contrafortes da Chapada das Mangabeiras, na fronteira entre Bahia, Tocantins, Piauí e Maranhão.

Entre os rios do primeiro conjunto, se destacam: Abaeté, Paracatu, Urucuia e Pardo. A partir da Serra da Capivara, um aglomerado de capilares hidrográficos forma importantes rios, como o Carinhanha, que deságua diretamente no São Francisco, e uma série de outros importantes, como Pratudão, Pratudinho, Arrojado, Correntina, do Meio, Guará etc., que nas proximidades de Santa Maria da Vitória, se juntam dando origem ao rio Corrente, que deságua no São Francisco, nas proximidades de Bom Jesus da Lapa. Mais ao norte, outro grande conjunto de inúmeros capilares aquosos, que vem desde o Jalapão, se junta dando origem ao rio Grande, que deságua diretamente no São Francisco. Todos esses rios são perenes durante toda época do ano, e até cerca de 30 anos atrás o volume era no mínimo 5 vezes maior que o volume atual.

A partir da década de 1970, as áreas dos chapadões, onde se situam as nascentes e os cursos médios desses rios, vêm sofrendo uma grande transformação, com a retirada da cobertura vegetal natural, para a produção de grãos e outras plantas exóticas. Este fato tem impedido a realimentação normal dos aquíferos, contribuindo para o desaparecimento de inúmeros afluentes menores e a diminuição drástica do volume dos cursos maiores.

A maior parte dos afluentes da margem direita do rio São Francisco é formada por rios temporários, rios que costumam desaparecer na estação seca. Isto ocorre porque esses rios não são provenientes de aquíferos, mas dependem das águas armazenadas no fino lençol freático, que repousa sobre rochas não porosas que constituem o Cráton do São Francisco. O lençol freático está na dependência das águas pluviais e da vegetação. Portanto, o desmatamento associado a um período de estiagem prolongada o afeta totalmente.

O rio mais importante pela margem esquerda não é temporário, porque vem do aquífero Bambuí. Trata-se do rio das Velhas, que carrega para o São Francisco todo o esgoto de Belo Horizonte.

Cerrado já atingiu o clímax evolutivo

De todos os ambientes terrestres atuais, o Cerrado pode ser considerado o mais antigo dentro da história recente do Planeta, que começou por volta de 65 milhões de anos numa Era Geológica denominada Cenozoica. Os processos iniciais da história evolutiva do Cerrado começaram no início dessa era e se concretizaram por volta de 45 milhões de anos antes do presente. Por isto o Cerrado como um todo é um ambiente especializado que já atingiu seu clímax evolutivo, ou seja, uma vez degradado não mais se recupera na plenitude da sua biodiversidade.

Hoje são conhecidas aproximadamente 13 mil espécies vegetais no Cerrado. Atualmente existe conhecimento para produção em viveiros de no máximo 200 espécies. As pesquisas da biotecnologia sobre produção de mudas nativas do Cerrado “in vitro” têm alcançado poucos resultados positivos. Portanto, quando se fala em revitalização do Cerrado, é prudente considerar esses aspectos, incluindo a função ecológica da vegetação nativa para a alimentação dos aquíferos, caso contrário não passa de discurso vazio.

A partir de 1970, a vegetação nativa do Cerrado, que ocupava os chapadões, capinas e tabuleiros, foi sendo substituída por plantas exóticas. Consequência: a chuva continuou caindo, mas não infiltrava como anteriormente, nem era absorvida pelo complexo sistema radicular da vegetação nativa, porque esta não existia mais. As plantas exóticas introduzidas têm raiz subsuperficial, e não chegam a reter 20% das águas; além do mais, como se trata de culturas temporárias, grande parte do ano o solo fica desnudo, aumentando a perda da umidade do lençol freático. Acrescente-se a isso os pivôs centrais que nos chapadões são alimentados através de poços artesianos. Ou seja, além, de não estarem sendo recarregados normalmente, a pouca água existente atualmente nos aquíferos ainda é sugada para umedecer as grandes plantações, que não retêm o excesso dessa água, que acaba evaporando.

A retirada da cobertura vegetal natural do Cerrado tem influenciado a própria vida do São Francisco, já que este depende de fatores ecológicos extremamente complexos e interdependentes. O processo de desaparecimento dos seus alimentadores hidrográficos está acontecendo num ritmo muito acelerado, em função desse fator. O raciocínio é simples: as águas das chuvas eram absorvidas em grande parte pela vegetação nativa que alimenta os aquíferos, que fazem suas descargas nos declives e áreas baixas formando os rios.

Migração das nascentes

É como um imenso reservatório, assemelhando-se a uma grande caixa d’água com vários furos enfileirados de cima para baixo. Quando o reservatório estava cheio, a água jorrava por todos os furos. À medida que o nível foi baixando, a água que anteriormente jorrava dos furos superiores deixava de correr. Este fenômeno é conhecido pelo nome de migração de nascentes. A migração das nascentes provoca o desaparecimento de pequenos cursos d’águas no início, mas à medida que o processo se acentua, os cursos maiores são afetados, até desaparecerem totalmente. Vez em quando, vão ocorrer cheias estrondosas, provocadas ciclicamente por fenômenos naturais como El Niño e La Niña, mas isto não significa que o rio tenha ressuscitado, são fenômenos efêmeros provocados por enxurradas resultantes de chuvaradas que se deslocam pelos antigos caminhos das águas.

Extinção da fauna

O que aconteceu com o quadro vegetacional vem acontecendo também com os animais, incluindo os insetos polinizadores, que se encontram em acentuado processo de extinção. No caso específico da fauna aquática do rio São Francisco, esta era abundante, com variadas espécies de peixes que saciavam a fome das populações ribeirinhas e ainda mantinha comércios dinâmicos. Esse panorama não existe mais.

Diante de tal situação, alguns se colocam como salvadores, pregando, por exemplo, programas de soltura de alevinos para repovoarem os rios. É sempre bom lembrar que a cadeia alimentar dos filhotes de peixes se inicia nas lagoas e matas ciliares, ambientes produtores de fitoplânctons. Entretanto a degradação provocou o desaparecimento das lagoas marginais e das matas ciliares contínuas. Por isso, os peixes foram embora.

O incentivo oficial, através de verbas governamentais e internacionais, para a pesquisa aplicada visando à produtividade, demonstrou que a área dos chapadões por onde nascem e correm os principais afluentes do São Francisco, com muito insumo, poderia se transformar num potencial agrícola de dimensões grandiosas, associado ao fato de ser uma das últimas reservas da terra capaz de suportar, de modo imediato, a produção de grãos, cereais e a formação de pastagens e canaviais. Este fato atraiu recentemente grandes investimentos, criando modificações significativas, do ponto de vista da infraestrutura de suporte. Fenômenos que, tomados em conjunto, têm provocado situações ecologicamente nocivas, com perspectivas preocupantes a nível regional e global.

Modelo econômico

A causa fundamental desta situação pode ser creditada ao modelo econômico que se instalou, voltado para o lucro imediato, sem nenhuma preocupação com as questões globais do meio ambiente e o conhecimento necessário do funcionamento da ecologia do Cerrado. Também pode-se associar a este determinante a falta de ações integradas de pesquisa técnico-científica para o conhecimento holístico das interações ambientais existentes, que tem causado a ausência de propostas concretas de zoneamento ecológico, com ênfase socioeconômica e planejamento global do uso dos recursos naturais da terra. Em suma, a pesquisa ficou voltada apenas para a produtividade; em nenhum momento se pensou na pesquisa visando à preservação.

Com a concretização do atual projeto de transposição das águas do rio São Francisco para os dois eixos adutores maiores e para os eixos menores, prevista para ser totalmente finalizada em 2017 e quando as bombas sugadoras instaladas em Cabrobó e Itaparica estiverem funcionando a todo vapor, todo o sistema hidrográfico da bacia será afetado drasticamente. Isto porque a dinâmica do grande rio e toda sua bacia formada por rios senis, que já atingiram seu estado de equilíbrio, será também drasticamente afetada. As consequências da transposição serão danosas, e num curto espaço de tempo levará à morte a maioria dos afluentes do São Francisco, incluindo o próprio rio.

IHU On-Line – Desde o Império há discussões sobre a viabilidade ou não da transposição do rio São Francisco e muitos defenderam esta como a única possiblidade para resolver o problema da seca do Nordeste. O que seria uma alternativa à transposição?

Altair Sales Barbosa – No Império a situação da preservação era outra, mas ainda bem que não se concretizou naquela época a tal transposição porque, se a degradação ambiental e social viesse a acontecer, como realmente aconteceu, hoje teríamos um grande deserto no Brasil.

Fonte – Patricia Fachin, IHU de 17 de março de 2017

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