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Adeus tabaco, alô alimentos orgânicos

“Plantar para não comer e virar fumaça não tem graça, né?”, resume Jair Scheidt, agricultor do município de Imbuia, ao explicar por que abandonou plantio de fumo, em sua propriedade no interior de Santa Catarina. Sua família era mais uma dentre outras 186 mil que atuam no plantio do tabaco só na região sul do país. Desde 2008, Jair iniciou o processo de transição do plantio para a produção agroecológica de alimentos como feijão, mandioca e cebola, para vender aos programas federais de aquisição de alimentos e em feiras livres da região. Muitos de seus vizinhos, porém, ainda continuam sendo fornecedores de indústrias como a Souza Cruz.

O consumo de cigarros já caiu pela metade durante os últimos 20 anos no Brasil. Mesmo assim, desde 1993, o país segue como maior exportador mundial de tabaco, já que mais de 85% de sua produção é dirigida ao mercado externo. As condições favoráveis de clima e solo para o cultivo e o baixo custo da mão de obra rural, somados a incentivos para a instalação de indústrias processadoras, contribuem para a manutenção desta liderança.

O passado de Scheidt e outros agricultores do sul do País, porém, leva a crer que o primeiro lugar desse ranking não merece comemorações, já que a fumicultura amarga uma lista de problemas econômicos, sociais e ambientais relacionados à sua produção e comercialização, com destaque para o impacto na saúde dos agricultores.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), só no século XX o tabagismo causou a morte de cerca de 100 milhões de pessoas em todo o mundo. O que talvez soe como novidade é que, não só o consumo, mas também o plantio do tabaco pode provocar doenças e até a morte, em casos extremos de intoxicação, pelo simples manuseio da folha de fumo. O “mal da folha verde”, como ficou conhecida a enfermidade, é um tipo de intoxicação aguda causada pela absorção dérmica da nicotina, que ocorre com frequência em lavradores que trabalham no cultivo da planta.

Nicotina absorvida pelo manuseio

“Calcula-se que, depois de um dia em contato com as folhas, o agricultor possa ficar exposto a até 54 miligramas de nicotina, como se ele tivesse fumado 36 cigarros, afirma a pesquisadora Patrícia Oliveira, que conduziu um estudo da Fiocruz sobre o “mal da folha verde” no Brasil. Segundo o trabalho, 77% dos agricultores acometidos pela doença nunca fumaram. “Chegava à noite, às vezes tinha que deixar minha esposa sozinha amarrando o fumo e ia para casa tomar banho e dormir, mas nem dormia, porque ficava vomitando verde. Era aquele porre de fumo. Tinha enjoo, tontura, cegueira, suor frio, tremedeira”, recorda o Sr. Gilmar Cognacco, de Leoberto Leal (SC), outro agricultor que abandonou o plantio de 160 mil pés de tabaco para cultivar alimentos orgânicos e preservar a saúde.

Aos danos à saúde dos produtores somam-se os ônus ecológicos do plantio do fumo, começando pela contaminação do solo e de cursos de água. Ela ocorre devido ao uso de agrotóxicos e do descarte inadequado das embalagens durante o plantio. O analista da Souza Cruz, Bruno Scofano, argumenta, porém, que a empresa tem investido em programas de responsabilidade social, pesquisas e melhores práticas agrícolas como a adubação verde, a rotação de culturas e o uso sustentável dos solos. “Com isso, já conseguimos reduzir drasticamente a quantidade de agrotóxicos utilizados nas últimas décadas”, conta.

Ônus ambiental

Para o técnico agrícola Charles Lamb, as iniciativas ajudam, mas não resolvem. Coordenador institucional da ONG Cepagro (Centro de Estudos e Promoção da Agricultura em Grupo), que atua em Santa Catarina com estímulo à agroecologia, ele reconhece que as indústrias fumicultoras têm tentado melhorar suas práticas para conquistar a opinião pública, mas ressalta que os impactos ainda são grandes.

Charles lembra que o consumo exagerado de madeira no sul do país também entra na conta da produção do fumo. Após a colheita do tabaco, são empregadas dezenas de metros cúbicos de lenha para manter acesas as estufas de secagem das folhas, implicando no desmatamento da cobertura vegetal nativa das propriedades ou no avanço do plantio de pinus e eucaliptus, espécies exóticas que desequilibram os ecossistemas locais. Estima-se que a cada ano cerca de 600 milhões de árvores são destruídas no mundo para alimentar os fornos que secam as folhas de tabaco. Para se ter uma ideia do que isso significa, a cada 300 cigarros acesos, uma árvore é derrubada, segundo dados da ONG SOS Mata Atlântica.

Trabalho exaustivo

Entre os agricultores, a reclamação mais comum é sobre a pesada carga de trabalho exigida para o cultivo do fumo, especialmente na época da secagem das folhas, em que é preciso regular as estufas de duas em duas horas durante dia e noite. É o que conta o senhor Alcides Will, agricultor que chegou a ter 60 mil pés de fumo em sua propriedade, no município de Nova Trento – SC. “No fumo, é o serão que mata o freguês. Quando chega a colheita é 24 horas. Se não tá colhendo, tá amarrando ou cuidando da estufa.” Segundo seu irmão, Antonio Will, tanta dedicação nem sempre é recompensada. “No último ano mesmo que nós cultivamos, quando fomos fazer as contas, tínhamos tirado 100 reais por mês por pessoa que trabalhou na safra. Nem a prestação do trator no banco nós conseguimos pagar”.

O quadro de prejuízos sociais e ambientais contrasta com os lucros das empresas fumageiras, que não param de crescer, mesmo com a queda no consumo interno de cigarros. Dominando mais da metade do mercado brasileiro, a Souza Cruz, por exemplo, teve um lucro líquido de R$ 1,64 bilhão em 2012, valor 12% maior do que em 2010. De acordo com a médica pesquisadora do Instituto Nacional do Câncer (INCA), Tânia Cavalcante, a indústria tabagista é onerosa também para o Estado brasileiro, apesar da suposta alta arrecadação de impostos sobre os cigarros, que arrecadaram cerca de R$ 6 bilhões para os cofres públicos em 2011. Por outro lado, foram gastos outros R$ 21 bilhões com o tratamento de 15 tipos de doenças relacionadas ao tabaco.

Porta de saída

Em pesquisa realizada pelo Departamento de Estudos Socioeconômicos Rurais – DESER com mais de mil produtores de tabaco, 73% afirmaram que, se dependesse deles e suas famílias, deixariam de produzir fumo. Destes, 24% alegaram como motivo as doenças causadas pelo cultivo. Outros entrevistados levantaram a baixa rentabilidade, ou a excessiva carga de trabalho como fatores desmotivadores.

Para tentar ajudar esses agricultores no processo de se livrar da dependência, não química, mas econômica do fumo, há 10 anos o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), implementou o Programa Nacional de Diversificação em Áreas Cultivadas com Tabaco, que permitiu que pessoas como Gilmar, Jair e Alcides vislumbrassem novas atividades agropastoris menos agressivas à saúde de sua família e ao solo de suas propriedades. Ao todo, já são 60 projetos de apoio à diversificação, especialmente na região sul, que concentra 95% da produção do país.

Christianne Belinzoni, mestre em Ciências Agrárias e consultora do programa, explica que na prática a ideia é “ensinar através de parcerias locais como plantar outras culturas, o que plantar, como vender e para quem, dependendo de cada região”. Segundo ela, o programa também estimula que os agricultores adotem princípios agroecológicos e eliminem o uso de agrotóxicos, pois além de serem caros também podem causar intoxicação aguda.

“Vivendo geralmente em localidades distantes dos centros consumidores, os pequenos produtores se deparam com as dificuldades de acesso a mercados para comercialização de alimentos e continuam acreditando que a fumicultura é a única alternativa de geração de renda que eles têm”, conta Christianne. Dessa forma, assim como os fumantes são dependentes do cigarro, há indícios de que os agricultores também vivem uma relação de dependência com as fumageiras. Essa relação é estabelecida pelo “sistema integrado de produção”, implantado por corporações do tabaco como a British American Tobacco (que controla a Souza Cruz) há mais de 90 anos no Brasil. O modelo funciona da seguinte forma: as indústrias financiam insumos, equipamentos, estufas e fornecem orientação técnica para os agricultores, contratando, assim, a obrigação de que cultivem matéria-prima só para elas.

Contrato viciante

Bruno Scofano, da Souza Cruz, afirma que a vantagem é que a indústria oferece a possibilidade do produtor pagar pelos insumos adquiridos somente quando vende sua produção à empresa. Entretanto, o contrato é rígido. Ele especifica várias condições de produção: o tipo de fumo (Virgínia, Burley ou Comum), variedades de sementes, tamanho da área de plantio, a estimativa de quantos pés a serem cultivados e a quantidade de tabaco a ser entregue. O preço da compra, entretanto, não é preestabelecido. Isso porque a classificação das folhas também fica a cargo da indústria, que possui uma lista com dezenas de categorias de qualidade do tabaco, com preços variados, que também oscilam de acordo com os estoques da empresa. O agricultor só sabe em quais categorias a sua produção entrou depois que ela chega à indústria de processamento. Se for de uma qualidade menor do que o esperado, ele não tem como negociar, pois já se comprometeu a vender toda a sua safra. Quando isso acontece, pode entrar na próxima safra já endividado por conta das prestações altas de insumos e equipamentos, conforme relatos parecidos com os dos irmãos Will. A garantia de venda de 100% da produção, porém, continua sendo para muitos produtores a principal justificativa para seguir o cultivo do fumo.

Além disso, depois de décadas plantando tabaco, agricultores como os Cognacco, por exemplo, tinham pouca experiência com cultivo de alimentos, sobretudo agroecológicos. Por isso, o Cepagro, que é um dos parceiros do Ministério do Desenvolvimento Agrário, em Santa Catarina, ministra cursos, intercâmbios, oficinas e estimula a articulação dos agricultores de forma coletiva, através da Rede Ecovida, uma organização que reúne 3 mil famílias e implementou a certificação participativa, reconhecida oficialmente pelo Estado, para a produção de alimentos orgânicos.

Com esse apoio, há 3 anos a família de Gilmar substituiu o cultivo do fumo por um sistema ecológico diversificado. Em sua propriedade, hoje se produz leite, hortaliças e verduras que servem para o consumo próprio e são comercializadas em uma feira em Brusque (SC) e em um box agroecológico, inaugurado pela Rede Ecovida no Ceasa da Grande Florianópolis. “A propriedade está 100% mais verde, antes era muito veneno”, afirma Gilmar, que hoje conta com a ajuda do filho mais velho, Geovani. “Se ele estivesse plantando fumo, eu já tinha ido embora para a cidade. Agora cultivando alimento vou ficar”, diz Geovani.

A família Will também comemora a melhor qualidade de vida no campo. Estruturar uma agroindústria de conservas e geleias foi a maneira que eles encontraram para desvencilhar-se da fumicultura. Aos poucos, as portas vão se abrindo. Outra opção de comercialização que tem beneficiado os pequenos produtores é o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), do governo federal, que passou a comprar produtos alimentícios diretamente da agricultura familiar.

As estatísticas mostram uma nova tendência: na região Sul, de acordo com a Associação dos Fumicultores do Brasil, de 2004 a 2012, o número de famílias fumicultoras caiu de 196 mil pra 165 mil.

“Organizados em grupos, articulados em rede, com assistência técnica, os agricultores conseguem ter o suporte que substitui a pretensa segurança do sistema integrado das fumageiras”, ressalta Charles, do Cepagro.

Gilmar, Jair e os irmãos Will tornaram-se referência em sua região. Agora, eles recebem grupos de famílias que desejam conhecer as alternativas à fumicultura. “Começamos a trabalhar em grupo e vieram famílias de outros municípios nos visitar para saber se compensava. Como está dando certo, hoje tem muitos produtores do grupo trabalhando junto com a gente, na diversificação do fumo”, conta Gilmar Cognacco.

A Organização Mundial de Saúde contra o tabaco

O Programa de Diversificação em Áreas de Cultivo de Tabaco surgiu a partir de um tratado internacional adotado em maio de 2003 por membros da Organização Mundial da Saúde – OMS, depois de três anos de árduas negociações e fortes pressões dos fabricantes de cigarros. Na época, os 192 países-membros foram unânimes e se uniram para declarar guerra ao cigarro, através da chamada Convenção Quadro para o Controle do Tabaco, no que diz respeito ao controle da publicidade, a venda de produtos do tabaco a crianças e adolescentes, o comércio ilícito, e o uso de cigarro em lugares públicos. Além disso, foi consenso a necessidade de criação políticas que estimulassem a substituição do cultivo do fumo por outras culturas economicamente viáveis.

Mais informações: http://actbr.org.br/tabagismo/convencao-quadro.asp

Fonte – Camila Fróis e Carú Dionísio, O Eco de 22 de agosto de 2013

Fotos – Fernando Angeoletto

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