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Água a 38°C, peixe podre e jacaré morto: cientistas mostram colapso no AMAZONAS
Por Colaboração para a coluna de Rodrigo Ratier, em Ecoa – 17 de outubro de 2023 – Ao fim de setembro e nas primeiras semanas de outubro, uma paisagem entristecedora se tornou mais comum nos arredores de Manaus, a capital do Amazonas.
Locais onde antes havia abundância de águas estão, neste instante, secos, cobertos apenas por lama ou por barro.
Bancos de areia surgem no encontro dos rios Negro e Solimões-Amazonas, onde até pouco tempo atrás turistas fotografavam a imensidão do que mais parecia um mar.
Conforme as águas desaparecem, cadáveres em putrefação de peixes de diferentes espécies, jacarés, botos e tracajás vão ficando em seu lugar.
No dia 10 de Outubro, uma equipe do Laboratório de Ecofisiologia Molecular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônica (LEEM-INPA) foi ao município de Careiro Castanho, a cerca de 80 km de Manaus, para monitorar a situação da seca.
Por lá, lagos menores já estão completamente secos, trazendo impactos significativos às comunidades ribeirinhas, que dependem dos rios para o transporte.
Para se ter uma noção, crianças da comunidade já não estão indo para escola, por conta do baixo nível das águas.
Onde estavam lagos, há agora muitos peixes mortos.
A equipe realizou medições na água e encontraram pontos com temperatura superior a 38ºC (a média fica entre 28ºC e 30ºC e níveis baixos de concentração de oxigênio (que os peixes respiram), na casa dos 0,5 mg de O2 por litro, um número terrivelmente perto de zero.
Essa situação representa um risco sem precedentes para os ecossistemas aquáticos amazônicos, podendo resultar em redução da população de diversas espécies e até mesmo extinção de algumas.
Isso porque a exposição constante à alta temperatura pode ser letal para muitos animais, que estão vivendo próximos do limite da sua capacidade de se adaptar a esse calor.
Segundo as medições do porto de Manaus, ao longo do mês de setembro, o rio Negro, que banha a capital amazonense, secou mais de 20 cm por dia. Em outubro, os números estão melhorando, chegando a 13 cm de vazão, mas a seca persiste e, hoje, já é a segunda maior da história.
Na última segunda-feira (16), o Rio Negro chegou a sua maior baixa registrada, a um nível de 13,59 metros.
Banco de areia no famoso encontro das águas dos rios Negro e Solimões. Imagem: Susana Braz-Mota
Ocorre que o rio já secou a níveis que se esperam para toda a estação seca, que geralmente vai até novembro, indicando que há chances de se quebrar um recorde nas próximas semanas. É seguro afirmar: o Amazonas está vivendo um fenômeno climático extremo.
Vida aquática em risco
Lamaçal e rios secos na região de Careiro Castanho (AM). Populações ribeirinhas já não conseguem se locomover com seus barcos. Imagem: Susana Braz-Mota
Como é bem sabido, a região amazônica abriga a maior bacia hidrográfica do mundo, com cerca de 1700 rios.
Essas águas se espalham por outros milhares de igarapés – pequenos canais, ou rios menores – que, por sua vez, levam nutrientes para dentro das florestas.
Nessa soma impressionante de água habitam cerca de 20% da variedade de peixes de água doce do planeta, além, é claro, de outros organismos, como insetos, sapos, botos, peixes-boi, ariranhas, jacarés, cobras, tartarugas etc.
Jacaré morto em lago seco na região de Careiro Castanho (AM). Imagem: Susana Braz-Mota
A interação dessas espécies com seus habitats permite que a Amazônia preste serviços ecossistêmicos importantes para todo o continente: a evapotranspiração das árvores cria “rios voadores” que levam umidade e água doce para outras bacias hidrográficas.
E o gás carbônico, um dos responsáveis pelo aquecimento do planeta, é absorvido pelas plantas, estocado no solo, dissolvido nos rios ou acumulado em turfas.
Os peixes da Amazônia têm um papel ecossistêmico importante para a floresta.
Eles são dispersores de sementes, por exemplo, e seus fluxos migratórios entre rios de tipos de água diferentes carregam nutrientes de algumas áreas para outras.
Essas espécies de peixes, assim como tantas outras formas de vida, estarão diante de desafios agigantados nos próximos anos.
Segundo dados do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU (IPCC), espera-se um aumento de até 7ºC na temperatura média na região Amazônica neste século, num cenário extremo de maior concentração de gases de efeito estufa na atmosfera.
Águas mais quentes são um estressor significativo diretamente relacionado à maior mortalidade de peixes na região.
Períodos como este, de seca intensa e aumento das temperaturas das águas, estão associados à menor disponibilidade de oxigênio nos rios – o que cientistas chamam de hipóxia.
Temperatura alta e hipóxia são uma soma de fatores altamente estressante para muitos peixes amazônicos: quanto mais quente, mais intensos ficam seus metabolismos que, por sua vez, requerem mais oxigênio, demandando uma grande quantidade de energia do animal.
Peixes em decomposição atraem garças e urubus. Imagem: Susana Braz-Mota.
Uma pesquisa testou uma exposição de 10 dias a um habitat com essas condições em 13 espécies de peixes amazônicos.
Destas, duas morreram em até 33ºC.
Para outras nove, 35ºC foram letais e apenas duas sobreviveram a temperaturas acima disso.
Repetindo: a equipe do LEEM-INPA encontrou pontos em que a água estava em 38ºC.
Já no lago de Tefé, a 521 quilômetros de Manaus, onde foram encontrados mais de 100 botos mortos, as medições realizadas pelo Instituto Mamirauá registraram temperaturas das águas superiores aos 39ºC.
Ocorre que os peixes da região são menos tolerantes a aumentos de temperatura em comparação com animais subtropicais ou de regiões temperadas, por exemplo.
Outra pesquisa trabalhou com três espécies de peixes ornamentais da Amazônia e descobriu grande estresse oxidativo e até mesmo deformações fisiológicas em cenários extremos de aquecimento global, segundo o IPCC, com a ajuda de equipamentos que simulam ambientes com temperaturas 4,5ºC mais altas que as atuais e com maior concentração de gás carbônico na atmosfera.
Tudo isso permite afirmar que, neste instante, em meio à seca, muitos dos peixes da Amazônia já se encontram em severo risco.
Hoje, os peixes. Amanhã, o ser humano
A esta altura, alguém que lê este texto pode até se perguntar: e por que devo me importar com os peixes?
E a situação das pessoas, não é muito pior?
A pergunta é justa, e a resposta vem na forma de outra pergunta: por que deveríamos tratá-los como questões distintas, não relacionadas?
A bacia amazônica é um forte exemplo de como humanos e outros organismos, em um mesmo habitat, mantêm importantes correlações.
Quando um vai mal, os outros também vão.
Se as funções ecológicas dos peixes em carregar nutrientes e sementes pela floresta não são o suficiente para convencer de sua importância para o bem-estar humano, há ainda um segundo argumento: alimentação.
A região amazônica é conhecida como uma das maiores consumidoras de peixe do mundo, com uma ingestão de 135 a 292 quilos de peixe por ano e por pessoa, de acordo com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).
Além disso, o pescado na Amazônia Legal resulta em valor econômico na ordem dos 389 milhões de reais anualmente, com comunidades que dependem da pesca para consumo próprio e para o comércio.
O tambaqui é um dos peixes mais apreciados por aqui, chegando à casa de 400 toneladas consumidas por ano só em Manaus.
Tambaquis são campeões de adaptabilidade e, por esse motivo, são amplamente cultivados em fazendas de aquicultura.
Acostumado a viver nas águas mais ácidas e naturalmente com menor disponibilidade de oxigênio, esse peixe desenvolveu lábios inferiores capazes de capturar oxigênio da superfície das águas nos períodos de estiagem, algo que o tornou mais resiliente às mudanças no clima.
Outro exemplo de resiliência é o pirarucu, um gigante pode chegar a 3 metros de comprimento, que possui uma bexiga natatória especializada para funcionar como um pulmão, tornando-o capaz de respiração aérea em tempos difíceis.
Mas mesmo algumas dessas capacidades extraordinárias de adaptação não parecem ser o bastante para resistir a um cenário extremo que se dá num período de tempo tão curto.
Nos experimentos mencionados anteriormente, mesmo as espécies que sobreviveram às altas temperaturas demonstraram prejuízos de longo prazo em suas funções metabólicas e respiratórias.
Para o tambaqui, maiores temperaturas, por exemplo, é um dos fatores que o conduz a inflamações ou infecções mais frequentes, tornando-os menos resilientes.
A seca apenas demonstra na prática o que seria a vida em condições climáticas mais adversas, mais quentes e com estações secas mais longas.
Para populações que dependem tanto do pescado, isso já representa, hoje, um risco significativo à segurança alimentar de toda a região à sua capacidade de escolher como e do que querem se alimentar.
Quais são as causas da seca?
Queimadas como esta, ao longo da BR-319, deixaram o céu de Manaus coberto de fumaça na semana passada. O tempo seco facilita que o fogo se alastre mata adentro. Imagem: Susana Braz-Mota.
Este é um ano de El Niño, o fenômeno climático que torna as águas do Oceano Pacífico mais quentes.
Todo El Niño cria condições de seca e temperaturas mais elevadas no Brasil, especialmente no Norte e no Nordeste, como também ocorreu da última vez, em 2016.
Porém, outros fatores se somam ao El Niño deste ano, explicando a atual situação.
O Oceano Atlântico também está ficando mais quente, e este fato pode estar ligado ao aquecimento global devido à emissão de gases de efeito estufa, como o dióxido de carbono.
Com isso, ventos quentes e secos chegam à região amazônica, dificultando ainda mais a formação da chuva.
Além disso, a degradação da floresta também é um fator que participa desta crise.
Desmatamentos e queimadas perturbam o processo de evapotranspiração das florestas, aquele mesmo que forma os “rios voadores” anteriormente mencionados.
Isto acaba por atrasar o período de chuvas e, consequentemente, prolonga a estiagem.
Estima-se que 28% da umidade que entra no sistema amazônico seja evaporada localmente, pela própria floresta. Logo, menos floresta também quer dizer menos umidade.
A atual seca, portanto, demonstra o quanto a região pode ser afetada se políticas públicas de conservação não forem fortalecidas nos próximos anos.
O horizonte não é animador e exige do país ações estratégicas e coordenadas. Afinal, um estudo publicado pela organização não-governamental Carbon Plan aponta que Manaus será a cidade mais quente do Brasil em 2050, com 258 dias do ano em temperaturas mínimas acima dos 30 graus — e isso representará maiores taxas de mortalidade na fauna e na flora.
E o que fazer?
No curto prazo, é possível apoiar iniciativas que oferecem assistência às famílias impactadas pela seca.
Por exemplo, o Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS) está recebendo contribuições para compra de cestas básicas, água, suprimentos de higiene e itens essenciais pela chave pix CNPJ 06.214.337/0001-88.
Também a Igreja Presbiteriana de Manaus organiza a campanha SOS Seca Amazonas, para distribuir cestas básicas, e recebe contribuições via pix com a chave 92 99132-9664.
No médio e no longo prazo, porém, as soluções são mais complexas, envolvendo políticas de conservação e um novo modelo de desenvolvimento para região que não seja baseado na devastação da floresta.
Com isso, próximos eventos como o El Niño não seriam agravados pela degradação dos territórios por desmatamento ou por queimadas.
Em 2021, o Painel Científico para a Amazônia, que reúne cientistas das mais diversas especialidades, publicou um relatório extenso sobre a situação dos biomas amazônicos e com diversas sugestões de políticas para a região, incluindo opções de restauração de áreas degradadas pelo fogo.
Já em 2022, uma outra equipe de cientistas liderada por Carlos Nobre publicou o relatório Nova Economia da Amazônia.
Nele, os especialistas desenham os benefícios de se abandonar um modelo extrativista de exploração da floresta e abraçar uma economia baseada em produtos e saberes locais.
O estudo prevê, porém, que uma guinada de investimentos deve ser feita na Amazônia Legal da ordem de 1,5% do PIB por ano, até 2050, para criar uma economia desse tipo.
A maior parte desses investimentos iriam para otimização do uso do solo, evitando, assim, novos desmatamentos e queimadas.
* Susana Braz-Mota é pós-doutoranda em Ciências Biológicas pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Tiago da Mota e Silva é jornalista e doutor em Comunicação PUC-SP, atualmente desenvolvendo um projeto de Comunicação Científica junto ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia ADAPTA, sediado no INPA.
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