Por Jean Silva* - Jornal da USP - 1 de novembro de 2024 - Tucuruvi,…
Água: a pergunta não é ‘E agora’, mas ‘E amanhã?’
Falta água, no Meia Ponte (GO), e no Tocantins, Araguaia, São Francisco, Nordeste e outras regiões.
Os motivos? É fácil citar 3:
1- Uso e ocupação do solo: a impermeabilização e ações que prejudicam a infiltração da água no solo, nosso principal reservatório, somado à poluição e degradação das bacias, em áreas urbanas quanto rurais;
2- Gestão e planejamento dos usos: a gestão, regulação e organização dos diversos usos é vital para alocar vazões, que são limitadas, de forma planejada, para o seu melhor aproveitamento, e atuação em eventos críticos. Diversos usos? Sim, uso de água vai muito além das nossas torneiras; e
3- Ciclo Hidrológico: as chuvas não são uma constante, variam no chamado Ciclo Hidrológico, que nos é um grande desconhecido, e essas variações impactam na organização dos usos, na alocação das vazões. Citando dois exemplos, desde 2008 há uma pequena redução na precipitação média na bacia Rio Meia Ponte (GO), a montante de Goiânia, que abastece mais de 1,5 milhões de pessoas, situação agravada a partir 2014, com redução de até 25%. O que ocorreu também na bacia do Tocantins, com redução superior a 30%, acima da barragem de Serra da Mesa.
Porque insistimos em não aprender com a história? O Sistema Cantareira (SP), inaugurado em 1973, que abastece mais de 8,5 milhões de pessoas, tem origem em uma crise hídrica ocorrida na década de 1960. Quer algo mais recente? Lembra de 1999? Do apagão? Do comprometimento do abastecimento público, geração de energia, dos prejuízos e do aumento dos custos no país? O que aprendemos? O que mudou no modo de agir? Porque falta de água de novo? Se estes dados são públicos e, em tese, estamos conscientes dessa situação, só temos duas opções, o hospital ou o cárcere, porque é insanidade ou é crime.
Está faltando água. E a questão não é o que faremos agora, isto está claro: fiscalizar usos irregulares, reduzir captações e garantir os usos prioritários: abastecimento humano (diferente de urbano) e animais, o que já é pelos Órgãos Gestores de Recursos Hídricos, com a participação dos demais componentes do Sistema de Gestão Recursos Hídricos, com destaque para os Comitês de Bacias Hidrográficas (CBH), como acontece hoje no rio Meia Ponte (GO), com atuação da Secretaria de Recursos Hídricos de Goiás, a SECIMA, e no rio Descoberto, que abastece o Distrito Federal, em atuação conjunta da SECIMA-GO, da Agência Nacional de Águas-ANA e da Agência de Águas do DF – ADASA.
É importante destacar que nos casos de escassez, e priorização de usos, a população tem obrigação de fazer o uso racional da água, pois, para garantir o consumo humano, outras atividades estão sendo fechadas, e é muito sério fechar um uso regularmente planejado e instalado, seja qual for, pois também afeta vidas e pessoas, com claros prejuízos a estes.
A questão a ser respondida é “Quando vamos mudar a forma de pensar e gerir nossas águas?”. Sim, gerir as águas. Essas que têm sido tratadas como detalhe, como anexo de outras áreas, mas que é capaz de inviabilizar a existência da vida e todas as atividades que exercemos, com severos prejuízos econômicos, sociais e ambientais.
Quando sairemos desses quebra-galhos, dessa “gestão de crise”, de apagar incêndios, para implementar o modelo definido na Política Nacional de Recursos Hídricos, uma “gestão de risco”, com estrutura e condições para antecipar, planejar, articular e agir, com foco não só o presente, mas também no futuro.
Quando entenderemos que a água é uma incerteza, e, que: gestão é mais que autorizar títulos de uso, chamados de “outorga”; que órgão gestor não é um cartório de registro de vazões; que gerir o recurso hídrico é garantir o acesso a água e distribuir, entre concorrentes, algo limitado; e que a responsabilidade não é só do Estado, e Governos, mas também dos Setores Usuários e da Sociedade.
Nossa disponibilidade hídrica deveria ser uma dádiva, mas pode rapidamente se converter em maldição, caso nossa postura não mude, caso continue a reinar essa ilusão nefasta de abundância hídrica, que faz com que a água não seja tratada como prioridade, afinal, para que investir recursos e estrutura para gerir algo abundante?
Uns dizem que água é vida, mas é também meio ambiente, plantas, animais, história, saúde, cultura, poesia, religião, solidariedade, integração.
Outros dizem que água é um direito humano, é há sempre copos, torneiras, sanitários, pias, calçadas, jardins, piscinas.
Outros dizem que é um uso, na irrigação, agropecuária, produção de alimentos, indústrias, mineração, saneamento básico (diluição dos efluentes urbanos), geração de energia, transporte, pesca, turismo, lazer.
Segundo Guimarães Rosa, em Grande Sertão Veredas, “perto de muita água, tudo é feliz”, mas quando ela falta, aí ela é problema, beira o colapso, desastre, vira seca, baldes, distâncias, conflitos, prejuízos, tristeza, sofrimento.
Água é tudo isso, e por isso, devemos urgentemente começar a tratá-la e geri-la nesses termos, com recursos, estrutura e pessoas, como um componente central, estratégico, não com um apenso, anexo ou pedaço das “questões ambientais”, mas como infraestrutura, base das atividades e do desenvolvimento econômico e social sustentável.
Não há vida sem água, assim como não há indústrias, agricultura, biodiversidade, produção de alimentos, empregos, não há nada. Que não seja tarde para entender e agir, para gerir nossas águas como elas merecem, mas principalmente como nós deveríamos, como nós precisamos.
* João Ricardo Raiser. Poeta. Administrador. Mestrando em Gestão e Regulação de Recursos Hídricos (PROFÁGUA), na UNESP – Ilha Solteira, membro de Comitês de Bacia Hidrográficas Federais e Estaduais, representante no Conselho Nacional de Recursos Hídricos. Gerente de Planejamento e Apoio ao Sistema de Gestão de Recursos Hídricos da SECIMA/GO. Atua na gestão das águas desde 2002. jrrgestor@gmail.com
Fonte – EcoDebate de 29 de setembro de 2017
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