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Água e terra, hoje, são artigos preciosos

Consultor da Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar e do Wervel (Grupo de Trabalho sobre Agricultura Sustentável na Bélgica), o frei Luc Vankrunkelsven morou e trabalhou no Brasil e na Europa, entre 2003 e 2008.

Neste período, escreveu dois livros: Navios que se cruzam na calada da noite. Soja sobre o oceano e Aurora no campo. Soja diferente. Terminado o projeto e os subsídios, ele achou que não voltaria ao País, mas suas experiências durante uma turnê de palestras renderam um terceiro livro: Brasil e Europa em fragmentos.

Em 2010, ele voltou para lançar o livro e fazer novas palestras. Desta vez, Salvador entrou no roteiro da viagem.

Na capital baiana, em entrevista exclusiva ao A TARDE, Vankrunkelsven explicou seu posicionamento crítico sobre os sistemas de agricultura, em especial às monoculturas irrigadas, como a soja e o milho. Entrevista realizada por Thais Rocha, no jornal A Tarde, BA, 18/07/2010

Ele também defendeu a substituição do algodão pelas fibras de cânhamo, que é da família da cannabis,mas contém apenas níveis mínimos de THC,principal ingrediente psicoativo na maconha.

As duras críticas ao agronegócio industrial e à defesa da agricultura familiar fizeram com que pesquisadores brasileiros lhe atribuíssem o apelido de “semeador de dúvidas”.

A soja tem sido o tema central de suas pesquisas e aparece como um símbolo da globalização. Porquê?

Não sou contra a globalização ou a produção de soja, mas o sistema de produção internacional é um problema.

A chamada revolução verde vinculou as produções às super sementes, ao uso de agrotóxicos e à dependência dos produtores ao mercado internacional.

Água e terra, hoje, são artigos preciosos e a produção de commodities, em países como o Brasil, nada mais é que a venda de água e de solo para outros países.

O seu primeiro livro publicado no Brasil, Navios que cruzam na calada da noite, fala sobre este assunto. Como está a produção no País?

Existem cinco empresas que transportam milho e soja, entre países produtores e mercados consumidores no mundo.

No Brasil,há agricultores com terras do tamanho da Bélgica. Aqui os incentivos para a revolução no campo não foram voltados para a distribuição de terra ou para matar a fome do brasileiro,mas para produzir soja e milho para exportação.

Como o senhor observa a produção de soja na Bahia? Ela faz parte deste contexto?

Nunca estive em Barreiras, não conheço de perto a produção na Bahia.

Mas me parece que aqui se reproduz o modelo de concentração de terras em uma área própria do cerrado. As plantas próprias deste habitat provocam uma evaporação de água muito menor que a soja e o milho, gerando um desperdício muito grande de água. Tenho muitas perguntas sobre quais serão as consequências desta produção.

Qual a sua avaliação sobre a rotação das culturas de soja e milho como algodão?

O sistema agroecológico defende a rotação de, pelo menos, sete culturas. A rotação entre três commodities continua a obedecer ao sistema internacional de produção e vai provocar consequências para o solo e para o clima da região.

Além disso, reservo severas críticas ao consumo do algodão no mundo.

Quais são elas?

A cultura do algodão exige um grande consumo de defensivos agrícolas.

O índice de veneno nas lavouras chega a 26%. Como parte das análises do Ano Internacional da Biodiversidade, declarado pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura (FAO), sugiro o uso da fibra e da proteína do cânhamo.

Quais são as propriedades destas fibras? Não é ilegal o uso desta planta?

Há alguns anos, as fábricas de fibras sintéticas usaram o argumento da droga para extinguir as plantações nas propriedades, a silagem de cânhamo foi substituída pela do milho. Esta é uma planta que não precisa de defensivos agrícolas e que faz uma alta captação de carbono.Quando isolamos uma casa com cânhamos, a captação de carbono é impressionante.

Muita gente não sabe a diferença entre cânhamo e maconha, mas alguns países já voltaram a incentivar pequenas propriedades, como no Canadá, França, Alemanha e Bélgica.

A produção de carne também é prejudicial?

Até 90% do farelo de soja produzido no mundo é destinado à ração animal.

Falar sobre carne é polêmico, mas falo muito sobre o este problema. Também não sou contra a carne, mas para abastecer o crescimento do consumo mundial precisaríamos de quatro planetas Terra. Hoje, a produção de carne e o crescimento da frota de veículos são os dois principais subpolos da cultura antiecológica.

Podemos medir qual é este crescimento?

O problema do consumo de carne está diretamente ligado à concentração da população nas cidades. O homem do campo come pouca carne, mas aqui cerca de 80% da população moram nas cidades. Enquanto a população mundial dobrou nos últimos 50 anos, o consumo de carne registrou crescimento cinco vezes maior. A perspectiva de consumo de carne é crescer 40% até 2020, 70% deste crescimento estarão concentrados na Ásia, em especial na China.

E quais as tendência?A solução seria pararmos de consumir carne?

A tendência mundial, agora, é a redução no consumo de carne bovina para o aumento da produção de aves e suínos, em granjas, alimentados com ração. Não sou vegetariano nem contra o consumo de carnes.

Critico o sistema de produção. Sou contra a cultura exportadora que gera dependências externas, principalmente, a dependência do petróleo para transportar tudo isso.

Como funcionam estes sistemas de produção?

Assim como a soja, podemos usar o frango como metáfora para a globalização.

O Brasil produz as aves, alimentadas com ração importada, fabricada com matéria-prima brasileira.

O frango é levado inteiro para países,como a Bélgica, que consomem a carne do peito e que processam e exportam outras partes como asas e coxas para regiões como a África, permitindo ao País fazer dumping nestas regiões. A Bélgica não cria uma ave e é um dos maiores exportadores do produto. A base para o transporte de toda esta mercadoria é o petróleo.

E quais seriam as soluções para estes problemas?

Seria por meio da soberania alimentar. A partir da organização política do mundo para que fossem adotadas técnicas de segurança alimentar, além de pensarmos em diminuir o consumo. Defendo uma campanha do Grupo de Trabalho por uma Agricultura Justa e Responsável (Wervel),que divulga o conceito de “Pensar globalmente e consumir localmente”, sem que seja necessário ficar transportando tanto alimento.

Em seus textos, há críticas severas ao etanol como biocombustível. Por que a classificação como “agrocombustível”?

Existe uma febre dos chamados “combustíveis verdes”.

Isso tudo é para que se plante mais soja e milho, para os motores a diesel, mais cana-de-açúcar, para o etanol. Mas tudo isso é o estímulo à monocultura, que consome muita terra e muita água e que expulsa os agricultores familiares para abastecer a indústria.

Ao produzir estes combustíveis, voltamos a discutir a velha história do “mais do mesmo”.

Então,apesar da redução dos resíduos, esta não poderia ser considerada uma fonte limpa de energia?

A produção de combustíveis a partir da agricultura pode fazer com que fazendeiros deixem de ter prioridade na produção de alimentos para alimentar a indústria de combustíveis, além do impacto ambiental que estas monoculturas trazem.

No Brasil, o governo fala muito na hidrelétrica como uma fonte limpa de energia,mas como justificar o impacto para o meio ambiente de uma proposta de construção da usina como esta de Belo Monte, proposta dentro da bacia amazônica? E qual seria uma fonte limpa e eficiente de energia?

Antes de mais nada, é necessário reduzir o consumo de energia. Além disso, há energias limpas. Na Europa, penso que uma boa fonte de energia é a eólica.

Aqui, além desta fonte, temos também a energia solar, que ainda é muito pouco utilizada.

Seus textos também falam sobre a importância da preservação da Amazônia. Ela pode mesmo se transformar em cerrado?

Falo sobre a Amazônia, mas o cerrado também corre o risco de desaparecer. Uma exposição sobre o cerrado, em Bruxelas, mostrou que esta é uma das biodiversidades mais ricas do mundo.

Ainda assim, o desmatamento é de duas a três vezes mais rápido que da Amazônia. Se este ritmo de crescimento for mantido, em 2030 não haverá mais cerrado no mundo.

Qual é a sua opinião sobre o título de “semeador de dúvidas”, que lhe atribuem?

(risos) Este foi um título que ganhei do professor Carlos Raimundo dos Santos, do Mato Grosso. Acho que ele se referiu assim porque venho de fora para falar de temas que são difundidos pelo agronegócio, mas que não são verdade.

Venho visitar e escrever no Brasil, não como um “gringo” está vendo tudo de fora. Tento escrever para os dois continentes como um homem que trabalha em dois países.

E pretende continuar escrevendo? Quais os seus planos para o futuro?

Escrevi 24 novos artigos neste roteiro que fiz ao Brasil e que termino hoje. Estou voltando as minhas atenções para o estudo de pesquisas sobre nanotecnologia sintética e sobre a biologia sintética, que é a fabricação de novas formas de vida, voltadas para a agricultura. Da última vez que estive aqui, achei que não voltaria tão cedo. Agora, pretendo voltar em março de 2011.

Fonte – Ruben Siqueira, CPT/BA, EcoDebate em 20 de julho de 2010

Imagem – agrilifetoday

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