Skip to content

As cidades e o desequilíbrio hídrico

Steve Dorman

Frequentemente se imaginava que a imagem de populações imersas em resíduos sólidos pudessem representar cenários cujo impacto catastrófico pudesse trazer modificações paradigmáticas na conservação ambiental. No entanto, é a escassez de água, e secundariamente as dificuldades nas disponibilidades energéticas, em parte decorrente das dificuldades hídricas, que vem alterando estes padrões. A natureza parece ser irônica para reagir as agressões antrópicas.

O caminho que está sendo percorrido, se aproxima de uma antiga previsão, que registrava que a civilização humana corria o risco de afogar cidades sob a água salgada dos mares em regime de transgressão, em cenário de carência de água doce potabilizada. Esta realidade se contextualiza com as mudanças climáticas que geram o aquecimento global, com o consequente derretimento de geleiras e elevação dos níveis dos mares. É como o náufrago que se observa cercado de água salobra e sem disponibilidade de água potável para sua dessedentação.

Relatórios da Organização das Nações Unidas registram o diagnóstico de que mais de 1 bilhão de pessoas não tem acesso a quantidades mínimas aceitáveis de água potável, que gere situação de segurança hídrica. O recente episódio de baixa pluviosidade na região sudeste, a mais rica do país, começa a fazer perceber que não é o volume ou a natureza das obras que pode solucionar a situação, e sim uma radical mudança de atitude na compatibilização e harmonização com os meios físico e biológico do planeta, entendido como a “nave” que todos compartilhamos no decurso de nossa vida em comum.

A Organização das Nações Unidas prevê que se nada mudar nos padrões de consumo e na forma geral dos indivíduos se relacionarem com o planeta, num horizonte próximo cerca de 5,5 bilhões de pessoas poderão não ter acesso aos recursos hídricos, tão fundamentais para a vida, correspondendo a 2/3 do total da população. E num horizonte maior, se diagnostica que menos de ¼ da humanidade vai dispor de água potável para satisfazer suas necessidades básicas de vida.

A escassez de água não é problemática apenas para dessedentação. Também gera dificuldades na manutenção das condições sanitárias e facilita a propagação de doenças, como a diarreia e a malária, que são responsáveis por mais de 2 milhões de óbitos em indivíduos humanos a todo ano, nas regiões mais vulnerabilizadas da terra.

A água doce, que pode ser potabilizada é um bem raro. Já se produz água potabilizada a partir de água dessanilizada, mas a um custo energético ainda bastante elevado. Cerca de 97% das águas que cobrem a superfície da terra são salinizadas. Dos restantes 3%, a maior parte está em geleiras ou calotas polares. Menos de 1% está disponibilizada, predominando as águas subterrâneas, armazenadas em aquíferos. A água disponível em rios, lagos e lençóis freáticos totaliza menos de 0,25% da água total do planeta.

Como se observa são muito exíguas as disponibilidades de água doce no planeta, e ainda devem ser divididas com os demais membros da fauna e com todo reino vegetal. É claro que as fontes não deveriam se esgotar pela manutenção permanente dos ciclos hidrológicos. Mas a velocidade de recomposição dos aquíferos superficiais tem mostrado harmonização em ritmo descompassado com a exploração dos recursos hídricos pelas atividades antrópicas. Em particular, quando se agregam as modificações geradas pelas mudanças climáticas.

Evidentemente se apropriar das realidades exibidas por este conjunto multifatorial, é tarefa que demanda certa complexidade sistêmica e não é realizada de forma intuitiva. Mas as consequências são as mesmas e geram conscientização em toda sociedade. É preciso mudar a relação com a água e os demais bens naturais buscando reestabelecer as condições mínimas de equilíbrio.

Especialistas assinalam que a crise hídrica que atinge o estado de São Paulo, decorre de desequilíbrio já de alguns anos na pluviosidade média, não acompanhando a demanda crescente de uso, e até de desperdício. No entanto, esta anomalia climática não é o único fator. Também contribuem fatores de infraestrutura, que não significam necessariamente ausência de planejamento, e sim dificuldades impostas pela burocratização e estanqueidade dos mecanismos estatais de operação. Onde as crescentes complexidades não são acompanhadas por níveis equivalentes de evolução nos estágios de gestão, governança e conformidade.

Ou seja, legislação ambiental, cada vez mais complexa e abrangente, convive com órgãos aplicadores desaparelhados e ineficientes que não conseguem se coordenar ou se comunicar eficientemente entre si. Evidentemente, as dificuldades de execução se tornam manifestas e os resultados sociais extremamente ineficientes, retratando as dificuldades das operações, que se perdem em objetivos sistêmicos parciais, não conseguindo estabelecer metas de consecução conjuntas.

Se o sistema social padecesse da mesma moléstia, as empresas estariam comprometidas e os níveis de empregabilidade que garantem o funcionamento virtuoso da sociedade, com incrementos na geração de impostos e a garantia da manutenção de um estado com condições de intervir na sociedade de maneira eficiente, atendendo às demandas sociais, estaria comprometido. Quando eventos naturais se associam a dificuldades de articulação para a consecução de objetivos mais amplos, não deixa de ser em parte, algo análogo, o que está ocorrendo. Com consequências sociais e coletivas de resultados inestimáveis.

A cultura de vincular a importância do bem ao valor desembolsado na sua aquisição, dificulta a valoração adequada do bem água. Não se está defendendo o aumento desmesurado dos preços da água. Mas se a cultura popular associa preço ao valor do bem e não à conscientização de sua função social e ecossistêmica, então está estabelecida uma situação de extrema dificuldade e complexidade. Se a preciosidade da água for repassada aos custos de sua disponibilização e forem criadas dificuldades para os hábitos necessários de natureza sanitária de todos os indivíduos, então os resultados podem ser mais desastrosos e medidos nas portas dos carentes serviços de saúde do país.

Mas o maior erro, talvez, seja permitir que a situação atinja níveis próximos à situação de catástrofe para que as medidas reguladoras sejam tomadas. Em questões ambientais e naturais em geral, é consensual a apreciação de que é preferível prevenir do que remediar. Tanto pelos custos gerados quanto pelo pânico produzido. A prevenção, no mínimo, gera melhores condições de administração geral das perspectivas e projeções dos indivíduos, em caldeirões de interesses e necessidades, que são de difícil avaliação, ainda mais em cenários políticos ou meramente econômicos, que na maioria das vezes são absolutamente intangíveis.

Roberto Naime, Colunista do Portal EcoDebate, é Doutor em Geologia Ambiental. Integrante do corpo Docente do Mestrado e Doutorado em Qualidade Ambiental da Universidade Feevale.

 

Fonte – EcoDebate de 16 de maio de 2017

Este Post tem 0 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Back To Top