Por Ana Flávia Pilar - O Globo - 11 de novembro de 2024 - Com modelo…
Avançando nas medições
Com objetivo de reduzir riscos e garantir a sobrevivência do negócio a longo prazo, empresas adotam métricas para aferir o valor econômico de recursos naturais e o grau de dependência dos bens e serviços prestados pela natureza
Para alguns, o ponto central está na regulação do clima e uso de biomassa combustível. Para outros, no controle da erosão, na qualidade da água e até no potencial de recreação e turismo em áreas naturais. Quem estava naquela manhã ensolarada de inverno no salão nobre do prédio da Fundação Getulio Vargas (FGV), em São Paulo, sabia que o momento era de busca por algo novo que está na fronteira do conhecimento e tem potencial de mudar a contabilidade das corporações e o modo de tomar decisões, em horizonte de tempo não muito distante. No encontro, debruçados sobre planilhas, profissionais de sustentabilidade de empresas atentas ao futuro de suas operações diante da degradação dos recursos do planeta tinham um objetivo comum: avançar na construção de um modelo capaz de medir em cifrões e reportar ao mercado o custo de impactos socioambientais e da dependência do negócio em relação aos serviços prestados pela natureza.
O grupo integra a iniciativa Tendências em Serviços Ecossistêmicos (TeSE), mantida desde o ano passado pelo Centro de Estudos em Sustentabilidade (GVces), da FGV-Eaesp, reunindo hoje 20 empresas que estão na linha de frente no processo de romper barreiras culturais e enxergar o custo das externalidades como fator estratégico, na perspectiva de um mundo com graves dilemas sociais e recursos naturais cada vez mais escassos e caros. “Queremos medir o valor das fontes hídricas para a empresa, considerando os riscos associados a outros usuários abastecidos por elas”, revela Maira Almeida, da gerência de projetos corporativos da AES Brasil.
“A demanda por um mecanismo de valoração econômica mais quantitativa, inclusive em termos monetários, partiu das próprias empresas, porque é útil à gestão interna e subsidia a decisão de novos investimentos”, afirma Renato Armelin, coordenador da TeSE. Com apoio da academia, as empresas calibram a nova ferramenta, a partir de projetos piloto, com propósito de chegar a um cálculo simples, acessível e replicável. A iniciativa permite comparar valores ao longo do tempo para adoção de melhorias contínuas e comunicá-los de forma clara e objetiva.
A metodologia abrange nove serviços ecossistêmicos (Provisão de água; provisão de biomassa combustível; regulação da qualidade do recurso hídrico; assimilação de efluentes líquidos; clima global (desmatamento e recuperação florestal); polinização; erosão do solo; vazão de cursos d’água (prevenção de enchentes); além de recreação e turismo (grupo dos serviços ecossistêmicos culturais)), considerando três aspectos: o uso de recursos naturais pela empresa, os impactos decorrentes das variações em quantidade ou qualidade do serviço ecossistêmico e as externalidades, ou seja, os efeitos causados a terceiros e à sociedade em geral. A lógica muitas vezes é a do “custo evitado”, com base, por exemplo, no investimento necessário para prevenir impactos ou repor perdas causadas a terceiros. “O foco é estimar o custo da prevenção ou do impacto potencial, subsidiando decisões para que danos não ocorram”, explica Armelin, com uma ressalva: “Isso não implica que os valores econômicos da reparação, relativos a passivos ambientais ou ao conserto de impactos já ocorridos, sejam subestimados ou descartados pelas empresas”.
No caso de grandes obras, a construção civil demanda expressiva quantidade de insumos naturais (água, brita, areia, madeira etc.) que não se renovam no ritmo do consumo e, em razão disso, deverão ficar mais caros. “Hoje só arcamos com o custo da extração e não do recurso em si”, diz Ricardo Sampaio, coordenador de meio ambiente da Camargo Corrêa, ao lembrar que no futuro “pagaremos o valor referente ao ‘trabalho’ da natureza para produzi-lo”. Em sua análise, o primeiro passo é buscar conhecimento para chegar a algo consistente e conscientizar o alto escalão. “Não adianta ficar só no drama”, enfatiza Sampaio.
A construtora começou a testar a valoração neste ano na obra de uma refinaria em Ipojuca (PE), região onde há problema de escassez de água, e o lançamento de efluentes é proibido. O objetivo é calcular o valor monetário do recurso hídrico nessas condições, chegando a um número próximo ao que vigorará no futuro, superior aos custos atuais, restritos à captação no rio e tratamento. Os dados subsidiarão iniciativas de inovação para uso de materiais que demandam menos recursos naturais. “Até 2017, a contabilidade dos serviços ecossistêmicos deverão compor o capital da empresa”, informa Sampaio.
“Sem valor de mercado, os benefícios naturais são negligenciados ou subvalorizados”, completa Denise Alves, diretora de sustentabilidade da Natura. Para uma gestão sustentável de longo prazo, a empresa reconhece a relação de dependência e os impactos sobre recursos do planeta, tanto na provisão de água para a produção de cosméticos como no uso de recursos genéticos. Como integrante da TeSE, a Natura tem como objetivo demonstrar o valor ambiental da produção nas comunidades que fornecem insumos da biodiversidade.
Nos últimos anos, a Natura se engajou em diferentes plataformas internacionais de valoração de impactos socioambientais. Uma delas foi a The Economics of Ecosystem and Biodiversity (Teeb) (O primeiro e mais completo estudo global sobre os cursos econômicos da perda da biodiversidade e da degradação dos ecossistemas. No Brasil, foi desenvolvida uma versão específica para o setor de negócios, sob coordenação da Conservação Internacional) para o setor de negócios, cuja metodologia foi aplicada na busca de alternativas mais sustentáveis para a produção do óleo de palma (dendê) na Amazônia.
O resultado foi divulgado em março deste ano: o valor ambiental total fornecido pelo sistema agroflorestal é superior ao triplo do obtido pela monocultura – R$ 410 mil por hectare, comparados com R$ 122 mil por hectare, durante a vida útil de 25 anos da plantação. Isso ocorre porque o cultivo consorciado com a floresta oferece mais serviços ecossistêmicos (provisão de alimentos, água e madeira; regulação do clima global e fertilidade do solo) e tem impactos ambientais mais baixos (emissões de gases de efeito estufa pelo uso de combustível e fertilizante).
A Natura participou da primeira fase da Parceria Empresarial pelos Serviços Ecossistêmicos (Pese), destinada a identificar riscos e oportunidades em relação ao uso de recursos naturais, com ênfase qualitativa, com base no modelo desenvolvido no mundo pelo World Resources Institute (WRI).
“Não há dados suficientes para a monetização da natureza e, diante da urgência socioambiental, não podemos aguardá-los para só depois agir”, argumenta Fernanda Gimenes, coordenadora da assessoria técnica do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS). A instituição conduz hoje a segunda etapa de aplicação da ferramenta, voltada para a tomada de decisão, com participação de Petrobras, Basf, Votorantim e Vale. A mineradora avaliou 13 sistemas de mensuração de custos socioambientais existentes no mundo, com objetivo de mapear riscos e desenvolver estratégias de uso sustentável. Em paralelo, a companhia utiliza uma métrica que caracteriza passivos ambientais, e os recursos financeiros para remediação do problema são expressos nos demonstrativos contábeis.
Cidades medem a “pegada”
A cidade de São Paulo tem aproximadamente 1,5 mil quilômetros quadrados de área. Mas necessitaria de pelo menos 600 mil para suprir o atual consumo da população e garantir a reposição dos recursos pela natureza. A constatação é do estudo de “pegada ecológica” realizado pelo WWF Brasil em municípios brasileiros como auxílio à conscientização popular, ao planejamento urbano e a políticas públicas para redução de impactos ambientais.
O método, desenvolvido mundialmente pelo Global Footprint Network (GFN), cruzou números do IBGE sobre consumo familiar com dados sobre área construída, pesca, fibras, pastagens, energia, transporte e outros segmentos mais associados ao uso de recursos naturais e emissões de carbono. “A lógica é transmitir a dimensão da escassez e o conceito de limite planetário”, explica Michael Becker, superintendente de conservação da ONG.
Em Campo Grande (MS), onde é forte o agronegócio, o consumo de carne e outros gêneros alimentícios teve um peso significativo na conta. Como desdobramento da pesquisa, foi criado na cidade um grupo gestor para articular medidas que reduzam a pegada. Entre as prioridades, além da pecuária orgânica, está o estímulo à produção local de hortifrutigranjeiros. Hoje grande parte desses produtos consumidos na capital sul-mato-grossense chega de São Paulo e por isso está associada à maior emissão de carbono no transporte.
Cenário de responsabilidades
Mais que isso, empresas começam a assimilar a tendência de passivos “morais” se transformarem em “legais”, à medida que a sociedade evolui e novos elementos são vistos como inaceitáveis. O estudo The Changing Landscape of Liability, divulgado globalmente pela Swiss Re, mostra que o tema gera reflexos no mundo dos seguros: “O cenário das responsabilidades – e, portanto, dos riscos para as empresas e para os acionistas – está mudando rapidamente”.
“Como o conhecimento é de ponta, a estratégia mais segura é participar de iniciativas na academia, juntamente com vários setores empresariais”, pondera Marcelo Galo, gerente de meio ambiente da unidade de níquel, nióbio e fosfatos da Anglo American, em Barro Alto (GO). O objetivo atual é a mensuração econômica do desmatamento evitado e emissões de carbono por meio de plantio de florestas para fins energéticos na região. “Não adianta vender o peixe para a alta direção da companhia sem tê-lo na mão para demonstrar que é possível transformar passivo em produto e benefício”, explica Galo.
É quase um trabalho de “evangelização”, tocado nas empresas por profissionais mais jovens e antenados com o tema, que tende a chegar à gestão de marcas. “O mundo pede novas formas de atribuir valor às coisas e as métricas que avaliam custos devem se adaptar a isso, sem cair no greenwashing”(É a apropriação de atributos de sustentabilidade sem que eles existam, com ênfase no marketing, objetivando criar uma imagem positiva para empresas e produtos), pondera Igor Botelho, gestor de novos negócios da agência AsBoasNovas.
Com mestrado em pensamento sistêmico pela London Metropolitan University e experiência em projetos globais da Nike, GM, Pepsi e Microsoft, o estrategista admite a existência de um processo de mudança, mas vê uma grande barreira: “A visão de curto prazo que ainda prevalece juntamente com a mentalidade conformista, resistente ao novo”.
As exceções despontam como referências. É o caso do pioneirismo da Puma, empresa mundial de artigos esportivos que mexeu corajosamente nos padrões convencionais de gestão e investigou a cadeia de fornecedores para concluir que seus custos ambientais – não contabilizados no caixa – corresponderam a 70% do faturamento líquido, em 2010. Em síntese: 145 milhões de euros, que não entraram na conta nem nos preços, foram referentes ao uso de recursos como água, solo e biodiversidade, pelos quais empresa, fornecedores e clientes nada pagaram. “O mundo da contabilidade já entende a valoração socioambiental como uma necessidade, mas é preciso padronizar a régua”, analisa Carlos Rossin, líder de sustentabilidade da PwC Brasil.
Há uma corrida por métricas, cada vez mais demandadas, para se definir investimentos. No Brasil, o setor florestal está entre os de maior potencial. “A fronteira não é discutir impactos, que já são conhecidos, mas instrumentalizá-los”, afirma Roberto S. Waack, presidente da Amata, empresa florestal que se prepara para investir algo em torno de R$ 10 milhões no plantio de espécies nativas em áreas degradadas por pastagens na Mata Atlântica da Bahia (leia artigo de Waack na Página 22 de setembro de 2014). O empreendimento, previsto para início no próximo ano, nascerá marcado por um novo modelo de gestão. Externalidades positivas e negativas foram mapeadas para análise da viabilidade do projeto, dentro de uma modelagem econômica que envolve elementos estranhos aos balanços convencionais das empresas, como o capital natural e o social – além do financeiro propriamente dito.
O mercado de madeira com origem legal e sustentável está aquecido, com demanda maior que oferta, e a produção a partir de plantio de árvores é vista como opção capaz de reduzir pressões ambientais, como o desmatamento. Pelo padrão, seria mais seguro e rentável plantar eucalipto do que espécies nativas, porque há pouco conhecimento técnico sobre estas. “Mas o salto positivo dos impactos mapeados aponta para oportunidades e ganhos que compensam os riscos e tornam o negócio atraente”, explica Waack.
Há 650 mil hectares degradados, aptos para restauração, com ganhos econômicos, sociais e ambientais. “As ações precisam terminar em políticas públicas, com participação da sociedade”, destaca Marcelo Furtado, diretor do Instituto Arapyaú, fundação privada parceira do projeto, que integra uma estratégia maior de desenvolvimento sustentável da região.
O setor financeiro está impelido a incorporar os valores das externalidades, a partir da Resolução nº 4.327 (Publicado em 25 de abril deste ano, o documento dispõe sobre as diretrizes que devem ser observadas no estabelecimento da Política de Responsabilidade Socioambiental pelas instituições financeiras e demais entidades autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil), publicada este ano pelo Banco Central, determinando a adoção de critérios socioambientais em operações como a concessão de crédito. “Empresas avançam mais rápido que governos em ações práticas para mudança da contabilidade”, avalia Marcus Frank, diretor de mudanças climáticas da consultoria McKinsey no Brasil.
“Do campo à mesa do consumidor, dependemos do clima, água, biomassa e outras variáveis que devem ser mensuradas para reduzir riscos”, atesta Michel Santos, gerente de sustentabilidade da Bunge.
Não é, propriamente, uma ideia nova. Há mais de duas décadas, a Carta da Terra, um dos mais importantes documentos da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO 92), trazia entre seus objetivos “incluir totalmente os custos ambientais e sociais de bens e serviços no preço de venda” e “adotar estilos de vida que acentuem a qualidade de vida e a subsistência material num mundo finito”. Demorou, mas o mundo parece estar acordando. A corrida para medir custos socioambientais e incorporar o capital natural nas contas é prova disso.
O novo jeito de reportar as contas
A ideia surgiu sob a liderança mundial do Príncipe de Gales, após incentivar economistas e profissionais de contabilidade e finanças ao engajamento na questão da sustentabilidade – desafio para o qual já não eram suficientes biólogos, botânicos ou veterinários. O movimento resultou, em 2010, na criação do The International Integrated Reporting Council (IIRC), uma coalizão global de companhias, investidores, ONGs e grandes empresas de auditoria dedicada a tornar padrão um novo modo de organizar e reportar ao mercado dados financeiros e socioambientais, com ampliação de valor para as organizações.
O Relatório Integrado (IR, na sigla em inglês) hoje se consolida como método que promove o diálogo e harmoniza mensagens de balanços e outros relatos empresariais muitas vezes contraditórios em relação a dados financeiros e de sustentabilidade. “Somos uma trilha, não um modelo construído em laboratório”, afirma o professor Nelson Carvalho, da FEA/USP, integrante do conselho internacional da iniciativa, da qual faz parte o Global Reporting Initiative (GRI).
Lançado em dezembro de 2013 após ampla consulta internacional, o IR tem hoje a adesão de 280 organizações. No Brasil, 15 empresas participam de iniciativas piloto com a metodologia, apoiada em seis categorias de “capital” que traduzem a tradicional dimensão financeira e produtiva, mas também a intelectual, humana, natural e a de relacionamento social.
Fonte – Sérgio Adeodato, Página 22 de setembro de 2014
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