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Brasil corre risco de perder um bioma inteiro, sem nem ao menos saber que ele existe

Vegetação de chaco, na região de Porto Murtinho-MS. Foto: Fábio Alves.

O Gran Chaco, ou simplesmente Chaco, é um grande bioma de floresta seca com quase um milhão de quilômetros quadrados no centro da América do Sul, e que ocupa uma vasta planície entre o norte da Argentina, o Paraguai e a Bolívia. Pouca gente sabe, mas o Chaco também é um bioma brasileiro, pois invade porções dos estados do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul que margeiam as áreas semi-alagadas do Pantanal. Mas o Chaco no Brasil está desaparecendo. Muito rapidamente.

Este rico bioma que levou milhões de anos para se estabelecer e diversificar está sendo derrubado de forma acelerada por pecuaristas para a abertura de novas pastagens. No Mato Grosso do Sul só resta um punhado de áreas fragmentadas de Chaco no interior de grandes fazendas na região de Porto Murtinho, junto à fronteira com o Paraguai. A vegetação de cada um destes fragmentos preserva uma importante parcela da diversidade genética daquele bioma ameaçado.

“Este patrimônio genético precisa ser preservado, antes que desapareça para sempre. Está na hora de proteger o que resta do Chaco brasileiro e não deixar derrubar mais nada!” afirma a geneticista de plantas Anete Pereira de Souza, líder do Laboratório de Análise Genética Molecular no Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética, do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

“Os dados que obtivemos mostram que estamos no fim da linha. Estamos na hora final para fazer algo e salvar o Chaco, evitando assim a perda definitiva de um bioma completo no Brasil,” adverte Souza. “Os dados mostram que estaremos em breve entrando na etapa de degradação genética das espécies, o que significará o fim da diversidade necessária para manter o Chaco. Se perdermos as plantas, perderemos os animais, as aves, os insetos, os microrganismos do solo. O clima da região, que já é seco, poderá piorar, com menos chuvas e temperaturas mais altas. Enfim, é uma cascata de problemas imensa que está na iminência de acontecer, caso os governos brasileiro e do estado do Mato Grosso do Sul não decidam agir agora!”

Chaco queimado em Porto Murtinho-MS. Foto: Ângela Sartori.

E se o abate do Chaco brasileiro acabasse hoje, e fossem criadas áreas de conservação permanente, quanto tempo levaria para recuperar a diversidade genética perdida? Entre 300 e 3 mil anos. É o que sugere um estudo feito pelo biólogo catarinense Fábio Alves, membro da equipe de Souza. O trabalho acaba de ser publicado em Ecology and Evolution.

“A área de Chaco que resta é bem pequena. Mas possui uma importante diversidade genética que precisa ser conservada,” diz Souza. “Tendo isto em mente, decidimos investigar o estado da perda de diversidade naquele bioma. Graças ao trabalho de Fábio Alves e colaboradores, fizemos o diagnóstico da perda de diversidade acentuada de duas espécies de plantas características do Chaco, bem como uma proposta para a conservação de ambas as espécies e, consequentemente, do Chaco.”

Uma tímida exuberância

A devastação do Chaco brasileiro está diretamente ligada à devastação do Pantanal devido ao avanço da fronteira agrícola nos últimos 40 anos. “Mesmo que a pecuária extensiva exista na região desde 1740, o Pantanal sofreu uma supressão pífia por mais de 200 anos. Contudo, a partir da década de 1970, com a criação de incentivos governamentais para a ocupação da região Centro-Oeste, em menos de 40 anos a devastação se alastrou por todo o Pantanal. A região de Porto Murtinho, no limite entre o Pantanal e o Chaco, é uma das mais degradadas,” afirma Alves.

Com o crescimento da indústria da pecuária brasileira – o Brasil é o maior produtor e exportador mundial de carne – principalmente devido ao aumento no consumo de carne na China, as fazendas de gado agora estão avançando sobre a área do Chaco brasileiro.

A área original do Chaco brasileiro era estimada, até 1998, em 12,400 km2, o que equivalia a pouco mais da metade da área do estado de Sergipe, o menor do Brasil. Em 2008, no entanto, técnicos do Ministério do Meio Ambiente constataram que um terço de toda aquela cobertura nativa havia desaparecido. Isto já faz dez anos. Não se tem uma estimativa da área de Chaco que se perdeu no Brasil desde então. Mas a devastação prossegue.

Chaco arbóreo, na região de Porto Murtinho-MS. Foto: Fábio Alves.

Tal destruição em ritmo acelerado disparou o alerta entre os biólogos da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), em Campo Grande, entre eles a bióloga Ângela Sartori. Em meados dos anos 2000, Sartori começou a investigar a biodiversidade do Chaco brasileiro com a ajuda de seus alunos. Um deles era Alves, que fazia mestrado naquela instituição. Ele visitou o Chaco pela primeira vez em 2007. Seria apenas a primeira de 14 expedições promovidas nos anos seguintes, durante as quais Alves pôde testemunhar a contínua e desenfreada destruição do pouco que resta de Chaco no Brasil.

Uma razão para o bioma de Chaco ser pouco conhecido, e portanto praticamente não haver fora dos círculos científicos a consciência da necessidade de sua preservação, é o fato de a vegetação chaquenha não ser exuberante, como as da Amazônia e da Mata Atlântica, nem evocar paisagens temperadas, como os campos de araucárias da região Sul, nem ter importância econômica ou turística significativas (como é o caso do vizinho Pantanal).

À primeira vista o Chaco pode parecer feio. Afinal, trata-se de uma floresta seca, onde cresce uma vegetação espinhosa, agreste, que praticamente não desperta interesse econômico, senão ornamental. “Nas fazendas de Porto Murtinho vê-se algumas poucas espécies cultivadas em jardins ou vasos, pela beleza de suas flores,” observa Alves. “No Mato Grosso do Sul, chamam o Chaco de espinheiro. Acham feio. Por isto cortam tudo. Mas as plantas têm flores lindas,” comenta Souza.

Espinheiro, por sinal, é a denominação popular de uma das duas espécies de plantas representativas do Chaco brasileiro que foram estudadas por Alves, e que fazem parte da grande família das leguminosas. Ambas pertencem ao gênero Prosopis. “Muito embora haja no mundo mais de 40 espécies do gênero Prosopis, sendo 31 na América do Sul, no Brasil existem apenas cinco espécies registradas. Escolhi trabalhar com as duas espécies mais abundantes nas áreas chaquenhas do Brasil. As outras espécies são bastante difíceis de serem achadas e, quando o são, o número de indivíduos por área é baixíssimo, tornando o trabalho populacional inviável,” diz Alves.

Conhecida na região do Chaco pelos nomes de barreiro-prelo ou espinheiro, Prosopis rubriflora é um grande arbusto que atinge entre 4 a 6 metros de altura, e produz belas flores vermelhas o ano todo. Apresenta uma copa mais rala, o que deixa mais evidentes as suas flores. Após a polinização, feita por abelhas, a planta produz seus frutos que, como se trata de uma leguminosa, crescem na forma de vagens que ficam penduradas nos galhos e, ao amadurecer, caem ao solo.

De acordo com a Lista Vermelha da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN), desde 1997 P. rubriflora é classificada como em risco de extinção no Paraguai, país onde já foi derrubada metade da cobertura original de Chaco. “Sabendo que esta espécie tem registros apenas no Brasil e no Paraguai, acho que P. rubriflora deveria ser classificada como em risco de extinção também no Brasil, uma vez que aqui a espécie está limitada a uma única região, que tem sofrido bastante com o desmatamento,” diz Alves.

Uma árvore de Prosopis rubriflora no Chaco brasileiro . Foto: Fábio Alves.

Prosopis ruscifolia, a segunda planta investigada, é popularmente chamada algarobo ou pau-de-espinho. Não se trata de um arbusto, mas de uma árvore de 6 a 15 metros que floresce uma vez por ano, entre os meses de novembro e dezembro, quando brotam florzinhas brancas. A espécie apresenta uma copa mais densa. Seus frutos, as vagens, amadurecem igualmente encapsulados no interior de vagens, amadurecem entre janeiro e fevereiro.

“Entre 2007 e 2012, visitei 14 vezes a região de Porto Murtinho, no Mato Grosso do Sul. Para fazer o trabalho com as duas espécies de Prosopis, coletei sementes e folhas em 19 áreas diferentes, que ficam no interior de 17 fazendas ou assentamentos. São áreas fragmentadas. Embora ainda existam umas poucas áreas bem conservadas, elas são a exceção e não a regra,” explica Alves.

O trabalho de Alves envolveu a coleta de folhas de 241 indivíduos de P. rubriflora e 308 indivíduos de P. ruscifolia. Uma única área foi escolhida para a coleta de sementes de P. rubriflora, a serem germinadas em laboratório. Ao longo de dois anos, Alves coletou no local 393 sementes.

A ideia de Alves era coletar sementes e folhas das duas espécies de Prosopis que crescem em fragmentos de Chaco diversos, de modo a comparar – por meio da extração de DNA – a variabilidade genética das plantas que sobrevivem nos diversos fragmentos de Chaco. Deste modo, argumenta-se no estudo, poder-se-ia avaliar a perda genética decorrente da destruição do Chaco provocada pelo homem.

Por que isto importa?

Por que é importante avaliar o estágio de perda da variação genética do Chaco? A história da vida na Terra é a história da evolução das espécies a partir da diversificação de outras espécies que viveram antes delas. A diversificação acontece naturalmente, através do cruzamento de indivíduos para a produção de embriões que irão germinar formando uma nova geração. A cada cruzamento surgem novas mutações na cadeia de DNA onde se insere o código hereditário de cada indivíduo.

Quando as mutações são benéficas, por exemplo conferindo à planta maior resistência à aridez, maior tolerância ao calor ou melhor adaptação a solos mais ácidos ou quimicamente pobres (como ocorre no Chaco), os indivíduos com tais características têm mais chances de sobreviver. Daí que tais mutações acabam por ser incorporadas ao código genético, fixando-se sob a forma de genes, que são por sua vez transmitidos às gerações seguintes.

“Quando o bioma é devastado e a maior parte dos indivíduos de uma população desaparece, são grandes as chances de se estar perdendo conjuntos de genes essenciais à sobrevivência da espécie. Daí a importância de se diagnosticar o grau de perda de diversidade genética nas plantas do Chaco, para verificar se já não ocorreu um dano irreversível, e avaliar o que pode ser feito para recuperar a diversidade genética perdida – ou, pelo menos, impedir que a variabilidade genética continue sendo perdida.”.

Com o passar de centenas ou milhares de gerações, o acúmulo de genes específicos num determinado grupo de indivíduos de uma mesma espécie pode originar o surgimento de uma nova espécie, adaptada a germinar, crescer e florescer num bioma específico, no caso o Chaco.

Imagine o DNA como uma caixa de ferramentas na qual os genes são instrumentos específicos indicados para lidar com necessidades ou limitações específicas enfrentadas por uma espécie e a ela impostas pelo meio ambiente. Assim, a variedade de instrumentos na “caixa de ferramentas genética” das plantas do Chaco é a sua garantia para enfrentar situações adversas.

O problema é que nem todas as diferentes variações de um gene de uma espécie estão presentes em todos os indivíduos. A variabilidade genética dentro de uma espécie implica que alguns variantes de genes específicos, como por exemplo aquele que confere proteção contra um determinado fungo ou doença, vão estar presentes no DNA de alguns indivíduos, e não no de outros.

Quando o bioma é devastado e a maior parte dos indivíduos de uma população desaparece, são grandes as chances de se estar perdendo conjuntos de genes essenciais à sobrevivência da espécie. Daí a importância de se diagnosticar o grau de perda de diversidade genética nas plantas do Chaco, para verificar se já não ocorreu um dano irreversível, e avaliar o que pode ser feito para recuperar a diversidade genética perdida – ou, pelo menos, impedir que a variabilidade genética continue sendo perdida.

Um exemplo de perda de diversidade foi presenciado por Alves numa área de Chaco que visitou em 2007. “A área foi escolhida por ser de fácil acesso e ter sido razoavelmente conservada. Nela havia uma boa diversidade de espécies, sendo algumas delas difíceis de encontrar em outros locais. Tais espécies, quando localizadas em outras áreas, apresentavam um número muito baixo de indivíduos, como o palo santo (Bulnesia sarmientoi), a cerejeira (Amburana cearensis), o guayacan (Libidibia paraguariensis) e o pau-cascudo (Chloroleucon chacoense), as três últimas classificadas como vulneráveis na Lista Vermelha da IUCN.”

“Por se tratar de uma área que também apresentava abundância de P. rubriflora, decidi retornar ali para coletar em 2010. Porém quando parei na frente da fazenda, a mata de Chaco havia desaparecido. Cheguei mesmo a checar as coordenadas de GPS para me certificar de que estava no local correto. Era lá mesmo. Sobraram apenas os carandás. Deu um aperto no peito. Não havia nada mais a ser feito.”

Os genes que porventura estavam restritos a indivíduos que viviam naquela área foram perdidos para todo o sempre. “Se houve algum gene ou grupo de genes importantes que foi perdido, e que seria crucial para a adaptação da espécie a algum evento futuro, tal perda muito dificilmente será recuperada, dado que as mutações que proporcionam a variabilidade genética são aleatórias. Uma vez que o que está perdido é para sempre, nosso foco foi amostrar o que ainda existe de diversidade genética, de modo a poder apontar áreas prioritárias para a conservação, ou pelo menos que seja feito um manejo para manter a diversidade atual,” diz Alves.

Folhas e flores de Prosopis ruscifolia. Foto: Fábio Alves.

Até 3 mil anos para recuperar

“A área do Chaco que estudamos foi muito reduzida pela instalação das pastagens, sobrando poucos aglomerados de árvores, distantes uns dos outros em meio aos pastos,” explica Souza. “Apesar disso, ainda há esperança de se poder salvar o bioma, pois as árvores das diferentes populações de P. ruscifolia e P. rubriflora ainda estão trocando pólens, graças ao trabalho de polinização desempenhado pelas diversas espécies de abelhas que habitam a região.”

Ou seja, até o momento, P. ruscifolia e P. rubriflora não apresentam perda da diversidade porque não estão cruzando apenas com as plantas mais próximas e/ou com suas irmãs, todas as filhas de uma mesma planta-mãe. As duas espécies pesquisadas ainda estão mantendo um certo nível de diversidade pela aquisição de pólen de árvores de populações diferentes, localizadas em aglomerados mais distantes.

“Entretanto, nosso estudo identificou que a espécie P. ruscifolia tem um risco maior de perda da diversidade que P. rubriflora, pois já aparecem sinais de menor diversidade genética quando analisadas com marcadores moleculares,” alerta Souza. “P. ruscifolia já está na lista de plantas ameaçadas no Paraguai desde 1997. Ou seja , a situação é realmente muito séria!”

De acordo com Anete Pereira de Souza, o trabalho permitiu medir a perda iminente da variabilidade genética do Chaco, por meio do estudo de duas espécies típicas deste bioma. “Como resultados práticos indicamos um programa de conservação a ser implantado, se possível imediatamente para salvar o que resta do Chaco. O programa foi baseado nas duas espécies estudadas, porém, ele pode ser replicado às outras espécies. Isso é possível porque o foco da conservação refere-se às áreas em que estão as 2 espécies estudadas. A professora Ângela L.B. Sartori, da UFMS, juntamente com seus colaboradores, trabalha há anos neste projeto de conservação do Chaco (incluindo as plantas e animais) e, nossos resultados tomados em conjunto, permitirão a conservação das áreas fragmentadas que ainda restam do Chaco.”

Se e quando o Ministério do Meio Ambiente vier a criar áreas de proteção permanente para salvar o pouco que resta do Chaco brasileiro, como deveriam ser tais áreas e com qual a escala de tempo se deverá trabalhar?

Segundo Fábio Alves, “nossos resultados sugerem que 42 áreas do Chaco devem ser conservadas para manter o mínimo de 500 indivíduos necessários para manter a diversidade genética entre cem e mil gerações. Considerando-se que indivíduos do gênero Prosopis atingem a idade reprodutiva aos três anos de idade, isto significa que, para recuperar a diversidade genética perdida, seria necessário manter reservas intactas entre 300 a 3 mil anos.”

Publicado originalmente no blog da Agência Brasileira de Divulgação Científica.

Fonte – Peter Moon, da Agência Brasileira de Divulgação Científica, O Eco de 22 de agosto de 2018

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