Por Jean Silva* - Jornal da USP - 1 de novembro de 2024 - Tucuruvi,…
Cerrado. O laboratório antropológico ameaçado pela desterritorialização
Altair Barbosa analisa os movimentos de variadas formas de vida ao longo de eras no Cerrado e como a ação do ser humano contemporâneo é uma ameaça a todas
O Cerrado brasileiro abriga não só riqueza em termos de fauna e flora. Destruir esse bioma significa mexer com questões geológicas e hídricas que trará repercussões a todo o Brasil. Além disso, pode significar uma perda arqueológica e de formas de vidas que existem há milênios. É por isso que o antropólogo Altair Sales Barbosa propõe um olhar mais complexo sobre o bioma. “O sistema do Cerrado, dos chapadões centrais do Brasil, pela posição geográfica, pelo caráter florístico, faunístico, geomorfológico e pela história evolutiva, constitui o ponto de equilíbrio desses variados ambientes”, exemplifica.
Nesta entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail, além de detalhar o bioma do Brasil central, observa como o ser humano vai agindo nesse ambiente, promovendo modificações com objetivos apenas econômicos e desconsiderando a dinâmica de todo Cerrado. “Nos tempos atuais da nossa contemporaneidade, também sem levar em consideração a vocação da terra e a vocação cultural do que ainda resta de autêntico na cultura do Homem do Cerrado, uma nova onda globalizada de invasões chegou e está se instalando”, alerta. E, segundo Barbosa, isso tem gerado consequências num ritmo nunca antes visto, afetando formas de vida no campo e na cidade. “Com o incremento da tecnologia e o avanço do capital, comunidades inteiras são desestruturadas e desabrigadas, criando o fenômeno da desterritorialização”, completa.
Altair Sales Barbosa possui graduação em Antropologia pela Pontificia Universidad Católica de Chile, doutorado em Arqueologia Pré-Histórica pela Smithsonian Institution – National Museum of Natural History, de Washington, Estados Unidos. É coordenador do projeto Enciclopedia Virtual do Cerrado pelo Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, do qual é sócio titular.
No dia 16 de maio, das 19h30min às 22, ele profere a conferência O Sistema Biogeográfico do Cerrado, as comunidades tradicionais e cultura, dentro da programação do evento Os biomas brasileiros e a teia da vida, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Veja a programação completa.
Confira um trecho da entrevista. A versão completa será publicada no Cadernos IHU ideias.
IHU On-Line – Como compreender as formas de vida no Cerrado, desde a perspectiva biológica à relação com os povos?
Altair Sales Barbosa – Fisiograficamente, o Brasil possui sete grandes matrizes ambientais. Essas matrizes foram denominadas por Ab’Saber , em 1977, como Domínios Morfoclimáticos e Fitogeográficos. Outros estudos as denominam Biomas, embora o conceito de bioma não seja muito apropriado, pois tende a enfatizar ou realçar um clímax vegetacional, muitas vezes não corroborado pela história evolutiva do espaço em questão. A partir de 1992, tenho sugerido a utilização do conceito biogeográfico, classificando cada grande matriz ambiental como um sistema. Essas grandes matrizes ambientais podem ser agrupadas da forma seguinte: Sistema Biogeográfico Amazônico; Sistema Biogeográfico Roraimo-Guianense; Sistema Biogeográfico das Caatingas; Sistema Biogeográfico Tropical Atlântico; Sistema Biogeográfico dos Planaltos Sul-Brasileiros; Sistema Biogeográfico das Pradarias Mistas Subtropicais, e por último temos o Sistema Biogeográfico do Cerrado.
Atualmente, o modelo fisiográfico sofreu modificações, por questões não ambientais, mas de geopolítica ou especificamente políticas e econômicas. Para ilustrar, citamos o caso do Pantanal Mato-Grossense, que não passa de um subsistema integrante do Sistema do Cerrado. Entretanto, como existe um movimento social crescente para incluir o Cerrado como Patrimônio Nacional, movimento este que entra em contradição com o Planejamento Econômico do Brasil, que considera o Cerrado área de expansão da fronteira agrícola, desmembrou-se o Pantanal deste ambiente, transformando-o em Patrimônio Nacional. No entanto, não significa que esteja livre da expansão agropastoril, trata-se apenas de uma ilusão ou artifício.
Cerrado e suas relações
O Sistema Biogeográfico do Cerrado está situado nos planaltos centrais do Brasil, onde imperaram climas tropicais de caráter subúmido, com duas estações ¬-¬ uma seca, outra chuvosa. Constitui o grande domínio do Trópico Subúmido, coberto por uma paisagem que constitui um mosaico de tipos fisionômicos que varia desde campos até áreas florestadas.
Estas sete matrizes ambientais formam, na maior parte dos casos, intrincados sistemas ecológicos interdependentes. O sistema do Cerrado, dos chapadões centrais do Brasil, pela posição geográfica, pelo caráter florístico, faunístico, geomorfológico e pela história evolutiva, constitui o ponto de equilíbrio desses variados ambientes, uma vez que se conecta, por intermédio de corredores hidrográficos, com esses e com outros ambientes continentais. Os chapadões centrais do Brasil, cobertos pelo Sistema Biogeográfico do Cerrado, constituem a cumeeira do Brasil e também da América do Sul, pois distribuem significativa quantidade de água que alimenta as principais bacias hidrográficas do continente.
O Cerrado abrange os Estados de Goiás, Tocantins, Mato Grosso do Sul e Distrito Federal. Inclui a parte sul e leste de Mato Grosso, oeste da Bahia, oeste e norte de Minas Gerais, sul e leste do Maranhão, grande parte do Piauí e prolonga-se em forma de corredor até Rondônia e, de forma disjunta, ocorre em certas áreas do nordeste brasileiro e em parte de São Paulo. Ecologicamente, relaciona-se às Savanas, e há quem afirme que o cerrado seja configuração regionalizada destas. Entretanto, este ambiente possui uma história evolutiva muito diferente das savanas africanas e australianas.
No Brasil, o cerrado e os campos recebem denominações diferentes, de acordo com a região: Gerais, em Minas e Bahia; Tabuleiro, na Bahia e outras áreas do Nordeste; e ainda Campina, Costaneira e Carrasco, dependendo da região. Nenhuma dessas designações populares reflete sua totalidade ecológica, referindo-se apenas a uma modalidade fisionômica, às vezes, associada a uma ou outra configuração geomorfológica. Por estas razões, o paradigma puramente botânico não tem sido suficiente para demonstrar a totalidade e a importância ecológica do Cerrado, já que destaca ou enfatiza apenas parcelas fragmentadas de sua composição. Quando isso acontece, o caráter da biodiversidade, elemento marcante da ecologia do Cerrado, não recebe a importância merecida, nem sequer pode ser compreendida em seus aspectos fundamentais.
A utilização do paradigma Biogeográfico tem demonstrado ser um referencial de grande importância para que se possa entender o Cerrado, em sua globalidade. Compreendendo os diversos matizes, tanto abertos e ombrófilos , como subsistemas interatuantes e integrantes decisivos de um sistema maior, o conceito Biogeográfico tem ressaltado a importância que o Cerrado exerce para o equilíbrio dos demais ambientes do continente, além de demonstrar que a principal característica da sua biocenose é a interdependência dos componentes aos diversos ecossistemas.
Populações do passado
O Cerrado exerce papel fundamental na vida das populações pré-históricas que iniciaram o povoamento das áreas interioranas do continente sul-americano. Na região do Cerrado, essas populações desenvolveram importantes processos culturais que moldaram estilos de sociedades bem definidas, em que a economia de caça e coleta imprimiu modelos de organização espacial e social com características peculiares. Os processos culturais indígenas, que se seguiram a este modelo, trouxeram pouca modificação à fisionomia sociocultural e, embora ocorresse o advento da agricultura incipiente, exercida nas manchas de solo de boa fertilidade natural, existentes no Cerrado, a caça e a coleta, em particular a vegetal, ainda constituíam fatores decisivos na economia dessas sociedades.
A partir do século XVIII, o panorama regional começou a sofrer sensíveis modificações, com o incremento da colonização que se embrenha pelo interior do país, em busca de ouro, pedras preciosas e índios escravos. Nesse contexto, e a partir dessa data, surgiram os primeiros aglomerados urbanos, e a exploração mais intensa dos recursos minerais que começava a se incrementar já provocava os primeiros sinais de degradação. Findo o ciclo da mineração, a região do Cerrado permaneceu economicamente dedicada à criação extensiva de gado e à agricultura de subsistência.
Alguns desses modelos econômicos ainda subsistem em espaços localizados até os dias atuais, e outros modelos mais simples, baseados no extrativismo, são adotados por populações caboclas, habitantes atuais de espaços restritos. O isolamento que a região manteve em relação às áreas mais populosas e economicamente dinâmicas do Brasil, até meados da década de 1960, fez com que este quadro permanecesse basicamente inalterado, fato que a implantação de Brasília alterou consideravelmente, desestruturando os sistemas sociais implantados e causando entropias de ordem biológica e geológica.
Agricultura
O potencial agrícola que o Cerrado demonstra, associado ao fato de ser uma das últimas reservas da terra capaz de suportar, de modo imediato, a produção de grãos e a formação de pastagens ligado ao desenvolvimento das técnicas modernas de cultivo, tem atraído recentemente grandes investimentos e criado modificações significativas, do ponto de vista da infraestrutura de suporte. O fato da não existência de uma política global para a agricultura tem provocado o êxodo rural e o crescimento desordenado dos núcleos urbanos. Todos esses fatores, em seu conjunto, têm como consequências situações nocivas ao meio ambiente natural e social, com perspectivas preocupantes.
Fauna e flora
A região do Cerrado não pode ser entendida como uma unidade zoogeográfica particularizada, porque não apresenta esta característica, tampouco pode ser considerada uma unidade fitogeográfica , por não se tratar de uma área uniforme em termos de paisagem vegetal. O mais correto é correlacionar os diversos fatores que compõem sua biocenose e defini-la como um Sistema Biogeográfico. Um sistema que abrange áreas planálticas, o Planalto Central Brasileiro, com altitude média de 650 metros, clima tropical subúmido de duas estações, solos variados e um quadro florístico e faunístico extremamente diversificado e interdependente. A fauna variada do Cerrado, que transita noutros ambientes, por exemplo, a caatinga, tem sua maior concentração registrada no Sistema Biogeográfico do Cerrado, em virtude das possibilidades alimentares durante todo ciclo anual.
Há um estrato gramíneo que sustenta uma fauna de herbívoros durante boa parte do ano, enquanto não está seco. Antes de aparecerem as flores, as queimadas naturais, por um lapso de tempo, provêm os animais com cálcio e sais minerais. Logo aparecem as flores que, durante uma determinada época, substituem como alimento as gramíneas. O final das floradas coincide com o início da estação chuvosa, que faz rebrotar os pastos secos e a maturação de várias espécies frutíferas. Acompanhando os herbívoros e atrás, também, de recursos vegetais, animais com outros hábitos formam uma complexa cadeia. Em termos vegetais, este sistema é complexo e nunca pode ser entendido como uma unidade, pois há o predomínio do cerrado stricto sensu como paisagem vegetal, mas há também seus variados matizes, como campo e cerradão, além de formações florestadas, como matas e matas ciliares e ainda são comuns as veredas e ambientes alagadiços.
As áreas florestadas são constituídas pelas matas ciliares que ocorrem nas cabeceiras dos pequenos córregos e rios, em suas margens, como também se espalham em áreas mais extensas acompanhando as manchas de solo de boa fertilidade natural. Por exemplo, as matas do rio Claro e outras vertentes do Paranaíba e o outrora chamado “Mato Grosso de Goiás”. As veredas e ambientes alagadiços são mais abundantes, a partir do centro da área nuclear (sudoeste de Goiás), toma a direção norte e leste e sul e, à medida que se aproxima do Pantanal Mato-Grossense, ficam mais evidentes os ambientes alagadiços com contornos diferenciados.
Um cerrado de muitos sistemas
Nessa perspectiva, o Sistema Biogeográfico do Cerrado pode ser subdividido em subsistemas específicos, caracterizados pela fisionomia e composição vegetal e animal, além de outros fatores, que apresentam a seguinte organização: Subsistema dos Campos, Subsistema do Cerrado Stricto Sensu; Subsistema do Cerradão; Subsistema das Matas; Subsistema das Matas Ciliares; Subsistemas das Veredas e Ambientes Alagadiços.
Essa diversidade de ambiente é um fator muito importante para a diversificação faunística, permitindo a ocorrência de animais adaptados a ambientes secos e, também, a ambientes úmidos. Da mesma forma, propicia tanto a ocorrência de formas adaptadas a áreas ensolaradas e abertas, como favorece a ocorrência de formas ombrófilas. Esses fatores atribuem ao Sistema Biogeográfico do Cerrado um caráter singular, distinguindo-o pela diversidade de formas vegetais e animais.
Desterritorialização
Nos tempos atuais da nossa contemporaneidade, também sem levar em consideração a vocação da terra e a vocação cultural do que ainda resta de autêntico na cultura do Homem do Cerrado, uma nova onda globalizada de invasões chegou e está se instalando. Isso tem gerado forte impacto sobre o meio ambiente e causado a desestruturação da população rural e urbana, num ritmo nunca visto na história da humanidade. Com o incremento da tecnologia e o avanço do capital, comunidades inteiras são desestruturadas e desabrigadas, criando o fenômeno da desterritorialização.
Fonte – João Vitor Santos, IHU de 13 de março de 2017
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