Por Ellen Nemitz · ECO - 18 de dezembro de 2024 - Câmara ressuscitou “jabutis” da…
Colheita Noturna
Por Rodrigo Bortolotto – Imagem: Avener Prado – Arte: Yasmin Ayumi – UOL
Com lanternas na cabeça, catadores buscam o sustento na escuridão do lixo de Peruíbe, no litoral de São Paulo.
É uma multidão de urubus, que pousam e ficam empoleirados nas árvores.
O matagal esconde mais seres: luzes andarilhas descem o morro vizinho. São catadores voltando do lixão.
“Não quero foto, não. Tenho vergonha de fazer isso”, vai logo avisando Anderson, 22, com o rosto oculto pelo raio que emite da testa.
Como outros trabalhadores, ele conta sua história, mas não quer dar a cara nem o nome completo.
Anderson vivia na Bahia colhendo maracujá. “Aí, meu tio me chamou para ajudar aqui.
Tiro R$ 50 por noite, o dobro que recebia na roça”, resume sua presença por lá, antes de pegar a bicicleta e sumir pelas ruas de terra e pelo acostamento da rodovia SP-55, até o bairro Jardim Caraguava, onde a maioria deles mora.
O aterro de Peruíbe, no litoral sul paulista, foi inaugurado em 1992, mas o descaso público comprometeu sua manutenção.
O local chegou a ser condenado pela Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo) em 2009.
Homem trabalha em lixão cercado por urubus em busca de comida; impacto da decomposição, hoje invisível para a maioria da sociedade, acaba por poluir lençóis freáticos em áreas urbanas
Reaberto e com administração privada, hoje recuperou sua infraestrutura, com impermeabilização do solo e coleta de líquidos e gases, como um aterro sanitário deve ter.
Apesar disso, há ainda uma grande porção de lixo ao ar livre, como conferiu a reportagem do TAB.
Os lixões não deveriam mais existir no país desde 2014, data limite determinada pelo Plano Nacional de Resíduos Sólidos, aprovado em 2010 pelo Congresso Nacional. Mas essa sujeira continua, para a vergonha de Anderson e do país todo.
SEM CHORO, SÓ CHORUME
No aterro de Peruíbe é assim: voltou carregando nas costas uma bolsa com 50 quilos, é sorte; voltou seco, milagre. Um riacho contaminado separa o aterro da mata.
Troncos e caixotes servem de ponte improvisada e escorregadia.
O próximo obstáculo é a cerca. Um trecho de alambrado caiu e abriu uma passagem ilegal — o portão de entrada dos caminhões é vetado para os catadores.
“Quando tem enchente, a água vem até o peito.
A gente atravessa mesmo assim. O bom é que o malão com garrafas de plástico vai boiando”, conta Negão (“Pode me chamar de Negão. Prefiro assim.”).
Ele puxa a roupa e mostra a pele coberta com mais de 200 tatuagens desbotadas.
Fez todas elas na cadeia, “só na agulhada, não teve maquininha”. “Quando saí, prometi viver do papelão e não vou voltar para o crime.” Ele tem 60 anos, 32 anos de prisão (“Minha infância não foi Danoninho, foi Febem”) e os seis últimos varrendo com sua lanterna os escombros dali.
Negão acende um cigarro paraguaio Eight após o outro.
Como um incenso, o vapor de nicotina dissipa um pouco a inhaca que sobe do chão.
Ele dá uma baforada e segura a chama na mão nua. “A luva atrapalha para pegar os recicláveis. É perigoso, mas fazer o quê? Quem trabalhava com ‘revolvão’ assaltando banco tá acostumado ao perigo, né?”
VIDAS DE PLÁSTICO
“Aquilo não é um monte de lixo. É um monte de dinheiro”, sentencia Sandra, 32 anos, dez como catadora e seis filhos para criar.
Sujo e fedorento, mas é dinheiro. “Construí minha casa com isso aqui”, fala, apontando um saco em que entra até uma tonelada.
Ela deposita sua produção diária ali até encher e revender, o que rende, no final, por volta de R$ 300.
Placas com a cotação do cobre, papelão e plástico decoram as fachadas dos ferros velhos e dos entrepostos de reciclagem, que são muitos por Peruíbe, assim como em toda a Baixada Santista.
Fora da temporada, a população tem que dar seus pulos, e esse mercado é uma das saídas.
O garimpo principal é atrás das garrafas PET. Seu peso vale metade do que se ganha com alumínio, que de tão disputado raramente chega ao aterro.
O plástico, porém, rende três vezes mais que papelão e cinco vezes mais que vidro.
O expediente clandestino no aterro de Peruíbe começa às 17h, quando o último caminhão descarrega, e termina às 20h30, quando o trator que amontoa os resíduos estaciona e os holofotes no alto de um poste se apagam. “Aqui não é bagunça. Tem horário para subir e para descer.”
Para uma sociedade que trata sua vida como tão descartável quanto os objetos que busca, Sandra tem uma resposta.
“As pessoas têm nojo da gente. Mas, depois de tomar um banhão e passar um perfume, sou igualzinha, cheirosinha como todo mundo. O material reciclável retorna pro mundo para um novo ciclo. A gente também sabe dar a volta por cima.”
SONHOS BALDIOS
Os caminhões de lixo urbano viram perto da placa “Preserve a Mata Atlântica e a Fauna Silvestre”, saindo da rodovia Padre Manoel da Nóbrega e entrando no Jardim Márcia 2.
Além deles, o trânsito na rua que leva ao lixão é garantido por dois meninos empurrando e um pilotando o carrinho de brinquedo achado no meio do entulho.
São os filhos de Francilene, 32.
Ela sempre trabalhou com reciclagem.
Há dois anos, porém, trocou o aterro por um centro de triagem. “Parei porque era muito puxado.
Não aguentava mais descer de lá com sacolas de 60 quilos nas costas”, lembra.
Sua casa é a mais próxima da entrada do aterro.
Herdou a função de sua tia Rosenilda, mas não quer que seus filhos tenham a mesma vida.
Raíssa, 15, está no nono ano do ensino fundamental e sonha em ser professora.
“Com a crise de agora, a gente vê mais gente entrando lá”, relata Francilene.
Nas duas noites em que TAB esteve no local, entraram no aterro mais de 20 catadores.
LANTERNA TRÁGICA
Hélio, 55, anda por um tapete enlameado de papelão e Tetra Pak que é o caminho entre sua casa e o aterro.
Nas laterais, sacos gigantes cheios de garrafas plásticas formam um corredor.
Ele é catador desde 2006.
Diz que até 2009 invadiam de dia.
Com as primeiras proibições, as trevas e as lanternas viraram aliadas.
“Quando cheguei aqui, tinha só casas de pau-a-pique no mato.
Agora é um bairro todo que vive do aterro”, lembra. “A gente entrava e vinha segurança, polícia, Defesa Civil, vereador e prefeito para tirar.
Dava uns 15 dias, voltava tudo de novo.”
Segundo a prefeitura de Peruíbe, há um projeto para construir um novo aterro — o atual tem licença de operação até 2026, a ser renovada no final de 2023.
A Cetesb apontou que a última vistoria por lá foi em janeiro: o local obteve nota 9,6 (de 10) no IQR (ìndice de Qualidade de Resíduos), o que aponta condições adequadas.
Peruíbe não tem uma coleta seletiva oficial, e, de acordo com a secretaria municipal do Meio Ambiente, está finalizando um galpão para concentrar a população que vive de reciclagem e formar uma cooperativa.
A Penascal Engenharia e Construção, que opera o aterro desde 2014, diz que há uma camada superficial de lixo, compactada e coberta por terra todos os dias, o que controla a emissão de eflúvios e gases, além da movimentação do maciço para evitar uma avalixo (avalanche de lixo).
A empresa mantém dois funcionários de portaria à noite.
TEMPOS TÓXICOS
As buscas com lanterna na cabeça são mais comuns em cavernas atrás de vestígios de povos antigos ou em minas à procura de tesouros perdidos. Em Peruíbe, contudo, eles rastreiam a sobrevivência.
A pandemia e a crise econômica empurraram 12,8% da população brasileira para a miséria.
Segundo dados da FGV (Fundação Getúlio Vargas) divulgados em janeiro, é a maior porcentagem desde 2011.
Os miseráveis caiçaras temem que o elo arrebente para o lado deles novamente.
Negão já prevê: as autoridades vão apertar o cerco aos catadores. “A opção que a gente tem é essa. Tenho mulher e filho pra sustentar. Se acabar com isso aqui, todo mundo vai para biqueira, igreja ou boteco.”
Ao lado dele, Sandra concorda. “Se fechar, a gente vai passar fome. Vamos comer lixo. Não é pior? Já correram com a gente, mas a gente volta. Aqui é tudo guerreiro.”
Um em cada quatro municípios de São Paulo não tem aterro sanitário adequado para o tratamento e processamento dos dejetos, segundo levantamento do Tribunal de Contas do Estado — a mesma proporção se repete em âmbito nacional, com 25% dos detritos indo para um dos 3.000 lixões a céu aberto que ainda estão funcionando no país.
Lixão é o lugar onde não nenhum controle ou cobertura dos detritos.
Aterro controlado é um estágio intermediário, no qual é lixo é coberto por terra.
O ideal mesmo é o aterro sanitário, com manta de impermeabilização e sistema para tratamento do chorume e dos gases — nessa categoria, também tem vários níveis de eficiência.
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