Por Ana Flávia Pilar - O Globo - 11 de novembro de 2024 - Com modelo…
Como a economia circular pode transformar lixo em ouro
Alex Pereira, presidente da Coopermiti (Foto: Rogério Cassimiro/ÉPOCA)
Empresas e governos se preparam para a economia circular, que usa tecnologia e responsabilidade para acabar com o lixo gerado pela sociedade. Nada se perde
No começo de 2012, Alex Luiz Pereira estava decidido a fechar as portas da primeira cooperativa de lixo eletrônico de São Paulo. Dois anos antes, ele tinha fundado a empresa, chamada Coopermiti, para gerar empregos e aproveitar os componentes dos aparelhos que seriam desperdiçados. Mas a situação não estava fácil. Os dirigentes do projeto abandonaram a iniciativa porque a venda dos resíduos eletrônicos não dava dinheiro suficiente. Além disso, a população não ajudava: o lixo eletrônico não estava chegando aos postos de reciclagem.
Alex não teve coragem de fechar a empresa, única fonte de sustento de 20 famílias de cooperados. Resolveu tentar pela última vez. Dessa vez, assumiu a gestão diretamente. Fez convênios com empresas e prefeituras. Para sua surpresa, o projeto andou. No galpão da cooperativa, na Zona Norte de São Paulo, ele mostra as carcaças de monitores, as placas-mães de laptops e uma infinidade de produtos descartados. “Aqui, por exemplo, tem uma pequena quantidade de ouro”, diz, mostrando uma placa verde e cheia de circuitos. “Nós a exportamos para o Japão. Com 70 toneladas dessa placa, eles conseguem fazer uma barra de ouro de 13 quilos.”
A Coopermiti é uma das poucas unidades no Brasil a fazer um trabalho crucial: devolver ao processo produtivo aquilo que é considerado lixo. No caso dos eletrônicos, é uma tarefa mais complicada. A ONU estima que o Brasil gera 1,4 milhão de tonelada de lixo eletrônico por ano. Esse acúmulo de produtos descartados evidencia um dos grandes problemas de nosso atual modelo econômico: ele é linear. Nós retiramos a matéria-prima da Terra, como os minérios. Transformamos esses materiais, por meio do processo industrial, em computadores, geladeiras ou celulares. Quando, três anos depois, nosso iPhone deixa de funcionar, ele é simplesmente descartado em aterros, na melhor das hipóteses, ou nos gigantescos lixões que insistem em existir no país. Junto com nossos eletrônicos, vão para o lixão minérios raros e nobres. Estamos jogando ouro no lixo.
O problema começou na própria evolução industrial dos séculos XVIII e XIX. A sociedade saiu de uma economia basicamente agrária (onde nada se perde, tudo se recicla, como na natureza) para a manufatura e, mais tarde, para a linha de montagem que leva ao mercado de consumo e à lata de lixo. O desperdício começou a ser detectado por economistas e naturalistas ainda na década de 1980. Trabalhos de pesquisadores como Michael Braungart e William McDonough, autores de Cradle to cradle (“Do berço ao berço”, traduzido no Brasil como Cradle to Cradle: criar e reciclar ilimitadamente), mostraram que, se os produtos não voltarem à origem do processo produtivo, a conta não vai fechar. As cidades chegarão ao limite, abarrotadas de lixo e sem recursos valiosos para criar novos produtos. Eles propõem uma mudança brusca na forma de produzir. Sugerem um modelo econômico em que os produtos, após chegarem ao fim de sua vida útil, não viram lixo, e sim matéria-prima para gerar novos produtos.
Ao falar com ÉPOCA por telefone, Braungart foi ainda mais radical. “O conceito de sustentabilidade é ultrapassado”, disse. A ideia de reduzir o consumo de recursos naturais, de modo a não comprometer a sobrevivência das gerações futuras – central no conceito de sustentabilidade –, é pouco ambiciosa. Braungart e sua equipe de cientistas tentam encontrar soluções técnicas para produzir objetos que, ao se degradar, sejam reabsorvidos pela biosfera na forma de nutrientes, ou que possam ser facilmente reincorporados ao ciclo produtivo. “Temos de encarar os humanos como um recurso capaz de trazer benefícios para o planeta, e não como um fardo cujo impacto deve ser minimizado.”
A ideia de que tudo o que produzimos pode voltar para a produção em vez de virar lixo ganhou o nome de economia circular. Nessa economia, nada é desperdiçado – todos os produtos devem passar por reaproveitamento, transformação e reciclagem. A chave para que isso ocorra não é a tecnologia da reciclagem, mas sim o design inicial do produto, levando em consideração o que acontecerá com ele quando perder seu valor de uso. Imagine um celular que, quando deixa de funcionar, é fácil de desmontar e só utiliza recursos passíveis de ser reciclados. Esse celular poderia voltar completamente para a indústria, suas partes se transformariam em novos produtos. Nós não teríamos a necessidade de poluir e explorar ainda mais os recursos da Terra.
Nos últimos anos, esse conceito inovador passou a ser adotado, entusiasticamente, pelo empresariado. “A economia circular faz uma crítica profunda sobre como o sistema contemporâneo funciona. E o interessante é que essa postura, vamos dizer radical, está sendo adotada por organizações empresariais”, diz o economista Ricardo Abramovay, da Universidade de São Paulo, autor do livro Muito além da economia verde. O conceito começou a ganhar adeptos. A velejadora britânica Ellen MacArthur, que circum-navegou o mundo sem produzir lixo, criou uma fundação para promover a ideia. A influente revista científica Nature destinou uma edição completa para o assunto em março deste ano.
Por que as empresas adotaram tão entusiasticamente as ideias da economia circular? Primeiro, por sobrevivência. Se continuarmos com um modelo predatório, em algumas décadas, recursos minerais e matérias-primas ficarão mais escassos e caros. Além disso, a tendência é que os consumidores passem a valorizar mais empresas sustentáveis e que o poder público exija ação das indústrias. Isso já ocorre em alguns pontos da Política Nacional dos Resíduos Sólidos. Ela determina que é papel da indústria oferecer meios para o consumidor destinar corretamente os resíduos.
Também há oportunidades de negócios. Um relatório produzido pela Fundação Ellen MacArthur calcula que a adoção de princípios da economia circular pode garantir que as empresas europeias faturem € 900 bilhões a mais até 2030. Esses ganhos virão do desenvolvimento de tecnologias mais avançadas, usadas para transformar resíduos em matéria-prima; da economia financeira gerada pela redução no uso de recursos naturais; e do ganho de competitividade promovido por esses dois fatores.
A economia circular já virou política pública em alguns países, em especial na União Europeia e na China. No final de 2015, a Comissão Europeia aprovou metas como a obrigação de reciclar 65% de todo o lixo inorgânico gerado pelos países até 2030 e o compromisso de reduzir o desperdício de comida em 30% no mesmo período. Estabelece também normas válidas para a produção de objetos diversos, para garantir que eles durem mais e sejam facilmente recicláveis.
A Europa reúne exemplos pioneiros de iniciativas em economia circular encabeçadas pelo capital privado. No começo dos anos 1980, a cidade de Kalundborg, no litoral da Dinamarca, tornou-se famosa ao gestar aquilo que os dinamarqueses chamaram de “simbiose industrial”. A antiga aldeia medieval começou a atrair indústrias no final dos anos 1950, quando o governo criou uma usina termelétrica na região. Hoje, o parque industrial da cidade inclui empresas de setores diversos – há uma fabricante de enzimas, uma fábrica de plástico e uma refinaria de petróleo, além de outras sete companhias, públicas e privadas. No modelo estabelecido em Kalundborg, os resíduos gerados pelas atividades de uma empresa se tornam matéria-prima para outra. A cooperação entre as indústrias de Kalundborg começou por acaso no início dos anos 1980, quando a farmacêutica Novo Nordisk passou a comprar o vapor excedente liberado pela termelétrica da cidade. Ao longo dos 20 anos seguintes, a relação entre as empresas se estreitou. Hoje, as companhias de Kalundborg compartilham, além de vapor, uma série de recursos que, em outras partes do mundo, seriam liberados no ambiente: a água doce, usada pela refinaria de petróleo para resfriar máquinas, é vendida para a termelétrica. A termelétrica também compra os gases liberados pela refinaria, que são reaproveitados para geração de calor. A empresa farmacêutica purifica seu resíduo industrial e transforma em fertilizante, vendido aos fazendeiros da região.
O sucesso em proteger o meio ambiente tornou a cidade caso de estudo em todo o mundo e inspirou iniciativas parecidas em outros países. O parque industrial do distrito de Nova Suzhou, na China, tenta reproduzir – em escala muito maior – a experiência bem-sucedida de Kalundborg. Nova Suzhou reúne 4 mil empresas em uma área de 52 quilômetros quadrados. A maioria das companhias ali se dedica a produzir aparelhos eletrônicos, realizar pesquisas em biotecnologia e produzir remédios. Em 2005, o distrito foi selecionado para participar de um plano do governo chinês para formar parques industriais que obedecessem aos princípios da economia circular. Em Nova Suzhou, as empresas produtoras de equipamentos eletrônicos montam circuitos com cobre rejeitado por outras indústrias do parque, e as empresas de papel usam a amônia gerada pelos processos produtivos das indústrias químicas. O governo chinês tinha a ambição de, até o final de 2015, criar 100 parques semelhantes a Nova Suzhou espalhados pelo país. Os resultados desses esforços ainda não foram divulgados, mas observadores internacionais atestam que a China se sai bem. “A China lidera o mundo nesse processo de transformar parques industriais tradicionais em parques ecoindustriais, que incorporam princípios da economia circular”, disse a ÉPOCA Hao Tan, professor de negócios internacionais da Universidade Newcastle. “Nessa área, o governo chinês parece ter tanto o desejo quanto os meios para promover mudanças.”
Prédios em Nova Suzhou, na China (Foto: Zhang Wei/AFP)
Desde 2010, a China inclui medidas de incentivo à economia circular nos Planos Quinquenais, o documento que estabelece as prioridades da política econômica para os cinco anos seguintes. O governo criou incentivos fiscais para empresas que promovam o reaproveitamento de resíduos e pretende que distritos planejados, como Nova Suzhou, sirvam de modelo para novos experimentos. Como a maior parte das fábricas chinesas está organizada em parques industriais, nos quais há proximidade física entre as empresas, soluções que envolvam a colaboração entre diferentes indústrias podem ser simples de implementar. Há um componente de urgência nessa guinada chinesa em direção à economia circular. Segundo números compilados por Tan, as indústrias chinesas produzem muito, mas produzem mal – para criar US$ 1 do PIB, os chineses usam cerca de 2 quilos a mais de matéria-prima que a média dos países desenvolvidos da Europa. Estima-se que, em 2025, o país vai gerar 25% de todo o resíduo sólido urbano do mundo. Em parte, a ideia dessas novas políticas é reduzir a poluição gerada pelas empresas chinesas. O objetivo é evitar que a economia do país se torne mais dependente da importação de matéria-prima.
No Brasil, também há iniciativas em economia circular. O pesquisador Regi Magalhães, ph.D. em ciência ambiental da Plural Consultoria e Pesquisa em Negócios e Sustentabilidade, estuda exatamente o estágio de desenvolvimento da economia circular em empresas brasileiras. “As ideias de economia circular não estão vindo da área de sustentabilidade das empresas. Elas estão nascendo na área de negócios. É uma perspectiva crescente de que se preocupar com isso é bom para os negócios.” Ele cita alguns casos concretos de empreendimentos lucrativos operando em território nacional. A Flex, por exemplo, que monta as impressoras HP, criou uma startup interna em Sorocaba, São Paulo, que usa alta tecnologia para fazer reciclagem de peças de impressora. A Embraco, empresa que produz máquinas de refrigeração, abriu uma unidade de negócios chamada Nat.Genius, que tem o objetivo de reaproveitar resíduos para criar novas máquinas.
Um caso interessante de economia circular no Brasil é a Votorantim. Ela ganha dinheiro para receber lixo gerado por outras indústrias e usa esses resíduos em suas fábricas. A empresa criou, no ano passado, uma unidade de negócios para sua produção de cimento. Essa unidade desenvolveu uma tecnologia para substituir o coque de petróleo, usado na produção do cimento, por resíduos – pneus velhos, papel, papelão, óleos, produtos químicos, resíduos industriais e até urbanos. O negócio é duplamente vantajoso: ela é paga por empresas para receber o lixo e usa esses resíduos em seus processos, não precisando comprar mais petróleo. “É uma unidade de negócios que ao mesmo tempo presta um serviço e produz um impacto positivo na produção do cimento, reduzindo a emissão de gases de efeito estufa”, diz André Leitão, diretor de Gestão de Resíduos na Votorantim.
Funcionário da Votorantim leva pneus para queimar nos fornos de cimento (Foto: Alex Almeida/ Editora Globo)
Apesar dos avanços, o Brasil ainda enfrenta problemas para adotar de forma ampla a economia circular. A dificuldade começa na própria Política Nacional de Resíduos Sólidos. Essa política determina que é responsabilidade das indústrias criar formas para descartar resíduos – a chamada logística reversa. Porém, a implementação dessa logística depende de que a política seja regulamentada e sejam feitos acordos setoriais entre governo e indústria. Em muitos setores, esses acordos não saíram até hoje. Para piorar, as metas da lei brasileira têm sido constantemente postergadas. A mais emblemática delas, que determina que todos os lixões a céu aberto sejam fechados no país, foi adiada para 2018.
Outro problema é a falta de tecnologia que justifique reciclar alguns produtos. Um caso claro são as embalagens multilaminadas – como aquelas que embrulham chocolates e salgadinhos. Não há tecnologia hoje que faça valer a pena reciclar esse tipo de embalagem. Ao mesmo tempo, não é vantajoso economicamente substituir essas embalagens por outro tipo de material. “Algumas cadeias estão mais desenvolvidas, outras menos. No caso das embalagens, faz todo o sentido reciclar as de alumínio ou garrafas PET. Já para outros materiais, não há tecnologia ainda”, diz Bruno Pereira, coordenador de sustentabilidade da empresa Dow e membro da Associação Brasileira de Embalagem (Abre). Segundo ele, a sociedade precisa pesar os prós e contras e, em alguns casos, pode valer mais a pena destinar um produto para o aterro que usar uma tecnologia ineficiente, que gaste muita energia e não resulte em bons produtos. “É justificável que a embalagem pare em um aterro sanitário? Sim, se essa for a alternativa mais eficiente considerando a tecnologia. Lógico que daqui a 100 anos pode não ser assim. Por isso, temos de trabalhar com pesquisa e desenvolvimento.”
O que fazer com nosso lixo enquanto não há tecnologia para resolver o problema? Os próprios consumidores – ou donos de casa – podem em seu dia a dia contribuir para reduzir o descarte de produtos. Para começar, o consumidor deve usar ao máximo os produtos antes de descartar. Muitos produtos podem ser reutilizados ou reaproveitados, vendidos ou doados para outras pessoas. Mesmo nos casos em que há tecnologia disponível para uma reciclagem ambiental e economicamente eficiente, ainda falta maior envolvimento por parte do cidadão. O caso dos eletrônicos é um deles. A cooperativa dirigida por Alex Pereira está muito abaixo de sua capacidade. Ela, hoje, trabalha com apenas 25 toneladas de lixo eletrônico por mês, enquanto tem capacidade para lidar com 100 toneladas por mês. Falta lixo para reciclar. “É verdade que o poder público e as empresas precisam fazer mais, mas em contrapartida nós temos uma sociedade que é muito passiva. O cidadão fica esperando ao invés de ir atrás. Aqui em São Paulo, tudo o que ele precisa fazer é ligar para a prefeitura, que eles indicarão onde descartar. A sociedade como um todo precisa ser mais engajada”, diz. Quem sabe desta forma conseguiremos mudar a mentalidade de nossa sociedade e passar a transformar lixo em ouro.
Fonte – Bruno Calixto e Rafael Ciscati, Época de 05 de junho de 2016
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