Por Jean Silva* - Jornal da USP - 1 de novembro de 2024 - Tucuruvi,…
Como as multinacionais controlam o que comemos
Investigação retrata a forma como um grupo cada vez mais reduzido de empresas está a monopolizar o sistema global alimentar, colocando em risco o ambiente, a saúde, os direitos dos consumidores e dos trabalhadores e os esforços para erradicar a fome mundial.
O Agrifood Atlas – Facts anf figures about the corporations that control what we eat(link is external) (Atlas do Agronegócio), uma publicação conjunta da Fundação Heinrich Böll(link is external), Fundação Rosa Luxemburg(link is external) eBund – (link is external)Friends of the Earth Germany(link is external), datada do final de 2017, revela os impactos dramáticos da monopolização do sistema global de alimentos em todas as fases da cadeia alimentar.
No relatório, é assinalado que “duas tendências coincidem no setor agroalimentar: cada vez menos empresas estão a assumir o controlo de uma fatia de mercado cada vez maior e estão a ganhar influência em muitas partes do mundo”.
“Ao mesmo tempo, as oportunidades para a sociedade civil e os movimentos sociais se oporem a tais desenvolvimentos estão a ser restringidas”, lê-se no documento.
Fusões como a da Monsanto pela Bayer são apenas “a ponta do iceberg”
Entre 2015 e 2016, cinco das 12 maiores fusões entre empresas de capital aberto registaram-se no setor agroalimentar, com um valor total de quase 500 mil milhões de dólares (cerca de 404 mil milhões de euros). Da lista das 500 maiores empresas do mundo em volume de negócios consta um grande número de empresas dedicadas à agricultura e à alimentação. E a tendência é de uma ainda maior concentração de poder, sendo que aquisições e fusões como a da Monsanto pela Bayer, a da Kraft pela Heinz e a da Dow pela DuPont são apenas “a ponta do iceberg”.
“Uniões empresariais, fusões e aquisições concentram o controlo nas mãos de grandes empresas agrícolas em cada elo da cadeia de valor, do campo ao garfo. Promovendo uma forma de agricultura que gira em torno da produtividade e da financeirização, as empresas alimentícias individuais ganharam imensa influência no mercado, impulsionando as políticas de compra e venda, exercendo pressão sobre os preços”, frisam.
“Os custos são sempre maiores para os elos mais fracos da cadeia”
De acordo com os autores do Agrifood Atlas, “os custos são sempre maiores para os elos mais fracos da cadeia: agricultores, trabalhadores agrícolas e consumidores”: “Sem regras vinculantes sobre direitos humanos, direitos do trabalho e proteção ambiental, os modelos de negócios e as estratégias de crescimento das grandes empresas agrícolas destroem o caos ecológico, levam a más condições de trabalho e causam a pobreza a montante da cadeia”, vincam.
A crescente monopolização dos recursos alimentares tem, segundo os próprios, consequências altamente nefastas. Por um lado, traduz-se na diminuição do poder de escolha do consumidor, com o aumento dos monopólios a colocar a cadeia alimentar em cada vez menos mãos.
Conforme retrata o Agrifood Atlas, cinquenta fabricantes respondem por 50% das vendas globais de alimentos no setor. Sete empresas dominam a produção global de pesticidas e sementes. Grande parte da carne bovina, da carne de porco e frango que comemos é controlada por um pequeno grupo de grandes empresas. Quase metade de todos os alimentos vendidos na União Europeia vem de apenas dez cadeias de supermercados e 50 empresas de processamento de alimentos respondem por metade de todas as vendas globais de alimentos. Apenas quatro empresas produzem 60% dos alimentos para bebés do mundo.
A consolidação na cadeia alimentar também representa “um risco para a futura produção alimentar”, na medida em que as grandes empresas agroalimentares impulsionam a industrialização ao longo de toda a cadeia alimentar, com 20% das terras agrícolas do mundo agora degradadas.
A crescente monopolização dos recursos alimentares traduz-se ainda em despedimentos e baixos salários, como aconteceu nas fusões de indústrias de processamento como a Kraft-Heinz e AB Inbev-SAB Miller.
Outra das consequências diz respeito à pressão sobre os preços. As grandes empresas pressionam fornecedores que, por sua vez, pressionam produtores menores, o que origina condições de trabalho precárias e baixos salários ao longo da cadeia alimentar.
Esta consolidação tem ainda uma condição muito perversa, contrariando os esforços para erradicar a fome mundial. Apesar do excesso de oferta de alimentos, os pobres têm cada vez mais fome. Se a colheita global de culturas alimentares é hoje igual a cerca de 4.600 kcal por pessoa por dia, mais de metade é, no entanto, perdida no armazenamento, via distribuição, desperdício de alimentos e alimentação para a pecuária.
Regulamentar para proteger o interesse público, os trabalhadores e o meio ambiente
“Um número crescente de pessoas está a organizar-se e a mudar os seus hábitos de compra para recriar a diversidade na cadeia de valor. Mas isso não é suficiente para acabar com a fome e a pobreza ou para proteger o meio ambiente. A retirada do governo da intervenção económica é uma das principais causas dos colossais danos ambientais e climáticos e da injustiça global a que assistimos hoje”, apontam os autores do relatório, defendendo que “já é hora de uma regulamentação social e politicamente orientada da indústria agroalimentar”.
Mute Schimpf, da Friends of the Earth Europe, defende que “a UE pode desempenhar um papel de liderança na rejeição destas consolidações”. “Um sistema alimentar alternativo é possível, e está a ser construído por produtores locais de alimentos e cidadãos em toda a Europa, criando empregos seguros e campos mais verdes”, avança.
“Precisamos de um debate urgente e do envolvimento proativo dos reguladores para proteger o interesse público, os trabalhadores e o meio ambiente”
Também Benjamin Luig, coordenador do Programa de Soberania Alimentar da Fundação Rosa Luxemburgo, refere que “o relatório revela uma dimensão amplamente ignorada da reestruturação do setor alimentício” e destaca que “precisamos urgentemente de regulamentações que limitem o controlo do setor financeiro sobre o setor agroalimentar”.
Barbara Unmüßig, presidente da Fundação Heinrich Böll, alerta que “as fusões e a concentração de mercado no setor agrícola estão a disparar – a concentração de terras, monoculturas e uma dependência quase completa dos agricultores e consumidores das decisões empresariais são as consequências alarmantes”.
“Como resultado, a biodiversidade global e a variedade e independência de nossa cadeia alimentar estão em risco”, acrescenta, sinalizando que “ativistas que lutam pelo direito ao acesso à água, terra e sementes são confrontados com repressões públicas ou privadas cada vez mais violentas em todo o mundo”.
Para Olivier de Schutter, co-presidente do Painel Internacional de Especialistas em Sistemas Alimentares Sustentáveis (IPES-Food), vinca que “este relatório deve ser um alerta para qualquer pessoa que se preocupe com a sua comida, campo e meios de subsistência rurais”.
“Estamos a assistir a um aumento sem precedentes de fusões e aquisições nos setores de alimentos e agricultura que terão grandes impactos sobre o que comemos e que alimentos cultivamos no futuro”, afirma, vincando que “precisamos de um debate urgente e do envolvimento proativo dos reguladores para proteger o interesse público, os trabalhadores e o meio ambiente”.
Fonte – Esquerda.net de 22 de abril de 2018
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