Por Pedro A. Duarte - Agência FAPESP - 12 de novembro de 2024 - Publicado…
‘Competíamos para ver quem tinha mais químico nas mãos’: O holandês que foi de entusiasta de agrotóxicos a pioneiro de orgânicos no Brasil
Joop e Tini se conheceram no Brasil, mas ambos vieram de famílias grandes e ligadas à terra na Holanda; juntos, descobriram paixão por orgânicos. SÍTIO A BOA TERRA
O holandês Joop Stoltenborg se lembra bem de quando o primeiro agrotóxico chegou ao sítio de sua família na Holanda, em 1955, quando tinha 15 anos. Era um herbicida que deixava a pele amarelada.
“Nós ficamos muito felizes. Arrancar o mato à mão demorava dias e pulverizando, demorávamos apenas algumas horas. Aos domingos, quando eu encontrava a galera, a gente olhava quem tinha as mãos mais amarelas de herbicida. Quanto mais amarelo, mais moderna e pop era a pessoa”, disse à BBC News Brasil.
Quando estava com cerca de 40 anos, Joop era, em suas próprias palavras, um “especialista em veneno”. “Importei livros com descrições sobre centenas de agrotóxicos: o que era bom para qual praga, a dosagem e o grau de toxicidade de cada um.”
Hoje, aos 79 anos, o holandês é um dos pioneiros da agricultura orgânica no Brasil – seu sítio é o sétimo certificado como orgânico no país – e um forte opositor dos agrotóxicos.
Em uma palestra no evento Food Forum, em São Paulo, no último mês de março, ele começou colocando cuidadosamente uma máscara e borrifando veneno em um prato de salada fresca.
“Aqui eu usei só a dose permitida, dentro das normas. Agora quero ver quem quer comer essa comida”, desafia.
O Brasil é um dos maiores consumidores de agrotóxicos no mundo, e permite o uso de dezenas de substâncias que já foram proibidas em outros países.
Nas últimas semanas, deputados tentaram algumas vezes votar, em comissão especial, o Projeto de Lei (PL) 6.299/2002, que pretende reformular a lei atual sobre registro, fiscalização e controle de agrotóxicos. A votação na Comissão Especial da Câmara dos Deputados foi adiada quatro vezes e deveria ter sido concluído na quarta-feira. Após um debate caloroso, no entanto, a sessão foi encerrada sem nova data para a votação.
O projeto, proposto originalmente pelo ex-senador e atual ministro da Agricultura Blairo Maggi (PP-MT) e cujo relator é o deputado Luiz Nishimori (PR-PR), também quer concentrar no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) a avaliação toxicológica das substâncias e aprovação do seu uso.
Atualmente, os agrotóxicos precisam ter uma avaliação toxicológica feita pela Anvisa, uma avaliação ambiental feita pelo Ibama e uma avaliação agronômica feita pelo Ministério.
“Quem não gosta de agrotóxicos fica criativo”, diz agricultor holandês sobre necessidade de encontrar técnicas alternativas de cultivo. SÍTIO A BOA TERRA
Pela nova lei, a Anvisa e o Ibama ficariam fora do processo e as substâncias seriam integralmente avaliadas por uma comissão técnica que incluiria representantes dos ministérios da Agricultura, da Saúde, do Meio Ambiente, da Ciência, Tecnologia e Inovação e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior.
O debate vem causando polêmica entre ruralistas, a favor do PL, e órgãos como Anvisa, Ibama e Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), que se posicionam contra.
Os produtores reclamam da demora na liberação dos agrotóxicos e dizem que, quando o governo autoriza a aplicação, os produtos já estão obsoletos. Opositores, por sua vez, afirmam que a nova medida favoreceria apenas os fabricantes dos químicos, facilitando a entrada de produtos possivelmente danosos à saúde e ao ambiente no mercado.
“Eu não estou tão preocupado com a vinda de novos produtos porque acredito que a tendência em todo mundo é que eles sejam cada vez menos tóxicos”, contemporiza Joop.
“Mas o Brasil precisa retirar os agrotóxicos que estão no mercado. Ninguém quer comer comida com veneno, mas as pessoas estão comendo.”
Histórias de contaminação
A trajetória de Joop – de entusiasta do uso de químicos na agricultura a ativista antiagrotóxicos – incluiu um período trabalhando em plantações mecanizadas no Canadá e uma viagem de milhares de quilômetros até o Brasil, em um Fusca, com um amigo.
“Viajando pelos países da América do Sul, deu pra ver que o Brasil estava crescendo. Era 1965, e aqui havia muito mais máquinas, estradas, caminhões, a indústria estava começando. Deu para ver um ânimo diferente dos outros países.”
A viagem terminou em Holambra 2, colônia holandesa no interior de São Paulo, na casa de um tio que já morava no país. Foi onde Joop conheceu Tini, também holandesa, de família grande e ligada à terra.
Juntos, eles tiveram três filhas e duas netas, e criaram o Sítio A Boa Terra que, em 1981, se tornou o sétimo produtor de orgânicos certificado pela Associação de Certificação Instituto Biodinâmico, a maior do país.
Na Holanda, agrotóxicos começaram a ser usados por pequenos produtores nos anos 1950, quando Joop tinha 15 anos: “Ficamos muito felizes, era o que havia de melhor”. ARQUIVO PESSOAL
“Decidimos parar de usar agrotóxicos depois que tivemos vários acidentes. O irmão de Tini foi intoxicado pelo vazamento de uma máquina de pulverizar, e o veneno penetrou nos rins. Ele ficou muitos meses na cama e até hoje sofre com problemas renais”, afirma.
“Uma vez, estávamos plantando bulbos de flores e colocando um agrotóxico em cima dos bulbos para matar pragas. Atrás de nós vinha um funcionário com um burro, que caiu morto no fim do dia. Tinha cheirado a substância o dia inteiro. Também já tivemos que levar três funcionários para o hospital por intoxicação grave depois de usarmos um veneno misturado às sementes de milho. Tudo isso mexeu muito comigo.”
A transição, no entanto, levou cerca de 10 anos, e precisou de uma boa dose de “criatividade”, segundo o agricultor.
Pedido de ajuda na internet
Inicialmente, Joop e Tini tentaram – e conseguiram – diminuir o uso de agrotóxicos seguindo uma estratégia chamada manejo integrado de pragas, em que aplicavam agrotóxicos em um ponto específico da germinação.
Isso permitiu, diz o holandês, que eles passassem a aplicar apenas 30% da quantidade de herbicida normalmente recomendada.
“Nessa época também ouvimos falar do uso do lança-chamas para o controle de ervas daninhas, por exemplo, na plantação de cenouras. Pedimos ajuda na internet para saber como usar e uma pessoa da Escandinávia até nos mandou um livro pelo correio.”
“Você normalmente semeia a cenoura, e ela começa a nascer em oito dias. Mas 80% das ervas daninhas crescem antes da cenoura. Aí no sexto dia, por exemplo, você passa uma chama que mata essas ervas e depois de uns dias nasce a cenoura tranquilamente, sem mato”, descreve.
Hoje, o sítio da família de origem holandesa também produz tomates em estufa usando apenas produtos com certificado orgânico e faz rotação de culturas. A monocultura, segundo especialistas, está associada à necessidade maior de agrotóxicos, já que altera o ecossistema e favorece o surgimento de pragas e insetos.
Joop saiu do Canadá para o Brasil, com um amigo, em um Fusca; aqui, foi recebido por tio que já trabalhava na agricultura. ARQUIVO PESSOAL
“Além de plantarmos vários produtos, também deixamos crescer um pouco de mato. Na agricultura convencional existe um fanatismo de combater até o último mato, é quase uma doença.”
“Mas se você deixa um pouco, a diversidade de plantas atrai uma diversidade de insetos. E aí você garante que os inimigos naturais das pragas também estejam lá. Se você tem pulgões, terá joaninhas que comem os pulgões”, explica.
Ele admite, no entanto, que a produção é mais difícil sem agrotóxicos, e exige mais cuidados e investimento – coisa que muitos pequenos agricultores não estão aptos a fazer.
“É fácil de condenar quem ainda usa (os químicos), mas não é tão fácil de mudar. Eu entendo isso. Ainda falta apoio para investirmos na tecnologia de produzir orgânicos.”
Desafio de manter e mudar hábitos de consumo
O setor de orgânicos movimenta mais de R$ 3 bilhões e cresce cerca de 20% a cada ano no Brasil, segundo o Organis – Conselho Brasileiro da Produção Orgânica e Sustentável. Cerca de 70% deste mercado corresponde a alimentos produzidos dessa forma e certificados por organismos credenciados no Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Os outros 30% correspondem a cosméticos, roupas, produtos de limpeza e outros.
Mas, apesar do crescimento, Joop diz que ainda é difícil para pequenos agricultores seguirem esse caminho.
Com 30 funcionários, o Sítio A Boa Terra produz couve-flor, brócolis, abobrinha, batata inglesa, batata doce, beterraba, cenoura, gengibre, inhame, mandioca, milho, pepino japonês, alho, quiabo, rabanete, tomate cereja, tomate e açafrão, além de folhas – diversos tipo de alface, almeirão, escarola, rúcula, couve-manteiga, espinafre, repolho e temperos em geral.
Semanalmente, eles enviam para assinantes uma cesta de produtos orgânicos que tem, além da sua colheita, produtos de parceiros. Mas a manutenção dos consumidores, ele diz, é um dos principais desafios.
Sítio produz 30 variedades de orgânicos mas principal desafio é manter clientes fidelizados. GETTY IMAGES
“Temos muitos clientes entrando e saindo, mas os que permanecem ainda são poucos. As pessoas também questionam o preço, mas é preciso lembrar que na agricultura convencional, o produtor tem uma máquina que substitui 10, 20, 40 homens”, afirma.
Como exemplo, ele explica que um hectare de batata pode ser cultivado por apenas uma pessoa na agricultura convencional. O manejo orgânico, no entanto, requer pelo menos oito.
“Aliás, todo mundo sabe que batata inglesa é o que mais precisa de agrotóxicos para produzir. Só que o Brasil tem raízes bem melhores que essa. A batata doce, em termos de nutrientes, é dez vezes melhor. Se o consumidor passar a consumir mais inhame, batata doce, cará, mandioca, mandioquinha, a mudança não fica impossível. O consumidor ajuda os agricultores a procurar outros produtos.”
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