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Cooperativas de catadores: exemplo de economia solidária e preservação do meio ambiente em São Leopoldo

Imagine que você precisa ir ao supermercado fazer as compras dos produtos básicos para poder passar o mês. Uma situação comum, que é vivida por grande parte da população de todo o mundo. Agora pense: será que você vai lembrar de todos os itens que precisa ou vai acabar esquecendo aquele produto essencial? Melhor fazer uma lista, não? Você pega um papel, escreve tudo o que precisa comprar e pronto. Tudo certo, você joga fora a folha que usou para anotar.

Talvez você não tenha se dado conta, mas ao descartar esse papel, se ele não for para o lugar certo, ele pode ficar de três a seis meses na natureza até se decompor. Seis meses é quase o tempo completo que leva a gestação de um ser humano, e aquele pequeno pedaço de papel continuou ocupando um espaço sem ter uma real utilidade.

Para que o papel possa retornar para as prateleiras e ser utilizado novamente, é preciso que ele seja reciclado. Por isso é importante estarmos atentos à destinação correta dos resíduos sólidos e, também, conhecermos mais sobre o caminho que este material percorre até chegar de novo às nossas mãos. O Observatório da realidade e das políticas públicas do Vale do Rio dos Sinos – ObservaSinos, programa do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, comprometido com a sistematização, análise e o debate sobre as realidades e as políticas públicas na região do Vale do Sinos, fez a aproximação com as cooperativas de catadores, com o propósito de dar vistas ao seu protagonismo nos processos de garantia ambiental e das políticas na cidade de São Leopoldo.

De acordo com a Política Nacional de Resíduos Sólidos, lançada em 2010 através da Lei nº 12.305/10, cada município deve implementar o seu próprio Plano Municipal de Resíduos Sólidos – PMRS e, a partir disso, colocar a operação da coleta seletiva na mão, preferencialmente, das cooperativas de catadores. Isto ficou definido pelo Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis – MNCR como Coleta Seletiva Solidária. Mas, conforme dados fornecidos pelo Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento – SNIS, apenas 33% das cidades do Brasil haviam elaborado o próprio PMRS até o ano de 2014.

Um entrave que também acontece com a desvalorização do trabalho de coleta dos catadores individuais. Existe a necessidade de conscientizá-los e inseri-los nas cooperativas, mas de uma maneira inclusiva e gradativa. Essa é uma das afirmativas e das lutas a que se propõe o membro do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis – MNCR, Alex Cardoso. Em entrevista concedida ao IHU, ele revela a problemática dos catadores de Porto Alegre e tenta fomentar uma discussão mais aberta entre os interessados e a prefeitura.

Já no município de São Leopoldo existem sete cooperativas que realizam a coleta seletiva. Elas são formadas por grupos de colaboradores que se dividem em diversas funções dentro do ambiente da associação. O princípio de tudo se dá através da ida do caminhão da coleta até os endereços em que cada associação é responsável. Esse roteiro é dividido por bairros para facilitar o atendimento ao público. Os resíduos sólidos do bairro Centro e também das empresas que se cadastraram para fazer parte da coleta seletiva são recolhidos por todas as cooperativas, em dias intercalados e com o rodízio organizados por eles, já que o volume de material é muito grande e assim fica mais justo para que todos possam aproveitar esse material eventualmente.

Depois de recolhido, o material é levado para os galpões das cooperativas e entregue para os trabalhadores que farão a triagem do material. Eles devem selecionar aquilo que é possível ser vendido em grande escala, já que nem todos os resíduos recolhidos irão realmente para a reciclagem. Para a analista de Ação Social do Programa Tecnosociais/CCIAS, da Unisinos, Renata Hahn, é importante salientar que nem todo o material consegue ser aproveitado pelos catadores. “O material que tem serventia para eles é somente aquele que é possível comercializar, infelizmente. Tem coisas que eles não têm como estocar e materiais que eles não têm o maquinário para transformar de um modo que possa ser vendido. Isso acaba se tornando rejeito e indo parar no aterro sanitário”.

Renata é uma das responsáveis pelo Programa Tecnosociais da Unisinos, que funciona como incubadora de empreendimentos econômicos solidários de geração de trabalho e renda. A equipe trabalha para auxiliar na criação e apoio desses tipos de organizações, que sozinhos não teriam uma assessoria especializada e não conseguiriam formalizar assuntos mais técnicos, como a transição de associação para cooperativa, por exemplo. Sobre a formação das cooperativas de catadores, Renata explica: “Os empreendimentos de economia solidária, principalmente no segmento de reciclagem, são geralmente formados por pessoas que não conseguiram se inserir no mercado de trabalho formal e acabaram ingressando na reciclagem”.

A segunda etapa da operação da coleta seletiva acontece após a triagem do material e consiste em aglutinar os resíduos iguais em grandes sacolas e levar para a prensa. Esses recipientes são chamados de “big bags” e é preciso cinco deles para fazer um fardo de 150 kg de garrafa pet ou três para fazer um fardo de 130 kg de plástico comum, por exemplo. Somente depois de prensado e separado corretamente é que o material será estocado para a venda posterior.

Segundo a explicação da especialista em Gestão Ambiental e Social Joice P. Maciel e da socióloga e especialista em Políticas Públicas Kellen Pasqualeto, que representam o coletivo de técnicas que atuam em atividades no segmento ambiental e social, Apoena Socioambiental, o papel do catador era desvalorizado e limitado ao trabalho de coleta irregular e triagem em 2005. A remuneração vinha somente do pouco material que eles coletavam individualmente e conseguiam fazer a comercialização na época. No mesmo ano, a prefeitura de São Leopoldo deu início à coleta seletiva, mas deixou o serviço prestado por conta de uma empresa privada.

Durante o ano de 2005, os coletores individuais que se organizaram em associações ou cooperativas começaram a receber um valor trimestral de R$ 4.500,00. A partir de 2009, eles passaram a adquirir os resíduos reutilizáveis e recicláveis por uma empresa privada contratada pelo município de São Leopoldo. De acordo com as representantes da Apoena Socioambiental, há apenas três anos o trabalho da coleta seletiva passou totalmente para as cooperativas e, a partir disso, o valor recebido pelo trabalho prestado à prefeitura aumentou. “Somente a partir da proposta da implantação do Plano Municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos – PMGIRS, em 2012, é que passaram a ser sete cooperativas de reciclagem conveniadas, as mesmas que a partir de 2014 e até o momento são contratadas para o serviço de coleta seletiva. Cada uma recebe em torno de R$ 24.000,00 mensais pelo serviço prestado”. Esse valor é referente ao contrato estabelecido com a prefeitura de São Leopoldo para que as cooperativas realizem o trabalho da coleta seletiva no município.

Segundo a analista de Ação Social Renata Hahn, essa quantia, atualmente, serve apenas para que as organizações consigam cobrir suas despesas com os gastos operacionais, e o dinheiro que eles conseguem obter como lucro é vindo da venda do resto do material separado para atravessadores. “O que as cooperativas estão lutando hoje é para que recebam também pelo material triado nas esteiras. Assim aumentaria o valor recebido e seria mais justo com os trabalhadores”, afirma Renata.

É isto o que acontece na CooperFeitoria, uma das cooperativas visitadas pelo ObservaSinos. Funcionando formalmente como uma cooperativa desde 2012, mas já existindo há 15 anos, ela possui 10 trabalhadores divididos entre os setores da coleta. É responsável pelo atendimento dos bairros Feitoria e Jardim América, em São Leopoldo. Como nas outras cooperativas, ela segue o modelo de autogestão, onde os próprios participantes da organização elegem um presidente para representá-los, mas todos têm influência nas decisões administrativas. O atual presidente da CooperFeitoria, Josué Carvalho, explica como o modelo funciona: “A cooperativa funciona assim: todos somos donos, mas todos temos que ter responsabilidades, tanto de funcionário como a de chefe. Cada um deve saber o seu papel e como executá-lo, sem esperar que outra pessoa fale. Temos que ter muito cuidado na disciplina e isso é um avanço que estamos fazendo”.

Josué foi catador individual por 15 anos e afirma que cada pessoa tem conhecimento do seu setor, da sua função e também do funcionamento da cooperativa como um todo. A partir disso, reuniões são programadas para que eles possam opinar e sugerir melhorias nos locais de trabalho. Perguntado sobre a importância do seu trabalho para o meio ambiente, ele responde de forma enfática: “Eu me preocupo em fazer um bom trabalho. A consequência dele é que vai ajudar a natureza e isso é muito importante para o meio ambiente, faz a diferença no nosso contexto. Mas infelizmente é muito pouco, é quase paliativo perto do todo”.

Mesmo assim, segundo as representantes da Apoena Socioambiental, Joice Maciel e Kellen Pasqualeto, depois da inclusão dos catadores na PMGIRS, algumas modificações na coleta puderam ser percebidas. Elas afirmam que a efetivação dos contratos de prestação de serviço trouxe um grande diferencial, pois além de garantir a execução da coleta pelos catadores, possibilitou ampliar o número de postos de trabalho em 40%, e a renda em 23%. “Esses dados também se revertem em benefícios ambientais. Aproximadamente sete mil toneladas que seriam enterradas no aterro sanitário, gerando um passivo ambiental e lucro para a empresa privada contratada, retornaram para a cadeia produtiva, revertendo-se em remuneração para os catadores e menos impactos negativos ao meio ambiente”, revelam.

Joice e Kellen também propõem uma análise mais aprofundada desses dados. Em entrevista concedida a elas pela Secretaria de Serviços Públicos de São Leopoldo no ano passado, os resultados dos resíduos encaminhados à reciclagem, no período de 2014 a 2016, de 7 mil toneladas, apontam um baixo impacto em relação ao montante de resíduos domiciliares que foram encaminhados ao aterro no mesmo período, que somaram 120 mil toneladas. Elas afirmam que, apesar dos números terem baixa influência no todo dos resíduos domiciliares, a importância da coleta é extremamente alta. “Porém, o impacto socioambiental torna-se significante, uma vez que atualmente essa política beneficia cerca de 90 famílias entre as sete cooperativas de catadores, que passam a ter melhores condições de trabalho e de remuneração; benefícios que se estendem para aproximadamente outros 340 beneficiários indiretos, familiares desses trabalhadores”.

Também é importante frisar a participação das cooperativas na educação ambiental, direta ou indiretamente, através da coleta e destinação dos resíduos recicláveis. “Muitas cooperativas possuem ótimo relacionamento com a comunidade do entorno onde operam, bem como realizam palestras em escolas municipais e participam de eventos relacionados aos temas ambientais da cidade”, afirmam Joice e Kellen.

Conforme o atual diretor de resíduos da Secretaria Municipal do Meio Ambiente – Semmam, Mario Celi, os catadores são os agentes principais da coleta. “Eles são os protagonistas do processo. A prefeitura dá os meios, através de convênios e contratos, e eles fazem a própria gestão”. Mario também fala da importância das cooperativas em relação ao meio ambiente e ao município. “As cooperativas são fundamentais para a melhoria da saúde do meio ambiente e também são o carro-chefe da educação ambiental. Todo esse material que não seria aproveitado, agora volta para nós com um novo uso. Isso é excelente. Além disso, com a evolução das cooperativas, teremos o fim dos aterros sanitários, o que reduzirá o custo da prefeitura em 60% a 70%”, revela.

Incêndio e recomeço na CooperFeitoria

Recentemente a CooperFeitoria sofreu um revés grande em suas instalações. Um dos galpões da cooperativa foi atingido por um incêndio em novembro de 2016, afetando o galpão que funcionava para receber o material e também onde ficava o escritório administrativo. De acordo com Josué, o local recebia em média 30 toneladas de material por mês. Mesmo assim, ele e os companheiros de cooperativa não se deixaram abater e continuaram trabalhando no outro galpão disponível. “Com a destruição do outro local, nós aproveitamos o momento de tragédia para organizar esse galpão e centralizar o trabalho. Agora vamos avançar no beneficiamento do material. Também pretendo construir uma horta comunitária no terreno onde pegou fogo para compartilhar com a comunidade do bairro Feitoria”.

O beneficiamento de material é uma das melhores técnicas disponíveis no mercado e é utilizada para transformar os resíduos sólidos de uma forma que eles possam ser reutilizados. Para realizar essa atividade, é necessário um equipamento diferente do que as cooperativas já possuem e o custo de compra é elevado. A CooperFeitoria conseguiu adquirir o equipamento através de um projeto em parceria com outras empresas e já em 2017 pretende começar a trabalhar nesta nova etapa. “O que nós fazemos hoje não é reciclagem. A gente faz coleta, triagem e fardamento. Reciclagem é transformar. A partir do beneficiamento do material é que isso vai acontecer”, afirma Josué.

Galpão de triagem da CooperFeitoria (Foto: Lucas Schardong)
Com este avanço na tecnologia da cooperativa, os materiais coletados pela CooperFeitoria serão vendidos diretamente para as empresas que têm interesse, ao invés de fazer isso para um atravessador ou para cooperativas de fora do município, como funciona atualmente. Assim, o valor do material se elevará, trazendo diversos benefícios para todos os trabalhadores. Hoje, uma embalagem simples de arroz é vendida a R$ 0,30 o quilo, por exemplo. Após o beneficiamento do material, ele poderá ser vendido diretamente para um comprador por até R$ 2,70, dependendo da qualidade do material. Isso daria um aumento de quase 800% no valor inicial, sendo que possibilitaria pagar os custos de operação e sobraria ainda 63% do valor final da venda para dividir entre os trabalhadores.

Mas apesar de todo o trabalho realizado pelas cooperativas, Josué afirma que muita coisa precisa ser melhorada. “Hoje, a CooperFeitoria, nos setores que ela faz, ela atinge mais de 12 mil pessoas por semana. Ela não tira 5% do material reciclável que é produzido pela população”, revela. Isso se deve, conforme o presidente da CooperFeitoria, à falta de estrutura que as cooperativas possuem. Assim, elas não conseguem aumentar a produção e manter o processo com qualidade. Ele também afirma que não bastaria só melhorar os equipamentos e os locais de trabalho, mas também é necessário se preocupar com a qualificação das pessoas que trabalham na reciclagem. “É preciso profissionalizar as cooperativas. Elas precisam ser vistas como empresas e funcionar como tais. Com o apoio do governo, que precisa cobrar resultados em contrapartida. Assim o sistema se tornaria melhor e mais eficiente”, explica.

Fonte – Lucas Schardong e Marilene Maia, IHU de 17 Março 2017

Imagem – ccPixs.com

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