Por Sérgio Teixeira Jr. - ReSet - 12 de novembro de 2024 - Decisão adotada no…
Crise do clima – Cidade do Cabo – Estiagem e herança do apartheid criam pânico com torneiras secas no Dia Zero crise do clima
Ventania levanta areia do leito seco da represa Theewaterskloof, responsável por grande parte do abastecimento de água da Cidade do Cabo, na África do Sul –
PROVÍNCIA DO CABO OCIDENTAL – No primeiro domingo de maio (6), uma centena de moradores da Cidade do Cabo aguardava em duas filas ordeiras a vez de encher galões de água na cervejaria SAB. Naquela manhã ensolarada, pessoas de todas as cores pareciam pouco convencidas de que o fantasma do Dia Zero tivesse sido exorcizado em definitivo com a chegada da estação de chuvas.
A empresa instalara várias torneiras na fonte tradicional, localizada no bairro abastado de Newlands. Mesmo com água em casa, era como se todos quisessem manter-se em forma para as medidas drásticas que o governo municipal decretaria no Dia Z: corte do fornecimento para domicílios, obrigando os “capetonians” a buscar sua ração diária de 25 litros (contra 50 l hoje) em um dos 200 pontos de coleta espalhados pela área metropolitana.
Essa situação limite, que frequentara os pesadelos da população nos seis meses anteriores, já havia sido afastada pela prefeitura. Após adiar sucessivamente a data das torneiras secas, para maio e depois julho e agosto, o vice-prefeito Ian Neilson declarou no início de abril que o armagedão hídrico não viria antes de 2019.
Naquela altura, os moradores já tinham perdido a confiança na quantidade e na qualidade da água distribuída pelo município. E também no governo, com a prefeita Patricia de Lille lutando nos tribunais contra seu afastamento sob uma tempestade de acusações de corrupção.
Sem contar que o consumo individual continua, ainda hoje, limitado a 50 litros diários por pessoa e que as contas d’água não param de subir.
Patricia Kazaka, gerente de uma empresa de comunicação, enfrenta seus 15 minutos de fila no pátio da cervejaria segurando seus dois filhos pequenos pelas mãos enquanto outro, mais velho, ajuda com os cinco vasilhames de 5 l cada. Ela faz a peregrinação à fonte todos os domingos depois da igreja, desde fevereiro, para garantir água de qualidade para a família.
“Houve alguns incidentes em que pessoas beberam água da torneira de casa e ficaram doentes”, diz a gerente. A prefeitura soltou um comunicado dizendo que a água era segura, mas anunciou também que estava conduzindo alguns testes, conta.
“Isso nos assustou um pouco. Talvez a gente devesse começar a comprar água, mas aí cada garrafa custa um pouco mais de dinheiro, e percebemos que poderíamos conseguir nossa água de graça [na fonte].”
População enfrenta fila para abastecer seus galões vazios na fonte pública de Springsway, na Cidade do Cabo, África do Sul; local atrai muitos muçulmanos – Lalo de Almeida/Folhapress
Sua família mora numa casa com jardim, mas não pode mais regá-lo. A conta mensal, que ficava entre 800 e 1.200 rands (cerca de R$ 240 a R$ 360), dobrou.
“Acho que a campanha do Dia Zero foi necessária, porque, se não fosse por ela, muitos de nós provavelmente não começaríamos a nos dar conta de como é importante economizar água, ensinar às nossas crianças quando dar a descarga.”
Vários metros atrás dela, a antropóloga e professora de ioga Kate Ferguson afirma que pretende continuar a vir até a fonte mesmo que as autoridades anunciem que as represas se encheram de novo. Ela buscava apenas 15 l, mas diz que vem com frequência e tem sempre recipientes no carro para manter altos os estoques de água confiável.
“Queremos tirar a pressão do abastecimento da cidade. Quanto mais pessoas vierem para pegar água de beber e de cozinhar, melhor.” Ferguson considera positiva a campanha do Dia Zero: “De certa maneira, foi muito esperta. Trouxe consciência para as pessoas de como a água é um recurso escasso, especialmente aqui no Cabo Ocidental”.
Por outro lado, ela acha que água é um direito humano básico, e se queixa de não haver muita pressão sobre setores como a indústria da carne, que a consome muito. “A moralidade de como nossos líderes lidam com as coisas fica em questão. Eles instilam medo [nas pessoas] sobre um direito básico do cidadão.”
Morador da Cidade do Cabo caminha em direção à fonte pública no bairro de classe média alta de Newlands para abastecer com água seus galões vazios – Lalo de Almeida/Folhapress
A região da Cidade do Cabo não chega a ser árida, mas tem distribuição muito variada de chuvas num raio de 100 km. Certas partes da área metropolitana recebem menos de 400 mm por ano, comparável às piores situações do semiárido do Nordeste brasileiro, e no verão dependem das reservas mantidas em seis grandes represas.
Os reservatórios recebem água das montanhas a leste, onde a precipitação pode chegar a 2.000 mm/ano. Mas as chuvas orográficas (quando o relevo força a condensação da umidade) ocorrem só no inverno, mais abundantes em julho e agosto.
De outubro a maio grassa a estiagem típica do clima mediterrâneo. Trata-se de uma exceção na África do Sul, o que favoreceu a implantação de vinhedos no Cabo Ocidental, como nas imediações de Stellenbosch e Franschhoek, e também de árvores frutíferas, em particular maçãs e peras –culturas agora sob ameaça.
Houve secas severas no passado, separadas por intervalos de mais ou menos quatro décadas, mas nenhuma que se compare à dos últimos três anos. Pelos cálculos do hidroclimatologista Piotr Wolski, da Universidade da Cidade do Cabo, um tal evento só se repetiria de 300 em 300 anos, ou mais.
O especialista não está seguro de que a estiagem sem precedentes seja fruto de impacto direto da mudança do clima pelo aquecimento global. Ele vê “um desvio forte” das condições climáticas normais, que parece reforçar uma tendência de declínio na precipitação observada nos últimos 40 anos.
Quando se consideram os dados de 100 anos, porém, nenhuma tendência clara pode ser identificada. “Os resultados não são robustos, nesta altura. Talvez num par de meses nós tenhamos melhores resultados”, prevê Wolski.
Seu palpite é que a mudança climática contribuiu para a seca extrema, mas que força primária à qual se somou ainda seria a variabilidade natural do clima no Cabo Ocidental. “É uma mensagem [vaga] muito difícil de oferecer, porque o mundo todo está olhando para a Cidade do Cabo, cientistas do clima e negacionistas [da mudança] do clima”, lamenta.
No início de 2017, quando a seca já era evidente, pesquisadores se reuniram para fazer uma recomendação ao governo municipal, mas não conseguiram chegar a uma previsão segura para a estação chuvosa. Limitaram-se a aconselhar uma conduta conservadora, de aversão ao risco.
Na incerteza, a prefeitura não fez muita coisa. No final do ano passado o estado periclitante dos reservatórios mostrou que os cientistas estavam certos em recomendar o máximo de prudência. Foi quando se começou a falar em Dia Zero.
No verão 2016/17, o nível das represas despencava à taxa de 1,5% por semana. A prefeitura estabeleceu o limiar de 13,5% de reservação como gatilho para declarar o Dia Zero, e seus primeiros cálculos indicavam que ele cairia em abril.
Uma cidade que consumia 1,2 bilhão de litros por dia (l/d) viu sua alocação reduzida para 480 milhões de l/d pelo governo nacional. Com a campanha alarmista, um aumento de tarifas e a ameaça das torneiras secas, conseguiu cortar o uso para 505 milhões de l/d, ainda acima da meta de chegar a 450 milhões.
Fixou-se a cota de 50 litros diários por pessoa (menos de um terço do que consumia um paulista em 2016, 166 l/d, após a crise hídrica na região metropolitana de São Paulo). Cartazes recomendavam dar menos descargas nos vasos sanitários, reservando-as para dejetos sólidos, tomar banho com esponja ou até suspendê-lo uma vez por semana, e assim por diante.
Começou também o corre-corre para ampliar a captação de água, com a perfuração de poços artesianos e a construção de quatro usinas de dessalinização, mas estas só ficam prontas agora, em junho. De todo modo, elas agregariam, quando muito, 20 milhões de l/d, contra 150 milhões de l/d dos aquíferos.
Ian Neilson, vice-prefeito encarregado de domar a crise, repele a acusação de que o governo teria falhado em preveni-la. Até aqui, justifica, a Cidade do Cabo vinha se valendo das águas de superfície e isso funcionou bem, mesmo com secas graves no passado –as represas sempre se enchiam de novo.
“Entendíamos de maneira geral que uma mudança [climática] estava ocorrendo e que seria necessária uma adaptação”, afirma. “O que não previmos foi quão rapidamente ela viria.”
Todas as projeções, alega Neilson, indicavam que a ampliação das fontes de captação seria necessária só na década de 2020. Agora, após três anos de estiagem, dois dos quais os piores já registrados, ele se convenceu de que a cidade está diante de uma nova realidade.
“Esta é a mensagem que as cidades mundo afora precisam entender: quando a mudança acontece, ela pode vir de modo muito rápido e severo. Há que se preparar previamente, e não presumir um ritmo lento de adaptação.”
O vice-prefeito se queixa de que o Departamento Nacional de Água e Saneamento demorou a reduzir a cota de água para irrigação. A crítica tem um fundo político: a prefeitura está nas mãos do partido Aliança Democrática, de oposição ao Congresso Nacional Africano, que ocupa o governo nacional desde 1994, com o fim do apartheid.
A disputa teria atrasado verbas para ampliar a capacidade das represas Voëlvlei e Berg River, acusa Neilson (o departamento não respondeu ao pedido de entrevista). Por outro lado, o governo nacional impôs ao setor agrícola um corte na alocação de água para irrigação de 60%, ainda mais drástico que o determinado para consumo urbano.
“Temo que o impacto na agricultura tenha sido enorme, e nós reconhecemos isso. Ouvi que a indústria vinícola teve algo entre 20% e 40% de redução no volume, e isso significou perdas de empregos, como no caso de apanhadores de frutas”, ressalva.
Danie Loubser, da fazenda Breëvlei no vale de Elgin, tem 50 hectares plantados com macieiras. Na primeira semana de maio ele finalizava a colheita da variedade Pink Lady, uma das melhores para exportação, que sofreu uma quebra de 15% a 20% com a seca.
A propriedade de Loubser fica no vale banhado pelo rio Palmiet, bem aquinhoado com chuvas. O Palmiet alimenta a represa privada Eikenhof, que contribuiu para adiar em quase três semanas o Dia Zero. As comportas foram abertas para deixar passar 10 bilhões de litros além dos 9 a 23 bilhões de litros que ela carreia para o sistema público de abastecimento a cada ano.
“Fechamos um bom acordo”, avalia Stuart Maxwell, presidente da Associação de Usuários de Água de Groenland (GWUA, em inglês), que construiu Einkenhof. Em contrapartida, o corte para os associados baixou de 60% para 10%.
Em um vale mais adiante, na região de Worcester, não há uma grande represa como Eikenhof. Vinhedos e frutíferas são arrancados para o plantio de trigo e pastagens destinadas a ovelhas.
A estiagem e a crise agrícola deixam suas marcas também na vila vizinha de Villiersdorp. Na “township” (favela habitada por maioria de negros) Station 11, os barracos se multiplicam pela encosta para abrigar desempregados de várias partes.
Esgotos correm por valas abertas. O riacho que desce da montanha está cheio de lixo. A maioria dos moradores tem de buscar água em torneiras comunitárias, que podem estar a várias ladeiras de distância.
No caminho de volta para a Cidade do Cabo, a rua principal de Franschhoek exibe uma fileira de cartazes em inglês, afrikans e xhosa, um deles recomendando o “domingo sem banho”. A equipe da Folhaestaciona para tirar fotografias das mensagens ao lado de operários negros que instalam um portão, sob a vigilância de um homem ruivo.
“Aproveite a África do Sul antes que ela acabe”, diz o proprietário à reportagem. Ele não se refere à seca, mas à tomada do poder pela maioria negra com o fim do apartheid, à qual atribui saques e incêndios de fazendas, estupros e assassinatos cruéis.
A maior parte dos produtos agrícolas são embarcados para o exterior, e não consumidos domesticamente, aponta Richard Pfaff, gerente do programa de água da organização ambientalista EMG (Environment Monitoring Group). Os empregos criados são precários, e a irrigação consome água demais diante do escasso benefício social.
“Existe hoje um debate político sobre como a água deveria ser alocada de maneira justa, dado que a maioria da população, que é de pessoas negras, está percebendo que há uma distribuição desigual de água quando se trata de negros e brancos.”
Acima, mulher lava a roupa em torneira comunitária na Station 11, em Villiersdorp; no meio e abaixo, a “township” (favela) vista de cima – Lalo de Almeida/Folhapress
Pfaff enxerga pontos negativos e positivos na campanha do Dia Zero. O aspecto ruim, diz, foi a manipulação de informação, como o adiamento sucessivo da data em que as torneiras secariam, sem maiores explicações.
Por outro lado, na sua opinião, a mensagem drástica teve o poder de elevar a consciência da população sobre a mudança do clima, oferecendo-lhes uma imagem muito concreta do que ela pode acarretar.
“O segundo aspecto [positivo] da campanha foi que, numa cidade dividida como a do Cabo, ela representou uma oportunidade para as pessoas se encontrarem e conversarem, para tentar resolver esse problema para além das divisões de raça, de classe e de gênero.”
Não muito longe das torneiras da cervejaria SAB, no mesmo bairro Newlands, outra fonte atrai um grupo menor à Springsway, uma rua sem saída. Há um bom número de mulheres com os cabelos cobertos e homens com barbas e barretes.
Carregadores se oferecem para arrastar galões de até 50 litros em carrinhos, por uns poucos rands. Alguns guardam lugar na fila para possíveis clientes e burlam a regra de 25 litros por pessoa.
Um muçulmano se irrita e chama a policial que aguarda em um carro de patrulha no início da viela. Pistola no cinto, a agente obriga um rapaz negro a se afastar com os vários galões vazios de uma senhora branca, que volta ao fim da fila.
Já se preparando para ir embora, Judy Molokon, mulher negra que vem à fonte quinzenalmente, reclama de sua conta d’água, que subiu para 1.400 rands mensais (cerca de R$ 400) numa casa de quatro pessoas.
“Tento tanto quanto possível evitar usar água da torneira [em casa]. Não podemos arcar com essas tarifas altas”, protesta. “E nem foi culpa nossa. Estamos rezando para a chuva voltar.”
Cantareira está com nível de água mais baixo do que em maio pré-crise de 2014
O sistema Cantareira se prepara para entrar no período mais seco do ano em situação pior do que se encontrava antes da crise da água de 2014. A recomendação é para que a população evite desperdício.
No último dia 31, restavam 453 bilhões de litros de água. Em maio de 2013, antes do início da crise, havia 581 bilhões de litros para enfrentar o inverno e parte da primavera até a chegada das chuvas.
Como comparação, no mesmo dia em 2017, o sistema tinha 664 bilhões de litros.
Em maio, a chuva acumulada foi de 13,7 mm, um sexto do que costuma chover neste mês segundo média histórica.
O Cantareira tem recebido 13,7 metros cúbicos de água por segundo, enquanto a Sabesp distribui 24,4 metros cúbicos por segundo para a população. Ao invés de encher, é como se perdesse quase 11 metros cúbicos por segundo, água suficiente para abastecer a zona leste da capital.
Os demais reservatórios também estão com menos água do que estavam em maio de 2013.
A Sabesp afirma que possui um sistema mais robusto, com mais interligações e maior capacidade de tratamento de água do que antes da crise hídrica. Cita a interligação Jaguari-Atibainha, que permite transferir água entre duas bacias distintas, e diz que, no sentido do Cantareira, pode enviar até 162 bilhões de litros de água por ano, volume equivalente a uma represa Guarapiranga cheia.
Texto: Marcelo Leite e Lalo de Almeida / Imagens: Lalo de Almeida / Infografia: Simon Ducroquet / Edição de vídeo: Victor Parolin / Edição de fotografia: Daigo Oliva / Edição e revisão de texto: Marcelo Leite, Mariana Versolato e Renan Marra / Tratamento de fotografia: Edson Sales /Design e desenvolvimento: Angelo Dias, Pilker, Rubens Alencar e Thiago Almeida / Coordenação de arte: Kleber Bonjoan, Thea Severino e Daigo Oliva / Coordenação geral: José Henrique Mariante e Roberto Dias / Idealização: Lalo de Almeida e Marcelo Leite
Fonte – Folha de S. Paulo de 05 de junho de 2018
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