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Crise hídrica e o fantasma do racionamento revelam o preço do negacionismo

Por Lúcia Müzell – Rfi – 1 de setembro de 2021 – A seca histórica no país, a mais grave em pelo menos 91 anos, leva os reservatórios do Sudeste e do Centro-Oeste a operarem com 23% da capacidade de armazenamento – o nível mais baixo em 20 anos, quando o país sofreu um grave racionamento de energia. © Marcelo Camargo/ Agência Brasil

No momento em que o Brasil enfrenta altas consecutivas dos preços da energia elétrica e o risco de faltar luz nos próximos meses, especialistas no setor repetem: eu avisei.

Há mais de 10 anos, o problema da dependência do país das hidrelétricas é conhecido, mas ignorado.

Pelo contrário, o descontrole do desmatamento acelera uma das consequências mais palpáveis das mudanças climáticas no Brasil, a redução do regime de chuvas – cruciais para a geração da energia.
O clima está se tornando mais seco nas regiões que, até pouco tempo atrás, eram garantia de usinas rodando a pleno vapor, inclusive no Sudeste.

O professor de planejamento energético da UFRJ Roberto Schaeffer já alertava há muito tempo sobre os riscos.

“Em 2007, a gente já falava: Brasil, cuidado. Essas novas hidrelétricas não vão gerar a energia que estão prometendo, porque elas estão baseadas em históricos de pluviosidade e de rios que os estudos que o Brasil tem feito, projetando o futuro, mostram que não irão se repetir.

Há uma tendência de a região Norte se tornar mais seca, do Norte e do Nordeste saírem de uma situação se semiárido para se tornar um deserto”, afirma Schaeffer, que é membro do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU).

“A gente já chamava atenção para o fato de que as hidrelétricas, com o passar do tempo, se tornariam menos confiáveis e teríamos que preparar o sistema elétrico brasileiro para isso.”

A seca histórica no país, a mais grave em pelo menos 91 anos, leva os reservatórios do Sudeste e do Centro-Oeste a operarem com 23% da capacidade de armazenamento – o nível mais baixo em 20 anos, quando o país sofreu um grave racionamento de energia.

As previsões não são nada animadoras – a estiagem deve fazer com que as hidrelétricas operem com apenas 10% da capacidade em novembro.

A campanha de economia de luz é a solução que restou, diante de uma falta de planejamento energético que já vinha antes mesmo de o clima se degradar, ressalta Roberto Pereira d’Araújo, diretor do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico (Ilumina).

A campanha de economia de luz é a solução que restou, diante de uma falta de planejamento energético que já vinha antes mesmo de o clima se degradar, ressalta Roberto Pereira d’Araújo, diretor do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico (Ilumina). © Fernando Frazão/Agência Brasil

“Ficamos muito reféns do clima e com as mudanças climáticas, a imprevisibilidade é gigantesca – tanto que essa crise de agora também está ocorrendo não só no Brasil, como no Chile, na Califórnia”, comenta Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE).

“O que os estudos mais recentes mostram é que o que realmente custa dinheiro é não fazer nada. Faltar energia elétrica no Brasil neste ano custa mais do que qualquer plano possível de controle de desmatamento”, complementa Schaeffer.

Luz tem aumento três vezes superior ao da inflação

A crise hídrica leva o governo brasileiro a acionar as usinas térmicas a carvão e a importar energia de países vizinhos – o que torna o preço da luz ainda mais alto, quase três vezes superior ao aumento da inflação desde janeiro. Atualmente, um terço da energia consumida no país vem das termelétricas.

A campanha de economia de luz é a solução que restou, diante de uma falta de planejamento energético que já vinha antes mesmo de o clima se degradar, ressalta Roberto Pereira d’Araújo, diretor do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico (Ilumina).

Assim como Adriano Pires, ele avalia que os apagões nos próximos meses serão quase inevitáveis.

“Se você pegar dados de 1950 e colocá-los no sistema atual, nós estaríamos na mesma situação. O que não ocorreu foi investimento. E não tendo investimento, o jeito é pedir para o consumidor consumir menos”, sublinha Araújo. “Se tivesse outras hidrelétricas captando energia de outros rios, que não estão sendo usados, não estaríamos com os reservatórios caindo”, diz o diretor do Iumina.

De olho na eleição

Mais preocupado com a reeleição, o presidente Jair Bolsonaro hesitou até o limite para reconhecer a crise e incitar os brasileiros a economizarem energia.

“Do ponto de vista técnico, o correto hoje seria decretar um racionamento, de 8 a 10% da carga. Mas o governo não consegue fazer isso porque acha que faria com que Bolsonaro perca, definitivamente, a eleição”, diz Adriano Pires. “Mas não tem jeito: a energia vai continuar cara e vai ser uma das principais responsáveis pelo crescimento da inflação brasileira, que está disparando”, esclarece.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, minimizou a situação, ao questionar “qual é o problema de a energia ficar um pouco mais cara”.

O clima de incertezas, porém, não ajuda em nada à recuperação da economia, num efeito cascata.

Para a indústria, a conta de luz é uma das que mais pesam nas despesas da produção.

“A indústria estava num momento de retomada do crescimento, com todo mundo querendo comprar automóvel, geladeira.

Havia uma demanda reprimida muito grande em função da pandemia em 2020.

Se pegarmos o exemplo de 2001-2002, o racionamento causou uma perda de PIB de 2 a 3 pontos”, frisa Pires.

Para as famílias, que já enfrentam a alta da inflação, a energia mais cara significa menos consumo de bens e serviços.

“Se você compara a tarifa brasileira com outros países, nós já somos os vice-campeões: só perdemos para a Alemanha”, ressalta Araújo.

“Com os aumentos que vão ocorrer, nós vamos com certeza ultrapassar a Alemanha, o que é um vexame total. Como pode o Brasil, com vento, sol, rios, ter a tarifa mais cara do mundo – e nem é por impostos”, salienta.

Um relatório inédito divulgado em agosto pelo MapBiomas apontou que a água doce disponível para o consumo no Brasil vem desaparecendo num ritmo assustador: 15,7% acabou nos últimos 35 anos, uma consequência do processo de desertificação por que passam biomas como o amazônico.

 

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