Por Jean Silva* - Jornal da USP - 1 de novembro de 2024 - Tucuruvi,…
De proteção contra substância cancerígena a ‘demissão em massa’, os efeitos da proibição do amianto
Caixas d’água de amianto são muito comuns nas residências brasileiras | Foto: Wilson Dias/Arquivo Agência Brasil
O Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu nesta quarta-feira a extração, industrialização, comercialização e distribuição de todos os tipos de amianto no país. Com isso, encerra-se um longo debate jurídico sobre o material, comum em telhados do Brasil e cujos fragmentos podem liberar no ambiente elementos cancerígenos, facilmente inaláveis.
No julgamento, os ministros do STF declararam inconstitucional o artigo de uma lei federal que autorizava o amianto do tipo crisotila – outro tipo, o anfibólio, já era proibido desde 1995.
Os ministros já haviam se posicionado contra os interesses da indústria do amianto em agosto, mas agora a decisão tem efeito vinculante. Ou seja, tribunais são orientados a seguir posição da Corte quando confrontados com questionamentos semelhantes.
“A utilização do amianto ofende postulados constitucionais e, por isso, não pode ser objeto de normas autorizativas”, declarou o ministro Celso de Mello, em referência aos artigos que protegem a saúde do cidadão e o meio ambiente.
“Foi um dia muito especial. Há tanto tempo nós esperamos por isso. Estou recebendo ligações de familiares de vítimas, confortados de que foi reconhecida a gravidade do amianto”, afirmou a ex-auditora do Ministério Público do Trabalho Fernanda Giannasi, que atuou em fiscalizações na indústria do amianto por 30 anos.
“Essa decisão vai ter impacto no mercado global, vai ser um efeito dominó. Se um país produtor, como o Brasil, é capaz de tomar uma decisão dessas, por que não seria seguido por aqueles países que só compram o amianto?”, questiona Giannasi.
“Não há a menor possibilidade de que uma lei estadual permitindo o amianto possa ser declarada constitucional. Se havia alguma dúvida no julgamento anterior, agora não há mais”, comenta Mauro Menezes, advogado da associação dos expostos ao amianto. “A proibição de utilização de qualquer forma de amianto, em qualquer lugar do Brasil, fica impregnada nos votos dos ministros.”
Já representantes da cadeia do amianto argumentaram que a decisão significaria a demissão de centenas de trabalhadores. Afirmavam também que interromper a mineração abruptamente, ao sabor da decisão judicial, não seria simples. O berço do amianto brasileiro é a pequena cidade de Minaçu, norte de Goiás.
O prefeito da cidade, Agenor Nick Barbosa (DEM), soube do resultado do julgamento pela reportagem da BBC Brasil.
“Se a proibição acontecer mesmo, será a pior coisa para Minaçu. Aqui, 60% da arrecadação da prefeitura vem do amianto. Vamos perder uma renda absurda, vai ser um acontecimento catastrófico. Somos uma cidade com 31 mil habitantes, aqui não tem agricultura, pecuária, nada. Vamos ter que começar do zero. Era preciso ter um período de transição, para o município se preparar”, lamentou.
A BBC Brasil não conseguiu falar com o Instituto Brasileiro do Crisotila.
Alguns Estados e municípios já haviam banido todas as formas de amianto porque consideram inseguro todo tipo de manipulação do material. É o caso de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Pernambuco. A maioria das ações analisadas no STF haviam sido propostas pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), que se opõe à proibição imposta por leis estaduais. O argumento, derrubado pelo STF, era de que os Estados não poderiam legislar sobre esse tema.
Controverso
O amianto é alvo de grande polêmica. Fibra mineral sedosa, é usado principalmente na fabricação de telhas e largamente empregado em residências populares. O setor do amianto calcula que metade das casas brasileiras tenham telhas de amianto. O país está entre os três maiores produtores do mundo.
Em agosto, poucos dias antes da retomada do julgamento, o Ministério Público do Trabalho (MPT) flagrou diversas telhas quebradas, envoltas em poeira, em uma fábrica da Bahia. Nelas, ainda era possível ler a inscrição obrigatória: “Contém amianto: ao cortar ou furar, não respire a poeira gerada, pois pode prejudicar gravemente a saúde”. A imagem, fotografada em 2 de agosto, é a prova de uma irregularidade, segundo o órgão.
“Hoje, o que se observa é um consenso em torno da natureza altamente cancerígena do mineral e da inviabilidade de seu uso de forma efetivamente segura”, disse em sessão prévia o ministro do STF Dias Toffoli.
Por um lado, organizações de saúde pública, como o Instituto Nacional de Câncer e a Fundação Oswaldo Cruz, propagam os riscos para a saúde em decorrência da exploração do amianto. Em 61 países, o uso do material já foi banido, justamente pela falta de segurança.
Já a cadeia do amianto afirma que a variedade produzida no Brasil oferece menos riscos e é trabalhada com alto padrão de segurança. O argumento é de que uma proibição à produção e comercialização traria sérios prejuízos.
“A decisão a ser tomada pelo STF terá enorme impacto sobre uma atividade que envolve 170 mil empregos, diretos e indiretos, em todo o território nacional”, afirmou em nota o Instituto Brasileiro do Crisotila, um dos subtipos de amianto, em agosto.
Mina grande
Em tupi-guarani, açu significa grande. O nome da cidade de Minaçu vem a calhar, já que ali está a maior jazida de amianto da América Latina, em operação desde a década de 1960.
Toda a produção nacional tem origem no município e abastece fábricas brasileiras e também países como Índia, Indonésia e Colômbia. Só este ano, foram vendidas para o exterior 60 mil toneladas de amianto, por um valor de US$ 31 milhões.
“Se não houvesse essa mina no Brasil, tenho certeza de que o amianto já estaria banido no país. Mas essa jazida ainda tem potencial de produzir por muitas décadas”, afirma o procurador Luciano Leivas, gerente do Programa Nacional pelo Banimento do Amianto do Ministério Público do Trabalho.
Vista de satélite da mina de amianto de Minaçu, Goiás, a única em operação no Brasil e uma das maiores do mundo | Foto: Google Earth/2017 CNES Airbus
A decisão deixa Minaçu em situação delicada. Giannasi atribui a culpa a políticos locais e agentes ligados ao setor: “Eles nunca fizeram nada para que a cidade deixasse de girar em torno de um único ingrediente. O impacto vai ser grande, mas não por falta de aviso. Poderia ter havido um trabalho conjunto para que trabalhadores tivessem sido absorvidos por outras áreas.”
O prefeito de Minaçu está preocupado. “Eu trabalhei na fábrica de amianto por 16 anos. Moro aqui em Minaçu. E até hoje não tive nenhum problema. O Brasil diz que quer ajudar o povo com emprego e toma uma decisão dessa, que vai demitir tanta gente. Sem o dinheiro do amianto, Minaçu não tem recursos para fazer o hospital funcionar”, afirma Barbosa.
Apesar da grandeza da mina, o amianto não está entre os principais produtos de exportação do Brasil. Este ano, ocupa a posição 251 do ranking de vendas ao exterior, segundo dados do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviço. Sua importância econômica é local, para Goiás e Minaçu.
Já o número de fábricas que usam o amianto no Brasil está em queda. Hoje, restam apenas dois grupos principais. O maior é o Eternit, proprietário da unidade vistoriada na Bahia recentemente e também da mina de Goiás. A empresa informou que não se pronunciará sobre o assunto.
Segundo Leivas, “o resultado dessa inspeção mostra que é materialmente impossível realizar gestão segura de uma substância que libera fibras invisíveis e cancerígenas”.
As demais companhias ou deixaram de operar ou substituíram o amianto por outras matérias-primas.
Depois de ser extraído em Minaçu e processado industrialmente, o amianto chega para trabalhadores da construção civil. E apesar do aviso de perigo impresso nos produtos, há quem não respeite os procedimentos de segurança recomendados – no YouTube, há diversos vídeos de pessoas cortando telhas de amianto sem proteção adequada.
“Aqui é vida real”, diz um pedreiro em um dos vídeos, enquanto corta uma telha de amianto, liberando muita poeira. Uma camiseta tapa o nariz e a boca. “Tá todo mundo mascarado”, brinca a pessoa que está filmando. Em seguida, o trabalhador alerta o câmera: “Cuidado com essa poeira, que dá câncer, pô. Sai para lá, é sério. Amianto é altamente prejudicial”.
Julgamento
No Brasil, é proibido produzir e comercializar amianto de tipo anfibólio, desde 1995. Já a variedade crisotila era liberada, desde que fossem seguidas determinadas normas de segurança.
“O que quero mesmo é que o Supremo decida de uma vez por todas. Feito isso, para mim tá resolvido. Estou louco para me ver livre disso”, afirmou José Calixto Ramos, presidente da CNTI, para a BBC Brasil, em agosto. Ele não foi encontrado para comentar a nova decisão do STF.
Segundo o setor, o material é “importantíssimo para a construção civil por não ser inflamável, ter resistência mecânica superior a do aço, grande durabilidade, ser um excelente isolante térmico”.
Câncer
A Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (Iarc, na sigla em inglês), ligada à Organização Mundial de Saúde (OMS), afirma que “todas as formas de amianto são cancerígenas”.
O principal câncer relacionado ao amianto é o mesotelioma, que acomete membranas que revestem órgãos como o pulmão. É uma doença rara, que pode demorar até 40 anos para se manifestar a partir da exposição ao amianto e que mata em cerca de um ano.
O diagnóstico é muito difícil. Entre 1980 a 2010, ocorreram 3,7 mil mortes por mesotelioma no Brasil, segundo estudo do médico sanitarista Francisco Pedra, da Fiocruz.
Além disso, a Iarc também relaciona o amianto a câncer de pulmão, laringe e ovário.
“Essa agência da OMS faz um levantamento de todos os artigos científicos existentes. Quando atesta que um agente é cancerígeno, é porque existem evidências científicas consistentes”, aponta Ubirani Otero, epidemiologista do Instituto Nacional de Câncer (Inca), ligado ao Ministério da Saúde.
Além de câncer, o amianto é relacionado à asbestose, uma doença que pode provocar enrijecimento no pulmão e dificuldade respiratória.
França, Alemanha, Inglaterra, Itália, Espanha, Portugal, Japão, Austrália estão entre os países que baniram a substância. Vizinhos sul-americanos do Brasil também estão na lista: Argentina, Chile, Uruguai. Por outro lado, há quem permita o mineral, como Estados Unidos e Canadá.
“Esse tema sempre foi tratado de forma muito maniqueísta, com os defensores do banimento fazendo questão de difundir o medo, espalhando a ideia de que o amianto mata e que não é possível se fazer uso seguro dele”, defendeu o presidente do Instituto Brasileiro do Crisotila, Marcondes Braga de Moraes, em entrevista para a BBC Brasil em agosto.
“Como aconteceu com tantos outros produtos no passado, é possível, sim, utilizar corretamente o amianto. O Brasil tornou-se referência mundial nesse sentindo, relegando ao passado os casos de adoecimento de trabalhadores por exposição ao mineral”, completou Moraes.
Inspeção em fábrica baiana encontrou telhas de amianto quebradas dias antes de julgamento sobre o tema no STF | Foto: Ministério Público do Trabalho
Nos telhados brasileiros
Quem trabalha na cadeia do amianto corre mais risco, por estar mais suscetível à inalação da poeira. Mas especialistas ouvidos pela BBC Brasil afirmam que a população em geral também está exposta, devido à grande presença da substância nas cidades brasileiras.
“Não existe nível seguro de exposição, todo cuidado é pouco”, diz Ubirani, do Inca.
“A telha intacta não traz problema. É a fibra solta, que pode ser inalada, que oferece risco para a saúde. O problema é que há muito produto de amianto espalhado. A indústria pode controlar o ambiente de produção. Mas e na sociedade? O trabalhador da construção civil pode liberar fibra de amianto se lixar ou cortar aquela telha”, explica Rubia Kuno, gerente de toxicologia e saúde ambiental da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo, que baniu o amianto em 2007.
“A caixa d’água e o telhado estão quietinhos lá. O risco de liberar fibra é menor. Mas em algum momento a caixa d’água pode ser esfregada, pode haver uma reforma no telhado de amianto, pode ocorrer algum acidente que rompa a telha, como inundação, desabamento, colisão de veículo”, complementa Francisco Pedra, da Fiocruz.
Segundo especialistas, quem possui caixa d’água de amianto ou telha de amianto não deve removê-las por conta própria. Em alguns países europeus, por exemplo, a retirada de materiais assim é feita por equipes especializadas, com equipamento de proteção.
Já o Instituto Brasileiro do Crisotila tenta tranquilizar: “As telhas de amianto são usadas no Brasil há quase cem anos. Mais da metade das casas do país têm telhas com esta fibra. Ninguém nunca ficou doente por morar em uma casa com telha ou caixa d’água de amianto”.
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