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Deslocalização agrícola – Agricultores africanos são desalojados de suas terras tradicionais

Terras africanas muitas vezes dão frutos para os outros – Meia dúzia de estrangeiros baixaram nesta remota aldeia da África Ocidental com notícias alarmantes aos agricultores de subsistência do lugar: seus campos humildes, trabalhados de geração a geração, agora serão controlados pelo líder da Líbia, o coronel Muamar Kadafi, e os lavradores terão que partir.

“Eles nos disseram que esta seria a última temporada de chuvas para nós cultivarmos nossos campos; depois disso, vão derrubar todas as casas e tomar a terra”, disse Mama Keita, 73, líder desta aldeia escondida por trás de um cerrado espinhoso e denso. “Disseram que agora essas terras são de Kadafi”.

Na África e no mundo em desenvolvimento, uma nova corrida mundial em busca de terras aráveis está engolindo grandes territórios. Apesar de suas tradições eternas, os aldeões estupefatos estão descobrindo que os governos africanos em geral são donos de sua terra e a estão emprestando, muitas vezes por barganhas, para investidores e governo estrangeiros por décadas por vir. Reportagem de Neil MacFarquhar, em The New York Times.

Organizações como a ONU e o Banco Mundial dizem que a prática, se for desenvolvida com equanimidade, pode ajudar a alimentar a população mundial crescente introduzindo cultivos comerciais de larga escala onde não existe.

Outros, porém, criticam os contratos e os consideram uma usurpação neocolonial das terras, que destrói aldeias, desaloja milhares de lavradores de suas raízes e cria uma massa volátil de pobres sem terra. Para piorar, alegam, grande parte do alimento destina-se a nações mais ricas.

“A segurança alimentar do país em questão deve estar em primeiro lugar na mente de todos”, disse Kofi Annan, ex-secretário-geral da ONU, hoje trabalhando na questão da agricultura africana. “De outra forma, é exploração simples e direta e não vai funcionar. Vimos uma disputa pela África antes. E não acho que queremos ver uma segunda disputa do gênero.”

Um estudo do Banco Mundial divulgado em setembro contabilizou que, apenas nos 11 primeiros meses de 2009, os arrendamentos de terras anunciados cobriram pelo menos 44 milhões de hectares –o tamanho da Califórnia e da Virgínia Ocidental juntas. Mais de 70% desses contratos eram na África, com Sudão, Moçambique e Etiópia entre as nações que transferem milhões de quilômetros quadrados aos investidores.

Antes de 2008, a média global desses contratos era de menos de 4 milhões de hectares por ano, disse o relatório. Mas a crise alimentar daquela primavera, que gerou conflitos em ao menos uma dúzia de países, gerou a corrida por terras. A perspectiva de escassez futura atraiu governos ricos sem terras aráveis necessárias para alimentar seu povo e fundos atraídos a uma commodity cada vez mais rara.

“Vemos que o interesse em aquisição de terra continua em nível muito alto”, disse Klaus Deininger, economista do Banco Mundial que escreveu o relatório, pegando muitos números de um site da organização Grain, porque os governos não revelam seus contratos. “Claramente, isso não acabou”.

O relatório, apesar de em geral apoiar os investimentos, detalhou resultados conflitantes. A ajuda exterior para a agricultura diminuiu de cerca de 20% de toda a ajuda em 1980 para cerca de 5% hoje, criando a necessidade de outros investimentos para reforçar a produção.

Muitos investimentos, porém, parecem ser pura especulação que deixa a terra vazia, segundo o relatório. Os lavradores foram removidos sem compensação; a terra foi arrendada bem abaixo do valor; aqueles que foram expulsos acabam avançando sobre parques e os novos empreendimentos criaram menos empregos do que prometido, disse.

O tamanho de tirar o fôlego de alguns contratos galvaniza os oponentes. Em Madagascar, um acordo que deu quase metade da terra arável do país para um conglomerado sul-coreano ajudou a cristalizar a oposição a um presidente já impopular e contribuiu para sua derrubada em 2009.

As pessoas foram empurradas para fora da terra em países como Etiópia, Uganda, República Democrática do Congo, Libéria e Zâmbia. Não é incomum os investidores chegarem a terras que estariam supostamente vazias. Em Moçambique, uma empresa de investimento descobriu uma vila inteira, com sua própria agência de correio, no que foi descrito como terra vaga, disse Olivier de Schutter, da ONU. Em Mali, cerca de 1,2 milhão de hectares ao longo do rio Níger e seu delta são controlados para um fundo estatal chamado Escritório do Níger. Em quase 80 anos, somente 80.000 hectares da terra foram irrigados, então o governo considera novos investidores como um impulso.

“Mesmo que você desse a terra à população, eles não teriam os meios de desenvolvê-la, nem o Estado”, disse Abou Sow, diretor executivo do escritório do Níger.

Ele listou países cujos governos ou setores privados já fizeram investimentos ou expressaram interesse: China e África do Sul na cana de açúcar; Líbia e Arábia Saudita no arroz; e Canadá, Bélgica e França, Coreia do Sul, Índia, Holanda e organizações multinacionais como o Banco de Desenvolvimento da África Ocidental.

Ao todo, Sow disse que cerca de 60 contratos cobriram ao menos 242.000 hectares em Mali, apesar de algumas organizações terem dito que mais de 400.000 hectares tinham sido comprometidos. Ele argumentou que a maior parte dos investidores era malinesa que plantavam alimentos para o mercado interno. Mas admitiu que investidores estrangeiros como líbios estão arrendando 101.000 hectares aqui e devem enviar o arroz, carne e outros produtos agrícolas para casa.

“Que vantagens eles teriam de investir em Mali se não pudessem levar sua própria produção?”, perguntou Sow. Como em muitos dos contratos, o dinheiro que Mali ganhará com o arrendamento continua incerto. O contrato assinado com os líbios garante a eles a terra por ao menos 50 anos simplesmente em troca de seu desenvolvimento.

“Os líbios querem produzir arroz para os líbios, não para os malineses”, disse Mamadou Goita, diretor da organização sem fins lucrativos em Mali.

Ele e outros oponentes alegam que o governo está privatizando um recurso nacional escasso sem melhorar a oferta de alimentos interna, e que a política, e não a economia, está movendo os eventos, porque Mali quer melhorar seus laços com a Líbia e outros países.

Os enormes trechos cedidos aos investidores privados estão longe de ser produtivos. As autoridades, porém, observaram que a Líbia já gastou mais de US$ 50 milhões construindo um canal e uma estrada de 38 km, construídos por uma empresa chinesa, beneficiando as aldeias locais.

Cada colono afetado, inclusive os 20.000 atingidos pelo projeto líbio, acrescentou Sow, vão receber compensação.

“Se perderem uma única árvore, vamos pagar a eles o valor da árvore”, disse ele.

Mas a ira e a desconfiança estão altas. Em um comício no mês passado, centenas de agricultores exigiram que o governo parasse de realizar tais contratos até que tivessem uma voz. Vários disseram que tinham sido surrados e presos por soldados, mas que estavam dispostos a lutar para manter sua terra.

“A fome vai começar em breve”, gritou Ibrahima Coulibaly, chefe do comitê coordenador de organizações agrícolas em Mali. “Se as pessoas não defenderem seus direitos, vão perder tudo!”

“Ante!”, membros da multidão gritavam em bamanankan, a língua local. “Recusamo-nos”.

Kassou Denon, diretor regional do Escritório do Níger, acusou os oponentes malineses de serem pagos por grupos ocidentais que são ideologicamente opostos à agricultura de larga escala.

“Somos responsáveis pelo desenvolvimento de Mali”, disse ele. “Se a sociedade civil não concorda com a forma que vamos fazer isso, que vá plantar batatas.”

O problema, segundos os especialistas, é que Mali continua sendo uma sociedade agrária. Expulsar os trabalhadores rurais da terra sem um meio de vida alternativo arrisca inchar a capital, Bamako, com pessoas desempregadas, pessoas sem raízes que podem se tornar um problema político.

“A terra é um recurso natural que 70% da população usa para sobreviver”, disse Kalfo Sanogo, economista do Fundo de Desenvolvimento da ONU em Mali. “Você não pode empurrar 70% da população para fora da terra, nem pode dizer que podem se tornar trabalhadores agrícolas”. Em uma abordagem diferente, um projeto americano de US$ 224 milhões vai ajudar cerca de 800 lavradores malineses a adquirir título de 5 hectares de terra recém limpa, protegendo-os contra a expulsão.

Jon C. Anderson, diretor do projeto, argumentou que nenhum país se desenvolveu economicamente com uma grande percentagem de sua população em fazendas. Pequenos agricultores com títulos da terra, se não tiverem sucesso terão que vender a terra para financiar outro tipo de vida, disse ele, apesar dos críticos dizerem que os aldeões ainda serão desalojados.

“Queremos um relacionamento revolucionário entre o lavrador e o Estado, no qual o lavrador tenha mais controle”, disse Anderson.

Soumouni fica cerca de 30 km da estrada mais próxima, com pastores errantes de chapéu pontudo dando informações como: “Quando chegar ao cupinzeiro com um buraco, vire à direita”.

Sekou Traore, 69, ancião da aldeia, ficou chocado quando as autoridades disseram, no ano passado, que a Líbia agora controlava aquela terra e começaram a medir os campos. Ele sempre tinha considerado aquele campo seu, passado de avô para pai para filho.

“Só o que queremos antes de quebrarem nossas casas e tomarem nossos campos é que nos mostrem as novas casas onde vamos morar e os novos campos onde vamos trabalhar”, disse ele no comício no mês passado. “Temos tanto medo”, disse ele sobre os 2.229 moradores da aldeia. “Seremos vítimas dessa situação, temos certeza disso.”

Fonte – Reportagem African Farmers Displaced as Investors Move In do New York Times / UOL Notícias / Ecodebate de 03 de janeiro de 2011 / Tradução de Deborah Weinberg

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