Por Ana Flávia Pilar - O Globo - 11 de novembro de 2024 - Com modelo…
Economia circular: quando o lixo é fonte de lucro
Em 2008, Mark Bowles, de San Diego, 48 anos com o rosto de um menino, teve uma ideia ao conversar com um amigo: por que não pagar aos consumidores que decidissem abrir mão do seu celular em desuso para que fosse recondicionado, reciclado e revendido? Na época, apenas 3% dos dispositivos no mundo eram reciclados. No entanto, os celulares, como se sabe, contêm materiais tóxicos, tais como arsênio, lítio, cádmio, mercúrio e zinco. Assim, Mark teve a ideia de criar alguns quiosques de reciclagem por todos os Estados Unidos.
Locais equipados com um sistema de inteligência artificial, capaz de escanear e avaliar mais de quatro mil modelos e emitir um orçamento que o cliente podia aceitar ou não: de um a 300 dólares. Nasceram assim as ecoATM, os caixas eletrônicos da reciclagem, que, até o dia 31 de julho de 2014, recuperaram em todo o país 250 toneladas de dispositivos, 30 toneladas de cobre (o suficiente para construir outra Estátua da Liberdade) e 700 quilos de prata (o suficiente para cunhar 22.540 moedas de um dólar).
Procedimentos semelhantes hoje são adotados também pelos gigantes hi-tech como a Apple, mas Mark talvez não soubesse que a sua ideia trazia a data até mesmo do século XVIII: em 1798, Thomas Malthus publicou um ensaio considerado como uma das bases da economia circular. Em 1931, foi a vez do economista Harold Hotelling, que escreveu sobre “produtos econômicos demais, explorados egoisticamente em um ritmo excessivo, e produzidos e consumidos de modo a gerar muitos resíduos”. Não soa familiar?
A economia do “pegar, produzir e jogar fora”
No entanto, a economia baseada nos princípios do “pegar, produzir, jogar fora” continuou reinando incontestável por anos em todo o mundo ocidental. Mas o desenvolvimento econômico como o conhecemos está destinado a entrar em rota de colisão com a disponibilidade de recursos e com um número: o mundo está inundado por 11 bilhões de toneladas de resíduos, e apenas 25% são recuperados e reinseridos no sistema produtivo.
O resto – como explica bem o livro Circular Economy, dallo spreco al valore, Edições Egea, 2016 – é uma oportunidade perdida que enche as latas de lixo e entope os aterros. Por um valor anual perdido que pode chegar até a um bilhão de dólares (300 para os resíduos urbanos, 700 para os industriais).
Quem sabe muito bem disso são os cidadãos de Capannori, 46 mil habitantes, na província de Lucca, que aderiram há anos à estratégia “Lixo zero”, junto com outros 223 municípios de toda a Itália com mais de quatro milhões de habitantes envolvidos. O objetivo: coleta seletiva em grande escala, com percentuais superiores a 70%, reutilização e reparação dos resíduos, serviços públicos pagos com base na produção efetiva dos resíduos. E eles também não são os únicos.
Onde a coleta seletiva é de 90%
“Infelizmente, no imaginário coletivo, a Itália ainda é o país dos aterros, das emergências do lixo e das imagens chocantes da imundície em Nápoles”, explica Stefano Ciafani, diretor geral da Legambiente. “Em vez disso, deixamos para trás essas épocas vergonhosas, e hoje o nosso país pode contar com 1.500 municípios onde vivem mais de 10 milhões de habitantes, onde a coleta seletiva supera os 65%.”
Em 2015, o município vencedor foi Ponte nelle Alpi, cidadezinha de 8.500 habitantes, perto de Belluno. Ele passou pelo projeto de transformar uma antiga pedreira em um aterro sanitário de um milhão de toneladas de lixo por ano, tornando-se o vilarejo italiano mais virtuoso onde a coleta seletiva chega a taxas próximas de 90%. Um sonho? Não exatamente.
A surpresa do Sul
Se é verdade que os municípios italianos são pouco mais de 8.000, e apenas 1.500 participam da iniciativa Legambiente, é igualmente verdade que, de acordo com o último relatório do Instituto Superior para a Proteção e a Pesquisa sobre o Ambiente, entre 2011 e 2013, a Itália conseguiu reduzir em 6,9% os resíduos destinados ao aterro. E, de acordo com o Eurostat, a taxa de reciclagem da Itália passou de 17,6% em 2004 para 42,5% em 2014.
“No fim dos anos 1990, nós reciclávamos 5% dos resíduos urbanos – acrescenta Stefano Ciafani – e chegamos a multiplicar por oito a taxa de reciclagem em menos de 20 anos.”
Com casos particularmente virtuosos e algumas surpresas. De acordo com a Legambiente, todas as regiões, excepto o Val d’Aosta, podem se orgulhar de um município como exemplo virtuoso de boa gestão do serviço de coleta e de envio à reciclagem.
Mas as regiões do Norte da Itália não brilham mais como antes: a Lombardia e o Piemonte, por exemplo, “são abundantemente ultrapassadas pelas Marche e pela Campânia e pisoteadas pela Umbria”. E a maior surpresa é precisamente a Campânia, onde a maioria dos municípios se aproxima do limiar de coleta seletiva de 65%, com a exceção quase única da capital.
“Nápoles tem números interessantes em relação ao passado – explica Walter Facciotto, diretor-geral do CONAI, Consórcio Nacional de Embalagens –, mas ainda tem um longo caminho a fazer. Em vez disso, municípios como Bari, Catanzaro, Potenza, Matera começaram a realizar sistemas de coleta qualitativa. Em Catânia, em alguns bairros, no arco de alguns meses, passou-se de 11% para 60% de coleta seletiva. Não se trata – detalha Facciotto – de um problema cultural, mas de organização e vontade política.” E de retorno econômico. Porque a retórica ambientalista, por anos, produziu uma discreta indiferença sobre a ação prática dos consumidores.
Cascas de laranja que se tornam tecidos
“Hoje, ao contrário, por um lado, as empresas perceberam que a economia circular traz uma clara vantagem em termos de custos – explica Beatrice Lamonica, responsável pela prática de sustentabilidade da Accenture Strategy – e, por outro lado, os usuários finais mudaram de abordagem em relação ao consumo e agora, mais do que a posse, por exemplo, pensam na partilha de alguns serviços e produtos, o que também permite poupar.”
Como no fenômeno da sharing economy, em que o princípio da propriedade cede espaço ao desempenho e à utilidade. Mas falar de economia circular significa, acima de tudo, falar de resíduos que se tornam recursos. Também através da criatividade.
É o caso de dois italianos, Antonio Di Giovanni e Vincenzo Sangiovanni, que iniciaram uma start-up para produzir cogumelos a partir das borras de café, com o investimento de um empresário japonês, Tomohiro Sato.
Ou o caso das sicilianas Enrica Arena e Adriana Santanocito, nos arredores de Milão, que ficaram conhecidas em todo o mundo pelos seus tecidos criados a partir dos restos de laranjas e limões e, com a sua Orange Fiber, foram premiadas até pelas Nações Unidas.
E o compromisso de estender a vida útil dos produtos também vem dos grandes grupos. O Starbucks lançou em Tóquio um experimento com uma empresa japonesa: não sabendo o que fazer com as borras de café descartadas nas suas lojas, em vez de se limitar à compostagem, decidiu transformá-las em alimento para as vacas. Desse modo, os animais produzem leite de maior qualidade. O mesmo leite que, depois, é utilizado nas lojas Starbucks de todo o Japão.
A Procter & Gamble e a General Motors já operam com base em um modelo de lixo zero, e todos os resíduos produtivos gerados nas suas sedes são reciclados, reutilizados para outros usos ou transformados em energia.
A Timberland assinou uma parceria com uma empresa, a Omni United, que desenvolve uma linha de pneus estudados para serem regenerados no fim do ciclo de vida útil e transformados em solas de sapato.
A primeira usina de reciclagem de fraldas
Mas não é preciso ir até o Japão ou aos Estados Unidos para encontrar bons exemplos de “circular economy”. Em Spresiano, na província de Treviso, nasceu a primeira usina europeia de reciclagem de fraldas, a partir das quais é possível criar plástico em grânulos e matéria orgânico-celulósica completamente esterilizada.
Como? Lavando e esterilizando-as por meio de vapor a pressão, que elimina também o mau cheiro. O tratamento permite a obtenção de matérias-primas secundárias para reutilização em novos processos produtivos.
O projeto, cofinanciado pela União Europeia, está sendo desenvolvido pela Fater (Pampers, Lines, Tampax). E hoje, a partir de uma tonelada de resíduos, conseguem-se obter até 350 quilos de celulose e 150 quilos de plástico.
A Aquafil, empresa líder de Trento na produção de fibras sintéticas, recupera redes de pesca no fim do uso e produz o nylon com que é realizada uma linha de jeans da Levi’s. Embora o algodão seja a principal matéria-prima para a produção do denim, no futuro, não haverá terra disponível suficiente para atender a demanda crescente. E as empresas estão lentamente buscando alternativas: daí a parceria Aquafil Levi’s para o uso de fibras diferentes, como o nylon.
“Com uma vantagem tripla – explica Lamonica, uma das autoras do livro Circular Economy –, reduzem-se os resíduos no mar, onde muitas redes são abandonadas no fim do uso, economiza-se no custo do descarte em aterros e utilizam-se tecidos menos poluentes.”
Fonte – Reportagem Corinna De Cesare, tradução Moisés Sbardelotto, jornal Corriere della Sera / IHU de 06 de junho 2016
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