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Eles sabiam

Capa do relatório “Fontes, Abundância e Destino de Poluentes Atmosféricos Gasosos”, de 1968. Fonte: https://www.smokeandfumes.org

A rede de computadores anda infestada pelas chamadas “teorias de conspiração”. Muitas delas são apenas histórias sem pé nem cabeça. Outras são mentiras plantadas com interesses bastante específicos, como o caso de um certo presidente de topete estranho afirmando que “o aquecimento global é uma farsa inventada pelos chineses”. O problema dessas “teorias” (usado de maneira imprópria, pois nada tem a ver com o uso da palavra nas ciências) é duplo: se as pessoas levam a sério as mentiras, podem ignorar evidências reais ou até militar por causas inexistentes; se dão de ombros para qualquer suposta conspiração, afinal a maior parte é pura invencionice mesmo, podem terminar não dando a devida atenção aos (raríssimos) casos em que uma conspiração (ou algo parecido) realmente exista.

Neste artigo falaremos rapidamente de um desses casos raros de conspiração real: como a indústria de combustíveis fósseis sabia há décadas dos riscos do aquecimento global e como ela adotou a opção consciente pelo lucro e acumulação.

Sabe-se que a provável relação entre clima e concentração de CO2 é conhecida desde o século XIX e que já na década de 1930 surgiram evidências observadas de que a queima de combustíveis fósseis estaria contribuindo para aquecer o planeta.

Principais responsáveis pela extração, processamento e queima desses combustíveis, a mudança climática já estava no radar das grandes corporações petroquímicas há muito tempo, na verdade muito antes de a Organização das Nações Unidas convocar especialistas para comporem um painel sobre o tema (o IPCC, criado em 1988).

Com efeito, há quase meio século, em 1968, por encomenda do American Petroleum Institute (AIP), um relatório preparado por pesquisadores do Instituto de Pesquisa Stanford alertava que “a humanidade está realizando um vasto experimento geofísico” e que “mudanças significativas de temperatura quase certamente devem ocorrer em torno do ano 2000, trazendo consigo mudanças climáticas”.

Datados das duas décadas seguintes, relatórios internos da Exxon vieram a público, revelando com nitidez os riscos da continuidade da queima de combustíveis fósseis e a necessidade de mudança de rota. Já em 1978, o cientista James Black, que trabalhava para a companhia, mostrou projeções de aquecimento global que são incrivelmente parecidas com aquelas produzidas pela comunidade de clima muitos anos depois nos piores cenários (ver figura). A projeção apontava para um aquecimento em torno de 1-2°C após o ano 2000 (em 2016 chegamos a 1,2°C de anomalia de temperatura em relação ao período pré-industrial) e um valor mais provável em torno de 3°C em meados deste século.

Slide apresentado por James Black, cientista que trabalhava para a Exxon, em 1978. Fonte: https://insideclimatenews.org

Black também falava em uma janela “de cinco a dez anos” antes de tomar medidas drásticas para mudar o modelo energético. Em outras palavras, nos bastidores da Exxon, tanto o risco de um aquecimento global descontrolado quanto a necessidade de termos iniciado na década de 1980 uma transição energética que nos livrasse dos combustíveis fósseis, já eram conhecidas ao final dos anos 1970. O que a Exxon fez a partir disso? Encerrou o programa de pesquisas em clima, engavetou tudo e passou a financiar grupos negacionistas, tendo transferido para eles mais de 30 milhões de dólares.

Por fim, vale mencionar a Shell, a mesma que tem planos de exploração de petróleo no Ártico, um dos mais frágeis ecossistemas do planeta, em que essa exploração envolve mais riscos de acidente e que já está sendo, como debatemos em nosso artigo anterior na Vírus, profundamente afetado pelo aquecimento global. Na semana passada, foi revelado uma fita de videocassete impressionante, produzido por essa companhia, que mostra o grau de conhecimento do problema por parte da Shell em 1991.

O vídeo explica didaticamente o efeito estufa, usando a lua como exemplo oposto à Terra (sem efeito estufa, temperatura varia muito, mas a média é bem abaixo da nossa). Lembram, além do CO2, do metano, do óxido nitroso e dos halocarbonetos. É cientificamente simples e preciso, mostra total respeito pela conhecimento científico vigente, tanto no que diz respeito as observações quanto as projeções de modelos, apesar das incertezas, bem maiores na época do que agora.
Mas não é só isso. A Shell já tinha consciência dos impactos. Do que estamos começando a presenciar hoje e do que pode arruinar o futuro das atuais e novas gerações. O vídeo fala de elevação do nível do mar, como ameaça aos países insulares, falam de Bangladesh, falam que a Holanda (onde fica a sede da companhia!) pode estar segura agora graças ao seu elaborado sistema de barreiras e de bombeamento, mas que no futuro isso é incerto; fala do perigo de quebras de safras que mudanças sutis nas zonas climáticas podem acarretar e de refugiados climáticos.
Uma frase, dita em tom solene pelo narrador, é particularmente impressionante: “O aquecimento global ainda não é certo, mas muitos argumentam que esperar por uma ‘prova final’ seria irresponsável. Ações agora parecem ser o único caminho seguro.”

49 anos depois do relatório encomendado pelo AIP, 39 anos depois dos memorandos internos da Exxon e 26 anos depois do vídeo da Shell, em que situação estamos? As emissões aumentaram, a concentração de CO2 não parou de crescer e alguns dos impactos deletérios do aquecimento global, de ondas de calor mortíferas a secas recorde, de degelo inédito das calotas polares a supertempestades, começam a se manifestar.

Esqueçam, portanto, todas as teorias de conspiração desprovidas de fundamento e concentrem sua indignação nesta, uma conspiração realmente existente, do setor mais poderoso da indústria (a indústria de combustíveis fósseis) contra a vida inteira deste planeta. Tais corporações tinham o conhecimento do perigo do aquecimento global, tinham os recursos para investimento, tinham a possibilidade de influenciar governos e outros setores da indústria. Fizeram uma escolha: o lucro rápido e fácil. E ligaram o “foda-se”. Para mim, para você, para a humanidade inteira, para a biosfera inteira. Sério, essas companhias mereciam ir a tribunais internacionais, da mesma maneira que os nazistas em Nurenberg. Eles sabiam, amigas/os. Eles sabiam.

Alexandre Araújo Costa é ativista climático, militante ecossocialista, físico de formação, Ph.D. em Ciências Atmosféricas pela Universidade do Estado do Colorado, com pós-doutorado na Universidade de Yale. Foi um dos autores principais do primeiro relatório do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, edita o blog “O Que Você Faria se Soubesse o Que Eu Sei” e é um dos coordenadores do Ceará no Clima.

Fonte – Revista Virus de 06 de março de 2017

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