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Estamos sofrendo o transtorno de déficit de natureza

Richard Luov em um jardim. Ele defende que o contato com a natureza é essencial para a saúde (Foto: Divulgação/Josh Endres-Garden)

Richard Louv numa área natural. Ele defende que o contato com a natureza é essencial para a saúde (Foto: Divulgação/Josh Endres-Garden)

O americano Richard Louv reúne pesquisas e argumentos para mostrar que qualquer humano – especialmente na infância – precisa de contato com a natureza para se desenvolver e ficar saudável

Nossa vida urbana cercada por cimento e asfalto. Ou pior, trancada dentro de garagens, escritórios e shoppings. Com cada vez menos contato com seres que fazem fotossíntese e outras espécies de animais (além da nossa). Isso não pode ser saudável, você imagina. E não é mesmo. O escritor americano Richard Louv cunhou o termo transtorno de déficit de natureza para chamar a atenção para o conjunto de problemas físicos e mentais derivados de uma vida desconectada do mundo natural. Ele reúne pesquisas e argumentos para mostrar que o ser humano precisa de experiências na natureza. Segundo Louv, crianças em contato com a natureza melhoram o desempenho na escola e podem até reduzir os sintomas de distúrbio de déficit de atenção. Louv tem argumentos para justificar, com fins médicos, a manutenção de mais unidades de conservação e de áreas verdes urbanas. Para ele, precisamos modernizar nosso conceito de urbanismo e incorporar a natureza do lado de casa, no meio da metrópole. Doses de natureza são fundamentais, diz Louv, para compensar os efeitos mentais e físicos de nossa imersão tecnológica. Ele conta tudo isso em seu livro A última criança na natureza (The last child in the woods), que já vendeu mais de 500 mil exemplares e foi traduzido em 15 idiomas. A tradução em português será lançada no Seminário criança e natureza, que acontecerá nos dias 13 e 15 de junho, respectivamente em São Paulo e no Rio de Janeiro. Tanto o seminário quanto a tradução são organizados pelo Instituto Alana. O seminário acontecerá no dia 13 de junho, no auditório da Bienal, em São Paulo, e no dia 15 no Teatro Tom Jobim, no Rio.

ÉPOCA – Por que as crianças precisam de contato com a natureza?

Richard Louv – O professor de Harvard Edward O. Wilson tem uma teoria chamada biofilia. Ele sugere que os seres humanos têm atração inata pela natureza. E que precisamos de experiências na natureza para nossa saúde mental e física. A pesquisa, a experiência e o bom-senso sugerem que nossa atração e necessidade de ambientes naturais e envolvimento com outras espécies são fundamentais para nossa saúde, nossa sobrevivência e nosso espírito. Essa conexão é parte de nossa humanidade.

ÉPOCA – Quando o senhor fala de contato com a natureza está se referindo a parques ou jardins urbanos ou a áreas naturais selvagens como as de parques nacionais?

Louv – Idealmente, o que chamamos de natureza deveria ser uma incubadora de biodiversidade. Devia servir para restabelecer a saúde e o bem-estar dos humanos. Devia ser um santuário para a vida selvagem e plantas nativas. Mas qualquer espaço verde oferece benefícios para o bem-estar físico e mental das crianças. A conexão com a natureza deve ser ocorrência diária. Se projetarmos as cidades para funcionar em harmonia com a natureza e a biodiversidade, essa conexão será um padrão comum. Uma novidade interessante agora é a popularidade crescente da natureza nas pré-escolas. É lá que as crianças aprendem sobre vida selvagem, enquanto aprendem a ler. Nas próximas décadas, os desafios ambientais exigirão mudanças fundamentais em nossas vidas e nas instituições. Precisaremos de líderes que entendam como o mundo natural funciona e como os humanos são parte da natureza.

ÉPOCA – A maioria da população vive em cidades. No Brasil, isso significa metrópoles com pouca conexão com a natureza. Quais são as consequências para as crianças que crescem cercadas por cimento e asfalto com pouco ou nenhum contato com a natureza?

Louv – À medida que as crianças passam menos tempo em áreas naturais, seus sentidos ficam limitados, no sentido fisiológico e psicológico. Acrescente a isso uma infância exageradamente organizada e a desvalorização das brincadeiras espontâneas. Isso tem enormes consequências para as capacidades de a criança se autorregular. Isso reduz a riqueza das experiências humanas e contribui para uma condição que chamo de “transtorno de déficit de natureza”. Criei esse termo como uma expressão forte para descrever o que muitos de nós acreditam que sejam os custos da alienação da natureza. Entre esses prejuízos estão um menor uso dos sentidos, dificuldades de atenção, índices elevados de doenças mentais, maior taxa de miopia, obesidade adulta e infantil, deficiência de vitamina D e outros problemas. A ciência estabeleceu correlação entre experiências no mundo natural e melhoras em todas essas condições. É óbvio que o transtorno de déficit de natureza não é um diagnóstico médico. Mas podemos considerá-lo como uma doença da sociedade. Hoje, crianças e adultos que trabalham e estudam num mundo cada vez mais dominado pelo ambiente digital gastam grande energia bloqueando muitos dos sentidos humanos, inclusive alguns que nem sabemos que temos. Fazem isso para concentrar de forma estreita o foco na tela diante dos olhos. Essa é a definição exata de estar menos vivo. Qual pai quer que seus filhos estejam menos vivos? Quem dentre nós quer estar menos vivo? A questão aqui não é ser contra a tecnologia, que nos oferece muitos benefícios, mas encontrar um equilíbrio. Precisamos oferecer a nós e nossas crianças uma vida rica e um futuro rico em natureza.

ÉPOCA – Estamos ensinando nossas crianças a valorizar a natureza?

Louv – Nos Estados Unidos – e, pelo que sei, no Brasil –, o mundo natural foi desvalorizado na mídia e na educação, com exceção de alguma ênfase em espécies carismáticas. Mas estamos vendo algum progresso. Um número crescente de homeschoolers [crianças que estudam em casa] e escolas primárias e secundárias independentes estão incorporando experiências naturais no ensino. Não é só ler sobre natureza, mas usar os hábitats naturais como ambiente para várias atividades. Algumas escolas de vanguarda também estão fazendo isso. Estou otimista que isso continue a se expandir à medida que educadores e pais aprendam mais sobre a relação entre a natureza e o desenvolvimento infantil. Num cenário ideal, novas escolas serão projetadas com a natureza em mente. E as escolas antigas serão reformadas com espaços de recreação que incorporam a natureza no projeto central. Outra abordagem é usar as reservas naturais para trabalhos escolares ou a inclusão de fazendas e sítios como parte dessas novas instalações escolares. Precisamos incorporar a educação da natureza, e o conhecimento dos efeitos positivos, no treinamento de todo professor. Precisamos dar crédito aos muitos professores que insistiram em expor seus alunos à natureza, apesar da tendência na direção oposta rumo a um mergulho na tecnologia e na desvalorização das atividades ao ar livre. Os professores e escolas não podem fazer isso sozinhos. Os pais, políticos e toda a comunidade precisam participar. Esse tema precisa ser incluído nas faculdades de pedagogia.

ÉPOCA – O contato com a natureza é instrumento pedagógico?

Louv – Fala-se muito de tecnologia nas escolas. Mas a grande vanguarda em educação não são tablets nem computadores, mas pomares, hortas e jardins. Pesquisas sugerem que o contato com a natureza é elemento fundamental para nossa habilidade de pensar e criar. Precisamos da natureza como antídoto para alguns dos efeitos negativos da tecnologia. A maior capacidade multitarefa é viver simultaneamente no mundo digital e no físico. Quanto mais hi-tech nossa vida fica, de mais natureza precisamos. Na educação, para cada dólar investido em tecnologia virtual, precisamos investir o mesmo no mundo real – especialmente criando mais ambientes de aprendizagem em áreas naturais. Se fizermos isso, as crianças ficarão bem. Recentemente, visitei uma escola com ensino baseado na natureza numa região pobre. A escola tem conseguido mais avanço acadêmico do que qualquer outra no local.

ÉPOCA – Os próprios pais e professores também perderam suas conexões com o mundo natural. O que podemos fazer?

Louv – Muitos adultos estão dando mau exemplo. Eles ficam cada vez mais dentro de espaços fechados. Passam mais tempo com os eletrônicos e, como seus filhos, sofrem problemas de saúde relacionados a isso. O aumento da obesidade para adultos e jovens é um sintoma. A maioria das crianças e jovens simplesmente não sabe o que está perdendo. Nunca é cedo demais – ou tarde demais – para ensinar crianças e adultos a apreciar e se conectar com atividades ao ar livre. Pessoalmente, acho que passar tempo ao ar livre é vital para todas as idades. Certamente é verdade que líderes em conservação tiveram experiências na natureza que mudaram suas vidas durante a infância. Logo, as crianças de hoje que tiverem essas experiências positivas na natureza vão dar uma grande contribuição à sociedade como cuidadores da Terra. Se a hipótese de biofilia de E.O. Wilson estiver correta, nós, como espécie, estamos geneticamente programados para termos afinidade com o resto da natureza. Se isso for verdade, então nunca será tarde e você nunca estará velho demais para destravar essa conexão.

ÉPOCA – Em algumas partes do Brasil, distanciar-se da natureza é uma medida de ascensão social. Por alguma razão parecida, as cidades pequenas, mais próximas de áreas rurais, têm menos cobertura florestal urbana do que cidades em regiões mais industrializadas. A natureza é vista como sinal de pobreza e subdesenvolvimento. Como o senhor vê isso nos Estados Unidos?

Louv – Isso é um problema geral. Os subúrbios nos Estados Unidos se desenvolveram com o corte de todas as árvores da paisagem. Um antídoto para os que pensam na natureza como algo do passado é adotar esta crença: não é hora de voltar para a natureza, mas avançar para a natureza. O futuro da nossa conexão com a natureza não é antiurbano e nem antitecnológico. Podemos criar novos ambientes naturais no interior e no entorno de nossas casas, escolas, bairros, centros comerciais, cidades e subúrbios. Precisamos imaginar um futuro em que nossas vidas estejam mergulhadas na natureza em cada prédio, em cada quarteirão.

ÉPOCA – Se as pessoas têm tantos bons sentimentos associados à natureza, por que tantos aceitam o desmatamento para a expansão urbana?

Louv – Uma razão é a competição econômica baseada na falsa premissa de que a natureza e a vida humana são coisas separadas. No entanto, muitas pessoas estão percebendo que criar mais natureza nas imediações é um bom investimento. Os benefícios de áreas naturais nas proximidades pode ser sentido pelos sistemas de saúde. Também têm efeitos positivos no sistema de educação, para a qualidade de vida, para o valor das propriedades e nos índices de criminalidade.

ÉPOCA – O senhor acredita que a exposição à natureza pode reduzir o uso de Ritalina para tratamento de síndrome de déficit de atenção?

Louv – Várias pesquisas relacionam a experiência na natureza com a redução dos sintomas de síndrome de déficit de atenção. Alguns dos trabalhos mais importantes nessa área foram feitos no Laboratório de Pesquisa de Humanos e Ambiente da Universidade de Illinois por Andrea Faber Taylor, Ming Kuo e William Sullivan. Em uma série de estudos, eles descobriram que espaços ao ar livre estimulam brincadeiras criativas, melhoram o acesso da criança à interação positiva com adultos e reduzem os sintomas de síndromes relativas a déficit de atenção. Quanto mais verde for o ambiente, maior o benefício. Em compensação, atividades internas ou atividades ao ar livre em áreas pavimentadas prejudicam as crianças. Os pesquisadores descobriram que contato com áreas verdes durante a infância – mesmo que olhando uma paisagem verde pela janela – reduz especificamente os sintomas de déficit de atenção. Como eles escreveram na revista científica Environment and Behavior, atividades ao ar livre em geral ajudam, mas “atividades em ambientes naturais têm maiores chances de melhorar o foco e a concentração de crianças com síndrome de déficit de atenção”. O estudo mais recente de Taylor e Kuo mostra que o grau de atenção de crianças sem medicação diagnosticadas com a síndrome era mais alto depois de uma caminhada de 20 minutos num parque com cenário natural do que depois de um passeio numa área urbana. Outros estudos na Suécia e nos Estados Unidos reforçam essas descobertas. Alguns pediatras americanos mapearam as áreas naturais, mesmo parques urbanos, na região onde atendem. Assim, eles passaram a receitar doses de natureza para os pacientes. Eles indicam os lugares aonde as pessoas podem levar as crianças para ter esse contato.

ÉPOCA – Se os humanos são parte da natureza, não podemos dizer que os ambientes urbanos cinzentos criados pelos humanos também são, de certa forma, parte da natureza?

Louv – Sim. As cidades são parte da natureza. Mas qualquer área natural, inclusive as florestas e as instalações urbanas, pode perder o equilíbrio. Pode se autodestruir por doenças ou excesso de uso. Em 2008, pela primeira vez na história, mais de metade da população mundial vivia em cidades. A urbanização continua. A tendência significa que os humanos perderão sua conexão diária com o mundo natural. Ou significará o início de um novo tipo de cidade. Se enxergarmos apenas um futuro apocalíptico, é o que teremos. Mas precisamos imaginar uma sociedade onde nossas vidas fiquem imersas na natureza, assim como hoje estão mergulhadas em tecnologia. No ano passado, a Liga Nacional de Cidades e a Rede Criança & Natureza criaram uma iniciativa de três anos para ajudar 19 mil prefeitos americanos a deixar suas cidades melhores para as crianças e a natureza. Vemos a emergência de projetos biofílicos em nossas casas e ambientes de trabalho.

ÉPOCA – Podemos mesmo estabelecer uma linha divisória entre o mundo natural e o ambiente artificial?

Louv – É uma questão difícil. A ciência tem dificuldade para definir a natureza. É uma das razões pelas quais a relação entre humanos e natureza tem sido tão pouco estudada. Mas, para mim, os humanos estão presentes na natureza onde quer que tenham alguma relação de afinidade com outras espécies. Por definição, um ambiente natural pode ser encontrado em espaços selvagens ou numa cidade. Sabemos que é natureza quando vemos. A natureza é inclusiva. Todos são igualmente bem-vindos e cartões de crédito não são exigidos. Podemos contar com a permanência, com a constância dos cenários naturais para fazer nossos problemas pessoais encolher para uma dimensão realista. A natureza oferece uma linguagem universal que qualquer pessoa no planeta compreende.

Fonte – Alexandre Mansur, Época de 09 de junho de 2016

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