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Estudos detalham impactos do declínio de populações de mamíferos na região neotropical

Por Karina Ninni | Agência FAPESP – 10 de novembro de 2020

Grupo liderado por ecólogo da USP mostra que defaunação pode comprometer mais de 40% dos serviços ambientais prestados por esses animais, entre eles controle de doenças e formação de solo. Efeito é maior sobre os grandes mamíferos (macaco da espécie Brachyteles_arachnoides, popularmente conhecido como muriqui-do-sul; foto: ICMBio).

Um grupo de cientistas liderado pelo ecólogo Juliano André Bogoni, da Universidade de São Paulo (USP), publicou dois artigos que desvendam a intensidade da defaunação de mamíferos nos neotrópicos – região que compreende a América Central, todas as ilhas do Caribe e a América do Sul – e seus efeitos deletérios mais funestos.

No primeiro estudo, publicado em agosto na Ecosystem Services, os pesquisadores apontam que a extinção de mamíferos afeta mais de 40% dos serviços ambientais prestados por esses animais, como provisão de proteína animal para populações tradicionais e controle de doenças, por exemplo. No entanto, os mamíferos de pequeno porte têm “backups”, ou seja, há mais de uma espécie que realiza o mesmo serviço.

No segundo trabalho, publicado em setembro na Scientific Reports, o grupo quantificou em 56% a defaunação de grandes e médios mamíferos nos neotrópicos e propôs um novo Índice de Pressão de Caça (IPC), que indica a vulnerabilidade de determinado local à prática da caça ilegal com base em fatores que inibem e incentivam a atividade. O trabalho revela, ainda, que os mamíferos que sobraram são os menores.

Segundo Bogoni, o resultado do primeiro artigo foi um tanto surpreendente para a equipe. “Percebemos que, embora os mamíferos estejam declinando de forma muito rápida nos neotrópicos, ainda há backups: quando falta um, outro está fazendo o serviço. Mas isso não acontece com todos eles. Há famílias, por exemplo, como a Cricetidae (ratos) nas quais encontramos às vezes 30 espécies dentro de um gênero e quase até uma centena de espécies em ‘grupos-irmãos’, que são espécies de gêneros muito relacionados evolutivamente e morfologicamente. Ou seja, há muitas espécies que se sobrepõem no grupo dos pequenos mamíferos e dos voadores [morcegos]. Se tivéssemos nos concentrado em mamíferos médios e grandes, o declínio dos serviços teria sido muito maior.”

Os predadores de topo da cadeia alimentar são bons exemplos de falta de sobreposição. “Neste caso, só há um backup. A onça-pintada e o puma, por exemplo. Quando se perde um, sobra apenas o outro – isso se eles coexistirem no mesmo lugar, o que muitas vezes não acontece. Neste caso, a perda da espécie significa a perda dos serviços.”

Bogoni é pós-doutorando da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), no Laboratório de Ecologia, Manejo e Conservação de Fauna Silvestre, e atualmente desenvolve sua pesquisa na Universidade de East Anglia, no Reino Unido, com Bolsa de Estágio de Pesquisa no Exterior concedida pela FAPESP.

Para estabelecer a metodologia, os cientistas simularam dois macrocenários de defaunação: estocásticos (como se todos os grupos de mamíferos declinassem de igual forma) e determinísticos (quando alguma característica do ambiente ou do próprio grupo determina a defaunação). “O cenário determinístico é a ‘vida real’, o que está acontecendo hoje. Mas, como eu não sabia quais eram os grupos mais penalizados, pois não havíamos publicado ainda o segundo trabalho, também simulei o cenário estocástico, para poder comparar.”

Serviços afetados

A equipe dividiu os serviços prestados pelos mamíferos em quatro grandes grupos: provisão (que inclui proteína animal para populações tradicionais, inutilização e dispersão de sementes, bem como suas respectivas capacidades de afetar a dinâmica de regeneração das florestas e dos recursos madeireiros, e recursos genéticos); regulação (que inclui regulação climática, controle de doenças e pestes, controle biológico, recuperação de desastres naturais e polinização); culturais (ecoturismo, identidade etnocultural, estética e educação); e suporte (formação de solo, ciclo de nutrientes, produção de oxigênio e produtividade primária).

Os principais serviços ecossistêmicos afetados nos diferentes cenários de defaunação foram o ecoturismo (43,4%), a formação de solo (39,8%), o controle de doenças (39,6%), a aquisição de proteína para subsistência (38,0%) e a identidade etnocultural (37,3%), cujas perdas sob o regime de defaunação determinística variaram de 38,9% a 53,0% em comparação com a linha de base. No cenário determinístico especificamente, os principais serviços impactados entre os diferentes regimes de defaunação (ecoturismo, formação do solo, controle de doenças e aquisição de proteínas pelos povos tradicionais) tiveram redução acima de 40%.

De acordo com Bogoni, alguns serviços, como identidade etnocultural, podem declinar muito rapidamente. “As pessoas se associam, na maioria das vezes, aos predadores de topo ou a animais que tenham alguma característica ecomorfológica muito aflorada. Um rato talvez nunca seja objeto de identidade etnocultural, mas uma onça-pintada, sim, pois povoa o imaginário das pessoas desde tempos pré-colombianos. Outro exemplo de declínio severo de serviços é o provimento de proteína animal para povos tradicionais, que é a caça para subsistência. É um serviço que não tem muito backup, e foi um dos que mais declinaram. Quanto menos backup, maior a possibilidade de o serviço declinar, ou até zerar.”

O ecólogo realizou uma vasta revisão da literatura buscando por artigos que remetessem a serviços prestados pelos mamíferos de acordo com critérios ecomorfológicos – de como eles se comportam e como são. “É delicado estabelecer isso porque é algo putativo: predeterminamos que aquele animal presta certos serviços de acordo com algumas características que ele tem. O input foi baseado na literatura e em critérios como tamanho do corpo, dieta etc. Para evitar enviesar a atribuição do animal, consultamos mais oito especialistas em mastozoologia para colher opiniões. Na média, a diferença entre as nossas atribuições e a dos outros especialistas foi de 3%. Ou seja: a atribuição do serviço, embora presumível, é bem confiável.”

A metodologia abrange dados sobre 1.153 espécies de mamíferos distribuídas em 2.427 assembleias (grupos de espécies com histórias evolutivas relacionadas, dentro de determinada comunidade) em cerca de 20,4 milhões de quilômetros quadrados (km2) na América Latina. Entre a concepção do trabalho e a elaboração do banco de dados para a rodagem das análises, Bogoni contabiliza de seis a sete meses.

Perda de hábitat x caça

No segundo artigo, os cientistas abordam a intensidade da defaunação e a pressão que a caça exerce em grandes mamíferos nos neotrópicos. “Com base em dados atuais de defaunação que venho compilando desde 2015 e números da International Union for Conservation of Nature [IUCN], que fornecem uma distribuição aproximada dos mamíferos em polígonos predeterminados, assumimos que esses polígonos seriam a distribuição do animal na América pré-colonial, e fizemos a comparação. Realizei a análise para 1.029 assembleias.”

Ele esclarece que a equipe usou uma abordagem matemática chamada de matriz de confusão para lidar com os falsos negativos, ou seja, quando o animal presumivelmente ainda está presente, mas não foi registrado no banco de dados moderno. “Aplicando essa matriz para ‘corrigir’ possíveis falsos negativos, nossos dados mostram uma defaunação de 56,5%. Os índices mais severos de defaunação estão na América Central, no bioma Caatinga, no Brasil, e na porção norte da América do Sul.”

E alerta para o resultado mais importante do trabalho: “As assembleias foram miniaturizadas. Na distribuição dos dados por assembleia, em 95% dos casos os animais deveriam ter, de acordo com a média histórica, por volta de 14 quilos (kg), mas agora eles têm apenas 4 kg. Ou seja: sobraram os animais menores. A defaunação, além de ser pervasiva, é mais direcionada a grupos de grande porte, provavelmente afetada primariamente pela perda de hábitat e acentuada pela caça”.

Bogoni e os colegas também propuseram o novo Índice de Pressão de Caça (IPC), com base em fatores que inibem e incentivam a prática. “Na metodologia listamos diversos deles. Por exemplo, latitude: à medida que a latitude diminui, mais perto do Equador, mais espécies, mais biomassa, mais produtividade, então a probabilidade de se caçar ali é maior que nos extremos, onde só há bichos pequenos e rarefeitos no espaço. O mesmo raciocínio vale para a altitude: quanto maior, menos presas, menor a probabilidade de caça. Consideramos outros fatores, como ocorrência de luminosidade artificial, ou a relação entre a produtividade primária e a biomassa vegetal. Ambientes com alta produtividade e baixa biomassa vegetal provavelmente são pastagens, e se há gado, há proteína animal, não é necessário caçar”, explica.

Os resultados mostram valores relativamente altos de IPC para uma vasta fração dos neotrópicos: aproximadamente 17 milhões de km2, que incluem em grande parte a Amazônia, o Cerrado, a Caatinga e regiões da Patagônia. “Estamos tentando entender o que pesa mais para a defaunação: perda de hábitat ou caça. Por enquanto, todos os trabalhos mostram que é um efeito sinergético, mas queremos entendê-los separadamente, para que as estratégias de conservação levem em conta essas nuances”, adianta Bogoni.

O artigo Effects of mammal defaunation on natural ecosystem services and human well being throughout the entire Neotropical realm pode ser lido em: www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S2212041620301157?via%3Dihub.

Para ler o estudo Extent, intensity and drivers of mammal defaunation: a continental-scale analysis across the Neotropics acesse: www.nature.com/articles/s41598-020-72010-w.

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