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Existirá futuro para o Brasil sem o Cerrado?

Incêndio se aproximando da Vereda dos Ingleses, no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Foto: Fernando Tatagiba/Wikiparques.

Deitada eternamente em berço esplêndido instalado em uma casa em chamas, a sociedade brasileira parece desconhecer o seu próprio destino. A tragédia, nesse caso, é a incapacidade da sociedade abrir os olhos diante da gravidade do cenário que se desenha. No entanto, a despeito dos absurdos produzidos pela ignorância, pelo desdém com o passado, pela inconsciência sobre o presente e a irresponsabilidade para com o futuro, sempre existirão vozes lutando pelo que é justo, valioso e imprescindível para um país que se diz grande.

Não é diferente com o Cerrado, o segundo maior bioma do Brasil e da América do Sul, responsável pela manutenção dos mananciais que alimentam grande parte dos grandes rios do continente e que abriga 30% da biodiversidade nacional. O Cerrado está sendo esquartejado por políticas enviesadas que levarão à perda dessa riqueza, sem que haja ganho real para a população. Não podemos nos calar sobre o Cerrado.

A velocidade em que o Cerrado está se perdendo é de conhecimento mundial. Não por acaso, o bioma é considerado um hotspot global de biodiversidade, onde ecossistemas especiais, com elevada e exclusiva riqueza biológica, enfrentam um processo intenso de devastação. Estudos recentes, focando diferentes organismos, têm confirmado a importância de processos evolutivos regionais atuando na radiação de inúmeras unidades evolutivas independentes distribuídas ao longo do Cerrado. Tais estudos apenas demonstram o quanto nosso conhecimento sobre a ecologia e a evolução desse bioma é ainda superficial e o quanto subestimamos nosso patrimônio natural.

A desvalorização do Cerrado é resultado de políticas equivocadas eivadas de ideologias proselitistas. Como resultado da adoção de tais miopias, o incremento em áreas protegidas no Cerrado brasileiro não acompanhou a sanha do modelo de desenvolvimento adotado. Por ano, entre 1990 e 2010 o Cerrado perdeu 0,6% de sua vegetação natural (praticamente o dobro da taxa de desmatamento da Amazônia), principalmente devido à pecuária e à agricultura intensiva em grande escala.

“A desvalorização do Cerrado é resultado de políticas equivocadas eivadas de ideologias proselitistas. Como resultado da adoção de tais miopias, o incremento em áreas protegidas no Cerrado brasileiro não acompanhou a sanha do modelo de desenvolvimento adotado.”

Essa taxa de perda de habitat representa quase 1.700 hectares (ha) por dia, espalhados pelo bioma Cerrado. Essa situação de conservação está se tornando cada vez pior com as recentes mudanças promovidas no Código Florestal de 2012, o qual, sob vários aspectos, é mais permissivo ao desmatamento. Esse Código permite, por exemplo, que reservas legais, que visam compensar a conversão de terras nas propriedades particulares, sejam alocadas em qualquer parte do domínio do Cerrado, não sendo restritas à mesma bacia onde ocorreu a conversão de terras. Isso significa que a conversão de terras no sul do Cerrado, onde há pouca vegetação natural remanescente, pode ser compensada com a aquisição de  terra no norte do bioma, onde o hectare é mais barato. Como diferentes regiões nos limites do Cerrado diferem significativamente na composição de espécies e nos tipos de ecossistemas mais representativos, isso significa que muitas espécies presentes no sul do Cerrado estão enfrentando uma ameaça crescente, além de premiar os proprietários que infringiram o código anterior, desmatando além dos limites legais, à revelia dos proprietários que observaram a legislação vigente.

O desenvolvimento agrícola acelerado domina o discurso político. No entanto, a criação de novas unidades de conservação é tão importante quanto ampliar a área agrícola no Cerrado, e deveria fazer parte das políticas de ocupação do território. No entanto, o triste clima de confrontamento existente hoje na sociedade, onde a oposição míope de Conservação vs. Desenvolvimento dita políticas públicas e afeta a percepção dos atores sociais, evita que exista crescimento responsável no país. No atual ritmo de perda de habitat, a criação de áreas protegidas é urgentemente necessária, com a participação de todos os atores sociais e esferas de governo. É importante ressaltar que quase todo o bioma Cerrado fica localizado no Brasil. Portanto, apesar da preocupação internacional com a conservação do Cerrado, a manutenção desse hotspot global único de biodiversidade é uma responsabilidade brasileira, que deveria envolver toda a sociedade e as diferentes esferas de governo.

Cerrado, o berço das águas. Acima, o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Foto: Renata Mazzini/Wikiparques.

A cobertura total de áreas protegidas no Cerrado (8%) está bem abaixo das metas de Aichi da Convenção sobre Diversidade Biológica – CDB (17%), convenção da qual o Brasil é signatário, mas o Cerrado ainda possui remanescentes suficientes para o alcance das metas. Para atingir as metas acordadas, cerca de 238.000 km2 de áreas protegidas devem ser criadas no Cerrado até 2020. No entanto, uma das poucas vitórias recentes, muito comemorada por setores da sociedade preocupados com o futuro do bioma, a ampliação em 2017 do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros em pouco mais 176.000 ha, só foi possível após desgastante conflito entre políticos, proprietários de terras, pesquisadores, ambientalistas e organizações não governamentais, num claro reflexo das tensões atuais no Brasil quanto à destinação dos usos pretendidos para o território nacional. Nesse clima, é muita pretensão acreditar que iremos atingir as Metas de Aichi.

É lamentável observarmos que diversos políticos desprezam a conservação da natureza como um dos caminhos até um futuro mais equilibrado para o país. Esses apedeutas vem sistematicamente atacando as garantias legais das Áreas Protegidas, dos grupos indígenas, dos pequenos agricultores tradicionais e dos trabalhadores rurais. Não obstante, existe no Brasil um claro cenário denominado PADDD (Protected Areas downgrading, downsizing, and degazettement), onde ataques às unidades de conservação visam sua reclassificação para categorias mais permissivas (downgrading), a redução dos seus limites (downsizing) ou sua completa desafetação (degazettement). Infelizmente, esse não é um fenômeno restrito ao Brasil e é reflexo do avanço de uma mentalidade anacrônica em todo o mundo (Acompanhe processos de PADDD ao redor do mundo usando http://www.padddtracker.org/).

O argumento de que a conservação da biodiversidade não traz benefícios à economia e atravanca o desenvolvimento do país é falacioso. Os setores agrícolas nacionais deveriam ser os primeiros a defenderem a importância da conservação, visto serem eles os maiores usuários de recursos naturais, como o solo e a água.

“Os setores agrícolas nacionais deveriam ser os primeiros a defenderem a importância da conservação, visto serem eles os maiores usuários de recursos naturais, como o solo e a água.”

Deveriam existir ferramentas mais amplas de recompensa financeira para os proprietários que conservam a biodiversidade em suas propriedades, visto que garantem serviços ecossistêmicos para toda a sua localidade. Muitas propriedades protegem importantes remanescentes naturais e são parceiros importantes na conservação da biodiversidade. Sem o envolvimento dos proprietários rurais, não será possível fazer conservação a longo prazo. Por outro lado, esse comprometimento deve ser efetivo, alcançado através de diálogo, parcerias e compreensão mútuas, dos setores produtivos e dos setores conservacionistas.

A realidade é produto de nossas escolhas. Devemos atentar para a nossa responsabilidade na construção de uma nova realidade para a conservação do Cerrado para nós e para as futuras gerações através de pactos sociais duradouros e construídos em prol de valores amplos e sólidos. Menos loteamento ideológico e mais liberdade para criar.

Fonte – Reuber Brandão, O Eco de 11 de setembro de 2018

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