Entrevista concedida pela FUNVERDE para a revista HM! sobre as malditas sacolas plásticas de uso…
Fazenda urbana
O desafio: transformar um quintal nova-iorquino em um sítio de 800 m2 e comer somente o que nele foi plantado e criado. Alguns resultados: uma colheita de batatas minúsculas, um dedo decepado, uma galinha viciada em seus próprios ovos e um casamento contaminado por ervas daninhas. É possível sair inteiro de um experimento como esse?
Como em final de semana sempre sobra tempo, leia as aventuras e desventuras de um urbanoide brincando de fazendeiro dentro da cidade de New York.
Manny Howard
Manny Howard: de crítico gastrônomico da prestigiada “New York” a lavrador metropolitano
Em 8 de agosto de 2007, às 6h40 da manhã, um tornado atingiu minha casa em Nova York. Muita gente viu o fato como uma aberração da natureza. Eu não. Depois de uma noite sem dormir, ouvindo o vento e a chuva se intensificarem, vi o céu ficar verde. Aí um pinheiro no jardim da casa ao lado foi partido em dois, uma goteira abriu-se no terceiro andar da minha casa e o telhado do que costumava ser nossa garagem, depois conhecida como “o celeiro”, foi arrancado. Enquanto o vento aumentava, o tronco de um carvalho atingiu como um míssil o pedaço mais produtivo da minha horta, encobrindo a plantação de tomates, rachando uma figueira, pulverizando os repolhos frescos e despedaçando o telhado do meu galinheiro. Isso mesmo, meu galinheiro. Ele fica na minha fazendinha com 800 m2 de terra cultivável. Um tornado não atingia o Brooklyn desde 1889, quando Flatbush (pedaço do bairro nova-iorquino) era uma área agrícola. O tal tornado destruiu a fazenda que cultivei em meu quintal e que planejava contar como minha única fonte de comida por um mês inteiro.
Comecei meu projeto em março de 2007. Em sua concepção original, ele era um teste extremo da idéia que fez florescer o movimento locavore (em inglês, contração de “local” e o sufixo “voro”, ou “que se alimenta de”). De acordo com seus fundamentos, todos deveríamos comer alimentos produzidos localmente, a uma distância de até 160 quilômetros (50 para alguns) de onde vivemos, para assim salvar o planeta e redimir nossas almas empanturradas. Agora que o rótulo “orgânico” tornou-se comum e essencialmente insignificante, os locavores estabeleceram um código sagrado, que acalma nossas ansiedades em relação ao que há em nossos pratos.
Os reis do movimento são Michael Pollan – autor de “O Dilema do Onívoro” (Editora Intrínseca, 2007), um olhar saudável sobre como a produção da comida ficou desprovida de qualquer coisa natural ou normal – e Barbara Kingsolver, autora do autobiográfico “Animal, Vegetable, Miracle” (ainda inédito no Brasil), sobre o esforço de sua família em comer apenas produtos feitos localmente. “Nosso maior objetivo”, escreveu Kingsolver, “era comprar tão perto de casa que conheceríamos o produtor.” Inspirada por ela, a revista “The New Yorker” publicou uma reportagem sobre dietas restritas a alimentos adquiridos em municípios próximos da metrópole. O resultado foi um menu mais barato, sem pombas ou ratos. Logo depois, as quitandas de Nova York criaram uma indústria de fundo de quintal. Dentro dos limites da cidade, há gente criando galinhas, plantando alface e mantendo colméias, uma forma de lucrar e alimentar os puristas. Mas, até onde sei, ninguém tentou fazer isso tudo sozinho, em um pequeno quintal. Para avaliar o estilo de vida locavore, planejei levar sua filosofia ao extremo.
Enquanto a fazenda ganhava forma em minha cabeça, tive momentos ocasionais de lucidez. Percebi que há coisas que nunca poderia plantar. Permiti, portanto, três exceções: sal, pimenta e grãos de café. Além disso, já era março, tarde demais para cultivar trigo, que cresce no inverno. Então tá, sem pão. E os laticínios? É ilegal criar vacas ou cabras em Nova York, mas escondi um caprino na garagem. Valeria o risco? Queijo seria bom, mas você já colocou leite de cabra em seu café? Havia também o óleo: não tinha espaço para as plantas necessárias para produzi-lo, então teria que me contentar com algum tipo de gordura animal. Um porco, talvez? Gordura de pato também era uma boa possibilidade – poderia confitar (cozinhar na própria gordura) tudo.
O que eu não poderia fazer, então? Preocupado com uma crise de abstinência de álcool, tentei destilar vodca de batatas. Segundo a lenda, em cinco dias é possível fazer uma bebida razoável. Sonhava acordado com uma criação de tilápias, peixe de água doce que rivaliza com as baratas em adaptabilidade. As opções pareciam ilimitadas. Mas, enquanto olhava o calendário, um sentido de urgência tomou conta de mim. Tinha de parar de sonhar e começar a agir.
Moro em uma área onde as casas são bem grandes, mas os terrenos, nem tanto. Meu quintal tem 6 por 12 metros, tende a inundar com pouca chuva e não era próprio nem mesmo para um gramado. A única coisa meio viva ali era uma cerejeira que foi cortada em meu primeiro dia como fazendeiro. Mandei amostras do solo para análise, e os resultados foram medonhos: nenhum nutriente e altos níveis de chumbo. Um terreno tóxico. Antes de despejar 5,5 toneladas de terra boa e fértil sobre ele, trazida de uma fazenda em Long Island, ainda tive que escavar um sistema de drenagem. Fiz um buraco enorme no meio do barro. Precisava chegar até a areia.
No buraco
Comecei tudo como um projeto familiar de fim de semana. Meus filhos – Heather, de 5 anos, e Jake, de 3 – entraram de cabeça na história. Secaram a testa do papai, levaram cerveja gelada para ele e correram pelo terreno como se fosse recreio. Ofegante e sofrendo como se estivesse nos primeiros estágios de um ataque cardíaco, usei o que ainda restava de forças para me arrastar até a geladeira e pegar uma garrafa de vinho.
No dia seguinte, parado sobre o mesmo buraco, agora com quase dois metros de profundidade e muito mais largo que uma lata grande de lixo, perguntei para Carlos – um salvadorenho mestre-de-obras de uma empresa de projetos paisagísticos – se havia alguma chance de achar areia. “Em meu país, ela sempre está depois do barro. Tenho certeza que isso também acontece aqui.” Dei um sorriso amarelo e continuei a cavar. O buraco tomou todo o fim de semana. Minha mulher, Lisa, que não tinha tarefas braçais em sua lista de programas para o período, parou de checar meu trabalho, e as crianças ficaram entediadas. Continuei cavando. Atingi a areia quase sete metros depois, joguei longe a ferramenta para abrir buracos e me sentei com as pernas cruzadas.
Quando me arrastei para fora do buraco, minha vizinha, Jane Feder, me chamou. “Você não precisa me contar se não quiser, mas o que você está fazendo aí?”, disse do outro lado da cerca. Quando respondi que estava construindo uma fazenda, ela disse: “Eu sabia. Falei para o Al [seu marido] que você ia fazer isso”. Jane estava empolgada, nem um pouco incomodada com a montanha crescente de lixo ou com a presença de escavadeiras na entrada da rua.
Nem mesmo meus planos de colocar animais fedorentos a poucos metros da janela de sua cozinha a amedrontaram. Quando instalei armadilhas para esquilos para proteger minha plantação, ela ficou maravilhada ao vê-las funcionar bem. Ela até levou amigos ao seu quintal para exibir a fazenda de seu vizinho. Lisa estava preocupada. Pensou que nossos outros vizinhos achariam que eu era Richard Dreyfuss em “Contatos Imediatos do Terceiro Grau”! Na verdade, eles foram meus maiores incentivadores.
Comecei a plantar em meu porão enquanto o quintal não ficava pronto. Para ter alguma credibilidade como um locavore, cheguei à conclusão de que teria de começar do zero. Comprei dúzias de sementes variadas, de abóboras a tomates, coloquei-as em pequenos montes sob a luz de lâmpadas especiais para estufas, instaladas no teto. O plano era transplantar tudo para o quintal assim que ficasse mais quente. Logo elas começaram a crescer. Me senti como meu filho ao ver seu feijão brotando na escola.
Nas semanas seguintes, tudo cresceu como erva daninha. A operação parecia fácil demais. Convidei meu primo Gabe, que conhece bem lâmpadas para estufas, para um tour em meu porão-estufa. “Elas estão no lugar errado”, disse ele. Logo depois, um diagnóstico de dar medo: “Essas mudas são muito delicadas para agüentar as condições lá fora”. Respondi, na lata: “Bobagem, elas estão firmes aqui”. Gabe: “Não tem vento aqui, tem?”. Não falei mais nada, enquanto absorvia outra lição. As plantinhas eram de fato muito delicadas. A maioria começou a morrer antes de deixar o porão. Como medida paliativa, coloquei-as em um solário. Apesar de meus esforços, encontrei o apocalipse numa manhã. Centenas de mudas estavam caídas e encharcadas.
Em busca de mudas
Enfim, a colheita: a fazenda perto do final do ciclo de produção, ainda antes da chegada de um tornado devastador
Estávamos em meados de abril. De repente, tarde demais para o cultivo. Com o calendário avançando em direção a agosto, quando teria de consumir apenas minha produção, era necessário continuar com plantas novas, já no quintal. Mesmo nesse estágio inicial eu estava completamente consciente do que os economistas chamam de “custo irrecuperável”. Eu não conseguiria de volta todo o trabalho, suor e dinheiro que havia investido em minhas sementes até o momento. Os locavores puristas iriam me evitar, mas que escolha eu tinha? Então saí para comprar mudas, o que não é fácil em Nova York. Ervas podem ser encontradas em qualquer lugar, mas você tem dificuldades quando está atrás de milho, cenouras e batatas. Depois de semanas, finalmente encontrei a C. Verdino & Sons, no Parque Ozone, onde enchi meu carrinho com mudas de favas, melões, beterrabas, berinjelas, pepinos, erva-doce, repolho e quatro tipos de pimentões.
Trabalhei como um doido para plantar tudo aquilo em meu quintal. Contei com a ajuda de Caleb, filho adolescente de uns amigos que não queria passar o último verão antes da faculdade trabalhando em um lugar fechado. Ele é um garoto legal, apesar de seu cabelo louco e experiência zero. Caleb nunca havia cozinhado uma refeição, imagine plantá-la. Mas estava agradecido pela sua companhia. Fizemos um esforço extra com as batatas, colocando-as em uma caixa retangular, chamada de “arado”. Elas seriam minha salvação contra a fome, assim como têm sido para civilizações através dos séculos. Uma plantação difícil de destruir, capaz de sobreviver quando nada mais consegue.
Ainda tinha de tomar a difícil decisão a respeito das carnes que criaria. As tilápias saíram de cena, pois o cara com quem tentava falar sobre elas nunca me ligou de volta. Já as galinhas foram cortadas por serem barulhentas, fedidas, más, sujas e fujonas – algo nada bom para a relação com os vizinhos. Além disso, elas têm de ser depenadas. Calculei que precisaria de uma galinha por dia. Isso dá um montão de penas.
Em comparação, coelhos soavam como música. O ideal é você comê-los bem jovens, quando sua carne é mais macia, e, como todos sabemos, a espécie se multiplica loucamente. Segundo estudos, uma única fêmea pode produzir 1.000 vezes o peso de seu corpo em prole comestível a cada ano. A espécie também adapta-se bem a gaiolas pequenas. Depois de uma pequena pesquisa, concluí que a raça perfeita é a flemish giant: os animais podem pesar mais de dez quilos e chegam ao ponto de abate em poucos meses. De um criador em Lichtfield (Connecticut), encomendei três fêmeas, um coelhão adulto e outro ainda jovem que eu pretendia que ficasse como companheiro das crianças. Ainda peguei mais uma fêmea e um outro macho adulto em Nova Jersey, por segurança. Era junho, tinha bastante tempo para que eles servissem como minha principal fonte de proteína.
Logo pintaram complicações. Os coelhos chutavam suas vasilhas de água em busca de refresco. A umidade convidou moscas a colocarem seus ovos nas gaiolas. Eles viraram larvas que, por sua vez, grudaram nas fêmeas. Resultado: perdi uma fêmea e o coelho das crianças graças a uma infestação repugnante, a qual recuso-me a descrever. Enfiei seus corpos em sacos de lixo, cobri tudo com uma pá de cal e os deixei em latas à beira da calçada para serem levados embora.
Coelhos nada coelhos
As fêmeas sobreviventes demonstraram interesse zero pelo coelho de Jersey, o que significava que todas as fichas foram apostadas no coelho de Lichtfield, um chinchila americano com a metade do tamanho delas. Assim descobri que minha fazenda quebrou uma das leis invioláveis da natureza: meus coelhos não transavam como coelhos. Só de cuecas, no meio de uma noite qualquer, apostei que era a hora ideal para a farra dos orelhudos. Mas, incrédulo, vi a fêmea recusar os esforços do grande e avermelhado macho. Toda manhã, por duas semanas, pegava meu café, ia para o celeiro e presenciava o mesmo “não-acontecimento”.
Levei as fêmeas de volta para Connecticut, e o criador as cruzou com seis de seus machos. A fêmea de Lichtfield foi engravidada, mas a de Jersey não fez nada que salvasse sua vida. “Sinto muito, é uma coelha velha”, disse o criador. No meu retorno ao Brooklyn, minha mulher e eu a aposentamos e a promovemos a bicho de estimação. As crianças adoraram. Duas semanas depois, ela morreu de hipertermia.
No meio de toda essa comoção, calculei mal a data do parto da única fêmea prenha. Quando ela teve sua primeira ninhada, eu ainda não tinha construído a fundamental caixa na qual os coelhinhos seriam colocados e desmamados. Os manuais de criação ensinam que a caixa deve ser apresentada à coelha uma semana antes do parto, para que ela tenha tempo de enchê-la de pêlos e construir um ninho. Depois de descobrir os recém-nascidos, me mexi para construir uma caixa apropriada e, na minha pressa, calculei mal as medidas. O resultado foi desastroso. A caixa era muito pequena. Conseqüentemente, a fêmea não podia entrar para alimentar sua prole, forçando os coelhinhos a sair da caixa e andar em volta da gaiola. A logística de manter a atenção em sua primeira ninhada provou ser demais para a coelha e ela entrou em pânico. E, quando uma mamãe coelha entra em pânico, ela pode devorar seus coelhinhos. Já havia lido sobre esse comportamento e silenciosamente temi por isso enquanto fazia uma nova caixa. Mas achei que era um fenômeno raro e fui negligente.
Carnificina materna
Quando o fim de semana chegou, deixei a fazenda e fui com meu filho assistir a um desfile em Coney Island. Esperançosa por um momento de conexão entre mãe e filha na fazenda, Lisa levou Heath para visitar os coelhinhos. Apenas momentos antes de sua visita, a fêmea havia destruído o que restava dos filhotes, esmagando dois deles e arrancando a cabeça de um terceiro. Vendo a carnificina, Lisa conseguiu segurar o vômito e empurrar Heath para longe da gaiola.
Só percebi mais tarde, mas Lisa estava tentando colocar panos quentes sobre seu ressentimento em relação à fazenda o tempo todo. Ela odiava a bagunça, tinha vergonha da pilha crescente de lixo na entrada de casa e estava enojada pelo cheiro de estrume que vinha do celeiro. O fato de eu estar sempre vestido com roupas sujas e de quase nunca deixar a propriedade também não ajudava. E também tinha o anel de sujeira que eu deixava em nossa banheira depois do banho todas as noites. Lisa não tinha planos de ser a esposa de um fazendeiro. Ela tem uma profissão exigente e tinha acabado de receber uma promoção quando eu comecei meu projeto. Lisa queria que nossa casa fosse um santuário, não o abatedouro no qual eu a transformei. Uma carreira e duas crianças já eram demais. Quando cheguei do desfile com Jake, a simpatia de Lisa por mim e minha aventura agrária havia acabado.
Enquanto ela bufava, eu me consumia de preocupação. Os coelhos haviam sido um erro tático. Era quase julho, menos de um mês para agosto. Precisava de uma nova fonte de proteína. Fui até Agway, em Nova Jersey, e voltei com 26 galinhas pequenas e quatro patinhos. Lisa chegou em casa bem na hora em que eu e Caleb estávamos tirando os pássaros do carro, com os meus filhos dançando em volta. Sentindo-se acuada, Lisa pensou seriamente em pegar as crianças e ir para um hotel. Sua raiva transbordou quando Jake pisou em um dos patinhos, mutilando o animal de tal forma que tive de pegar uma pá e jogá-lo fora antes que o garoto percebesse o que tinha acontecido. Menos de uma hora em casa e já com um pato a menos. “Você vai transformar as crianças em assassinos cruéis”, disse Lisa.
Aí veio o último golpe. Na tarde seguinte, Caleb e eu construímos a maior parte de um galinheiro. Inspirados pela animação “A Fuga das Galinhas”, decidimos fazê-lo verticalmente, cheio de rampas, para que ocupasse o mínimo de espaço. Tudo ia bem. Lá pelas 17h30, Caleb juntou tudo, pegou sua bicicleta e foi para casa se aprontar para o curso de barman. Uma hora depois, lá estava eu dando os toques finais. Com uma serra elétrica em punho, cortava um pedaço de compensado para fazer uma rampa de entrada. De repente, a lâmina da serra pegou meu dedo mindinho direito e destruiu sua segunda falange. Partes dele ficaram na serra e no chão.
Peguei meu celular com minha mão esquerda e liguei para Josh, um amigo de infância que agora é bombeiro e, melhor ainda, mora na esquina. Ele correu até minha casa e estancou o ferimento sob meu olhar assustado. Não tanto pelo machucado, que não ia me matar, mas por Lisa, que provavelmente iria. Ela deveria chegar em casa com as crianças a qualquer momento. Depois de mais um longo dia no escritório, seria uma cena e tanto para ela ver.
Decidido a não me levar a um pronto-socorro, onde ficaríamos em uma fila, Josh ligou para um cirurgião especialista em mãos, Danny Fong, que concordou em ver a mim e a meu mindinho imediatamente. Antes que chegássemos à porta de casa, Lisa apareceu com Heath e Jake. Tentei soar casual: “Querida, machuquei meu dedo e preciso ir ao médico”. “Como assim? Machucou muito?”, ela perguntou. “Não muito”, menti. E aí fui honesto: “Com a serra elétrica”. Minha mulher deu um grito cheio de angústia e frustração. Lisa me xingou por minha idiotice, afinal, havia me mutilado. Mas não era só isso. Agora, ela ainda tinha que sentir pena.
O pedaço mais verde do bairro
Poucos dias depois do incidente do mindinho, enquanto Caleb e eu estávamos limpando o cocô da gaiola do coelho, um grupo de senhoras do Jardim Botânico local se juntou na entrada da rua. Elas eram juradas de uma competição que julga o pedaço mais verde do Brooklyn. O grupo foi atraído pelas caixas de plantas que eu tinha em frente de casa, cheias de tomates, pimentões, pepinos e melões. Elas queriam nos cumprimentar por sermos um exemplo de como comida pode ser cultivada na cidade. Caleb e eu trocamos um olhar e as conduzimos ao quintal. A fazenda as deixou malucas.
Seu entusiasmo me permitiu um novo olhar sobre meu jardim. O milho estava bem alto, em fileiras uniformes, e os feijões cresciam vigorosos. As borboletas deslizavam sobre os repolhos e os pepinos pendurados nas grades que havia construído para eles. As ervas estavam gloriosas, as flores da erva-doce com um forte gosto de anis, o grande arbusto de alecrim prometendo anos de serviço. Entre o verde, pequenos pedaços de cor brilhavam: uma abóbora amarela, uma berinjela branca, um tomate vermelho. As batatas ficaram tão altas e fortes que não tínhamos espaço para mais delas. As juradas do Jardim Botânico ficaram maravilhadas. Por um momento, eu também fiquei. Estávamos a uma semana da chegada do tornado.
A piada sem graça do dia 8 de agosto de 2007 arrasou o milho, a abóbora, metade das berinjelas, a maior parte dos feijões e a figueira. Quando a tempestade acalmou, parei na varanda por um momento, rindo para mim mesmo e pensando que a mãe natureza havia feito o que Lisa não tinha conseguido. O experimento estava terminado. Pelo menos havia uma ótima desculpa: um tornado. Quem poderia prever? Vagando pelo estrago, percebi dois figos maduros jogados na sujeira. Limpei as frutas em minha calça e os comi. Depois, sem realmente pensar sobre o que estava fazendo, xinguei as galinhas que tinham escapado e colhi os legumes danificados. Peguei tomates, passei pelo processador e pus o molho no freezer. Salvei algumas folhas de uns repolhos esmagados, limpei-as e também coloquei no freezer. Logo percebi uma coisa: a fazenda sobreviveu.
Você deve ter percebido, caro leitor, que perdi meu prazo original. Em 8 de agosto, dia do tornado, já deveria estar me alimentando de minha produção havia uma semana. Entretanto, isso não foi possível. No começo do mês, os tomates estavam verdes, e as galinhas, ainda abaixo do peso mínimo para o abate. Havia quatro berinjelas com tamanho suficiente para serem comidas e apenas um pepino. Nada de beterrabas ou cenouras. O início do experimento havia sido alterado para 15 de agosto.
Isso me deu tempo, entre outras coisas, para turbinar a produção de ovos. Eles não faziam parte do plano, mas se tornaram parte dele depois que um criador me empurrou uma galinha mutante. Era quase sem penas e tinha pernas e pés escabrosos. Para nossa surpresa, ela se mostrou uma boa galinha. E, depois de a colocarmos em uma dieta de ração para gatos, ela produziu um ótimo ovo caipira. Foi um momento de alegria na fazenda.
Ela pôs outro ovo no dia seguinte, mas comeu o maldito antes que eu pudesse colocar minhas mãos nele. Duvidei que ela transformaria esse ato nojento e canibal em um hábito. Então esperei pelo terceiro dia, quando aconteceu de novo. Fiz uma pesquisa rápida e descobri que, para qualquer galinha, o gosto de seu próprio ovo tem o mesmo efeito que o crack tem em um viciado. O que se seguiu foi uma batalha por claras e gemas.
A galinha vivia em uma gaiola com o chão inclinado, projetado para preservar seus ovos. Ela os colocava e eles rolavam para fora da gaiola. No início, ela não percebeu que o ovo estava lá. Mas depois de ficar com a boca cheia de sua própria gema, o animal aprendeu a girar, quebrar cada ovo com seu bico e engolir tudo o que podia antes que ele caísse na bandeja embaixo da gaiola. Minha primeira reação foi aumentar o ângulo da gaiola e encapar o arame para que a casca não quebrasse quando o ovo rolasse rapidamente para longe da galinha. Consegui dois ovos. Ponto! Mas ela logo aprendeu a alongar seu pescoço através do mesmo buraco que permite a passagem do ovo. Perdi mais uma.
Passei um arame na frente da gaiola, do chão ao teto. Consegui mais três ovos. Furiosa como todo viciado, a galinha aprendeu a se contorcer e suspender seu pescoço para fora da gaiola como antes. Troquei todo aquele arame por um pedaço de rede, o que deu a ela espaço suficiente para colocar ovos e criou um piso secundário, largo o suficiente para que ela não conseguisse alcançar além da parede frontal da gaiola. O início de minha dieta da fazenda se aproximava e já tinha quase uma dúzia de ovos na geladeira.
As primeiras galinhas foram mortas cinco dias depois do tornado. Era o número possível, já que as outras vinte ainda estavam abaixo do peso. Segundo a técnica de abate que escolhi, as galinhas deveriam ser colocadas em um cone de aço inoxidável. Ele impede os animais de sair correndo sem sentido, batendo suas asas. Seus pescoços são então cortados com uma lâmina de quatro polegadas. Assim que acabam de sangrar, os bichos são colocados em um escaldador – um contâiner de fibra de vidro cheio de água aquecida – para que sua penas sejam retiradas mais facilmente. Depois de depenadas, seus miúdos e pés são retirados, e os cadáveres são colocados em água fria. O processo leva horas e não estava preparado psicologicamente para ele. Matar as galinhas foi um trabalho tedioso e grotesco. Quando terminei, sentei na calçada com três garrafas de cerveja.
Em 15 de agosto, primeiro dia da dieta, avaliei meu estoque de galinhas, tomates, berinjelas, pepinos, outras coisinhas e alguns ovos. Uma coisa era certa: eu iria precisar das malditas batatas. Desisti de fazer um levantamento da plantação de batatas porque não queria interferir no que esperava ser sua maneira selvagem e abundante de crescimento. Meu pai, que plantava batatas na Inglaterra, sua terra natal, havia sido meu consultor nessa parte do >> projeto. Seu envolvimento me dava confiança. Esperava colher 100 ou 200 batatas.
Puxei a cerca de compensado para longe da plantação. Ataquei o solo com um garfo para jardinagem. Atingi algo sólido e encontrei um bolo de sujeira. Repeti esse exercício inútil até chegar a uns 3 metros abaixo do solo. Zero. Aprofundando-me ainda mais, como um garimpeiro em busca de ouro, encontrei sete das menores batatas que o mundo já viu. Liguei para meu pai. “A plantação de batatas não deu certo”, disse. “Não deu certo? Como não?”, ele balbuciou. “Consegui achar sete, e elas são tão grandes quanto botões de camisa”, repliquei. Talvez, as coisas tivessem sido diferentes depois de mais um mês na terra. Mas o fato é que minha dieta não teria batatas.
A primeira ceia
Esperava compartilhar minha primeira refeição com Lisa e as crianças, mas ela estava firme em seu boicote contra todas as coisas da fazenda – especialmente o fazendeiro. Ela havia marcado um happy hour depois do trabalho e deixou Jake e Heath com minha mãe. Então convidei meu amigo Dan para juntar-se a mim. Nascido no Alaska, ele conhece bem a criação de aves domésticas. O sujeito não ficou animado ao perceber que água era o único acompanhamento na mesa. “Nada além de água por um mês?”, ele perguntou. “Não plantei bebida alguma”, respondi. “Claro que não…”, disse Dan. Encerrei o assunto: “Sinta-se à vontade para abrir uma garrafa de vinho”.
Preparei uma galinha em minha churrasqueira, dividi o bicho em duas partes e as coloquei sobre uma salada de folhas. Cozinhei cebolas e alho na sua gordura. Como acompanhamento, coloquei grossas fatias de tomate e temperei tudo com sal marinho, pimenta-do-reino e salsinha. Ficou lindo, bom até para um restaurante. O sabor era ainda melhor. A pele era grossa e crocante. A carne foi uma revelação, densa, mas não borrachuda, com um sabor concentrado de doze galinhas de supermercado. Tinha sabor de algo que havia vivido de verdade, como peixe recém-pescado. Dan também curtiu, mas não me importava muito com o que ele achava. O cara estava lá para testemunhar a minha mais completa satisfação. Tanto que nem liguei para seus grandes goles de vinho branco.
Quando Lisa chegou em casa com as crianças, praticamente enxotei meu comparsa, insistindo para que minha família provasse um pouco do meu jantar. Lisa recusou de pronto. Jake olhou para a mãe, depois para a galinha, e disse: “Não pai, obrigado”. “Verdade? Não querem nem experimentar?”, perguntei. “Estou bem”, disse Lisa. Jake olhou para nós dois. “Vamos lá, Jake, experimenta. É maravilhoso!”, insisti. Desesperado por um aliado, tentei dividir a família entre meninos e meninas. “Não é como uma galinha comum”, apelei. “Eu gosto de galinha comum”, afirmou o garoto.
No dia seguinte, preparei outro prato perfeito como o da noite anterior e servi para Caleb, meu escudeiro. Ele olhou para aquilo como se desejasse um pedaço de pizza e comentou, como quem não conhece do assunto: “Cheira um pouco como cuecas”. Quando finalmente experimentou, ele teve de admitir que era delicioso.
Nos quatro dias seguintes, não comi nada que não viesse da fazenda. Não havia muita variedade. Os ovos foram uma benção. Comia um deles toda manhã. Ficava em jejum até o jantar, que começava a preparar por volta das 16 horas. Comia tudo sozinho, mais ou menos uma hora depois. As refeições eram pequenas variações do meu primeiro prato, alternando galinha grelhada e ensopado de galinha com tomates e cebolas. Tinha repolhos e tomates frescos como acompanhamento, e um pouco de berinjela a cada dois dias. Vez ou outra, devo admitir, trapaceei usando azeite para cozinhar as berinjelas. Elas ficavam horrorosas quando cozidas em água.
Meu esquema foi ditado pelo fato de não haver realmente nada para almoçar, pelo menos nada diferente do que tinha para jantar, e pelo fato de eu continuar sentando à mesa com as crianças para sua refeição às 19 horas. Nunca antes havia salivado ao ver um peixe frito congelado, mas isso começou a acontecer. As imagens de sushis dançando em minha mente eram psicodélicas. O tempo começou a passar mais devagar. Tentei levar uma vida normal, mas deixar a fazenda me levou a ter contato com alimentos que não podia comer. E fiquei tentado por quase tudo que era inadmissível. Fui ao mercadinho para comprar leite para as crianças e quase implorei por um pacote de pipocas de microondas, algo que geralmente odeio.
No sexto dia, fiquei literalmente de joelhos. Culpa de um grande desarranjo intestinal. Vou deixar os detalhes de lado, mas quase desisti. Não sei se essa indisposição foi causada pela comida da fazenda. Entretanto, fico orgulhoso de dizer que estava apto a retornar à dieta após dois dias de sofrimento. A única exceção seria um bife suculento, um presente de aniversário dado pela minha mãe. Provavelmente por intervenção divina, infelizmente queimei o belo pedaço de carne. Me mantive firme em meu experimento.
Cenário perfeito? Típica rua do Brooklyn nova-iorquino. Você imaginaria encontrar uma fazenda em um lugar como esse?
Fechando a conta
Três semanas depois de comer nada além do que vinha da fazenda, perdi 14 quilos de meus 110 originais. Eis o lado bom de fazer apenas duas refeições por dia. O lado ruim é o custo. Sem contar meu próprio trabalho, gastei aproximadamente US$ 11 mil (R$ 20 mil) com meu experimento, e o resultado foi insuficiente para alimentar um adulto por um mês. Mas aprendi algo: a menos que você realmente saiba o que está fazendo, esse é um trabalho torturante, capaz de destruir sua alma. Mas é claro que comer comida fresca é delicioso.
Poucos locavores veriam minha experiência como algo relacionado ao que defendem: comer regionalmente e de forma sazonal, para salvar o planeta. Mas agora entendo melhor os seus slogans. Comer localmente é caro e consome tempo, e é exatamente por isso que esse movimento não irá atingir as massas. Sua prática requer disposição total para a abstinência de conveniências e muito desapego do mundo moderno. Nossa época é determinada pela divisão do trabalho: não costuramos nossas roupas, não construímos nossas casas e por aí vai, exatamente porque estamos ocupados em fazer algo para outras pessoas. Os locavores também pregam a valorização do tempo e da energia, além do cuidado que deve ser empregado na produção de nossos alimentos. Nesse ponto, estou com eles.
E ainda havia Lisa. Em uma noite qualquer, quando me juntei a ela e as crianças para o seu jantar, Lisa comentou que, depois de ver o quanto eu tinha trabalhado duro para ter um simples frango na mesa, nunca mais iria fazer compras do mesmo jeito. Não era uma questão de comprar regionalmente, sazonalmente ou organicamente. O importante era consumir com responsabilidade. “Nunca mais desperdiçarei tanto”, ela disse. “Jogamos mais comida fora do que comemos.” Pronto. Enfim tivemos nosso momento mágico de entendimento.
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