Por Ana Flávia Pilar - O Globo - 11 de novembro de 2024 - Com modelo…
JOGA FORA NO LIXO
Não satisfeitos com a quantidade de detritos na Terra, humanos resolveram ocupar o espaço com sua sujeira.
Além de sujar seu próprio planeta, o homem conseguiu deixar um rastro de poluição em órbita. E isso em pouco mais de seis décadas.
A maioria desta tralha tem cerca de 1 mm de diâmetro. Mas os pedaços mais perigosos, que podem colidir com satélites ativos, chegam a ter mais de 10 cm e somam, segundo o Catálogo de Vigilância Espacial dos EUA, 34 mil objetos. E um parafuso desses ou até um satélite “morto” podem ser responsáveis pela destruição de um satélite na ativa —por exemplo, um que monitora o desmatamento da Amazônia ou que leva internet para a sua casa.
Isso já aconteceu. Em 2009, o satélite Cosmo 2251, que desde 1995 vagava sem uso na nossa órbita, colidiu com o ativo Iridium 33, que fazia parte de uma rede de satélites de telefonia celular. Os dois objetos bateram a uma supervelocidade de mais de 42 mil km/h, e o choque gerou mais mil outros fragmentos com mais de 10 cm, fora objetos menores impossíveis de serem rastreados. Em outro caso mais recente, no fim de janeiro, dois satélites defuntos por pouco não se chocaram.
Eventos do tipo ainda são raros, mas a tecnologia acelera as coisas. O fim da conexão discada começou no início dos anos 2000, e o Waze e a nossa dependência de GPS vieram em 2008 —ou seja, não faz tanto tempo. Se em duas décadas de uso intenso de satélites conseguimos sujar o espaço dessa maneira, imagine o que vem por aí.
Só o Starlink, projeto de constelação de satélites da SpaceX, empresa espacial de Elon Musk, já tem mais de 500 ativos e está jogando mais lotes no espaço todo mês. O objetivo é ter 12 mil deles funcionando até 2027, para levar conexão de internet mais barata e de alta velocidade a lugares afastados das grandes cidades.
O perigo dos restos espaciais ainda são uma questão sem solução, porque não existe ainda uma “nave-caminhão de lixo” capaz de trazê-los de volta para atmosfera ou lançá-los para fora da órbita da Terra.
A primeira iniciativa do tipo deve ser lançada daqui a cinco anos. A startup suíça ClearSpace ganhou no fim do ano passado a licitação da ESA (Agência Espacial Europeia) para capturar um entre esses 34 mil objetos —só um, mas a empresa vê nos “caminhões de reboque” do espaço um futuro promissor.
Suíça e Japão na faxina
O homem deixa lixo no espaço desde 1957, quando foi lançado o primeiro satélite artificial, o Sputnik, durante a corrida espacial entre a antiga URSS e os EUA. Naquela época, era muito caro tentar recuperar os satélites e as outras estruturas que auxiliam no lançamento deles, conta o executivo-chefe da ClearSpace, Luc Piguet, em entrevista a Tilt, em Lausanne (Suíça).
A empresa foi selecionada pela ESA (Agência Espacial Europeia) entre outras 12 empresas —dentre elas as gigantes Airbus, Thales e Avio— para realizar a primeira missão de resgate de um objeto espacial, prevista para 2025. O alvo é a Vespa, uma estrutura de adaptação acoplada ao foguete Vega lançada em maio de 2013.
“Tornou-se usual deixar coisas no espaço. Isso não era um grande problema porque até então tínhamos tido apenas algumas missões, mas isso se tornou realmente intenso quando começaram a lançar um monte de satélites no espaço”, explicou Piguet.
Quando o Idirium 33 e o Cosmo 2251 se chocaram há 11 anos, a 780 km de altitude sobre a Sibéria, a comunidade científica viu que muitos objetos em órbita poderiam ser um problema. Desde então, agências espaciais e empresas têm investido em monitoramento e pesquisa para encontrar uma solução.
A empresa japonesa Astroscale está preparando para este ano o lançamento do Elsa-D, um satélite que testará tecnologias inéditas de operações de encontro e proximidade com detritos espaciais. Deve ser lançado a bordo do foguete Soyuz, no Cosmódromo de Baikonur, no Cazaquistão, mas ainda não tem data de lançamento. A missão, no entanto, não prevê a captura de nenhum objeto.
Veja simulação da colisão entre o Iridum e o Cosmo
ClearSpace-1, o satélite-kamikaze
A Vespa está hoje rotacionando o nosso planeta em uma trajetória elíptica, a uma altura que varia de 600 km a 800 km em relação ao nível do mar, girando a uma velocidade muito alta, de 28 mil km/h. “Levaria mais de 100 anos para que elas [estruturas como a Vespa] voltassem para dentro da atmosfera terrestre”, diz Piguet.
O objeto escolhido pela ClearSpace surgiu de uma lista com 20 detritos espaciais que precisam, em algum momento, ser trazidos de volta para a Terra. A lista foi dada pela ESA às empresas que estavam concorrendo na licitação que teve a startup suíça como vencedora. Os custos da missão ClearSpace-1 são estimados em mais de 100 milhões de euros —o equivalente a R$ 600 milhões.
Segundo Piguet, para conseguir capturar uma estrutura como essa no espaço, você precisa de um tipo de satélite com sistemas de propulsão que consigam manobrar no espaço para chegar ao lugar certo e de um mecanismo robótico capaz de capturar o objeto.
A primeira fase da missão será desenhar todos os subsistemas do satélite e testá-los dentro dos laboratórios da EPFL (Escola Politécnica Federal de Lausanne), parceira da startup na missão.
Mas a ClearSpace não está sozinha. Ela lidera um consórcio que envolve empresas e entidades de oito países europeus: Suíça, Reino Unido, Alemanha, Portugal, Polônia, Suécia, República Tcheca e Romênia.
“O que faremos quando capturarmos o objeto é reduzir a velocidade dele, estabilizá-lo e colocá-lo em uma porção da órbita onde ele reentrará na atmosfera rapidamente. Na atmosfera, ele queimará”, completa Piguet.
Em outras palavras, o ClearSpace-1 tem uma missão suicida. Vai ser queimar com a Vespa na atmosfera terrestre.
Como o ClearSpace-1 deve capturar a Vespa
O “caminhão-reboque espacial”
Embora haja muito lixo lá em cima, se engana quem pensa que a nossa órbita é terra de ninguém. Há regras internacionais que estabelecem responsabilidades sobre o que é lançado ao espaço.
Desde 2002 a UIT (União Internacional de Telecomunicações), da ONU, faz um pedido às empresas que lançam satélites na órbita geoestacionária, fora da influência da atração da Terra: que tenham reserva de combustível para, ao fim da vida, serem retirados da órbita e colocados na órbita-cemitério, que fica muito afastada da terra, onde a atração gravitacional da Terra não existe e não há risco de colisões.
“Para os objetos de órbita baixa lançados após essa data, os responsáveis devem ter um plano de reentrada segura na Terra. Porém, até essas normas entrarem em vigor já tínhamos muitos objetos vagando pelo espaço”, conta Erika Rossetto, mestre em Astronomia na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) com ênfase em lixo espacial.
Piguet, da ClearSpace, ressalta que alguns satélites simplesmente quebram no espaço e não conseguem cumprir o ciclo da vida. As empresas até tentam consertar, mas em algum momento elas desistem porque muitas vezes sai mais barato produzir um novo.
“Você compra um carro, um bem caro, muito confiável, e você o dirige em uma rodovia a uma velocidade muito alta. De repente, ele quebra. Você tenta consertá-lo por uma meia hora e se dá conta que não consegue. Na Terra, você não pode deixar o seu carro no meio do caminho, precisa chamar o reboque. Isso [deixar o veículo no meio do caminho] não é uma infração no espaço porque lá não existe caminhão-reboque”, explica.
Mas coletar lixo espacial não é uma tarefa simples.
Por que é difícil trazer o lixo para a Terra ou chutá-lo para longe?
No fim da sua vida útil, os satélites que circulam na baixa órbita e, por tanto, mais próximos da Terra deveriam conseguir retornar para a nossa atmosfera por conta própria. Quando isso acontece, a atmosfera começa a quebrá-lo, fazendo com que ele caia cada vez mais depressa e queime como uma estrela cadente. Mas, via de regra, não é bem isso o que acontece.
Segundo dados da ESA, até janeiro do ano passado 8.950 satélites foram lançados no espaço desde 1957. Desse número, 5.000 ainda estão por lá, sendo que apenas 1.950 deles estão ativos. O restante é lixo.
Tirá-los de lá não é fácil porque no espaço não tem gravidade e nem atrito. Assim, mesmo que você dê um toquinho de leve em um objeto muito pesado, tipo um satélite, ele vai começar a se afastar e ir para outra direção, o que pode gerar um risco de colisão.
Além disso, estamos falando de objetos se movendo a uma velocidade de 28 mil km/h. “É como se você tentasse capturar um carro de corrida usando outro carro de corrida. É complexo e desafiador fazer isso”, exemplifica Luc Piguet, da ClearSpace.
Já os que estão na órbita geoestacionária precisam ser mandados para a órbita-cemitério e, para isso, têm que dispor de combustível capaz de levá-los até lá. Trazê-los de volta para a atmosfera seria uma tarefa cara e insegura.
Como limpar se estamos mandando mais satélites?
Embora desafiadora, a tarefa de dar fim ao lixo espacial é urgente, principalmente porque o número de satélites que estão sendo lançados no espaço só aumenta —projeções dão conta eles irão quintuplicar nessa década.
Em outubro do ano passado, a SpaceX pediu a UIT (União Internacional de Telecomunicações), da ONU, e a FCC (Comissão Federal de Comunicações dos EUA, sigla em inglês) permissão para lançar outros 30 mil satélites. A companhia ainda aguarda o aval.
As projeções assustam os astrônomos, que recentemente criaram um abaixo-assinado contra essas iniciativas. “Vai atrapalhar muito as nossas observações e prejudicar o planejamento da astronomia para as próximas décadas”, afirma Thiago Gonçalves, astrônomo e professor adjunto do Observatório do Valongo, da UFRJ.
Segundo Gonçalves, satélites formam traços em imagens tiradas do céu por telescópios, e isso confunde a observação e o estudo dos astros. “Ainda não existe nenhum tipo de legislação internacional que controle esse tipo de coisa”, conta.
Satélites são caminho sem volta
Para Luc Piguet, da ClearSpace, parar de lançar satélites no espaço não é uma opção. “Não podemos deixar de usar o espaço como infraestrutura. A razão pela qual existem todos esses projetos é porque essa é a maneira mais fácil, por exemplo, de transportar internet”, diz.
Questionado se, diante desse cenário, ter caminhões-reboque no espaço não seria “enxugar gelo”, Luc disse que é preciso olhar o problema por outra perspectiva e que a oferta desse serviço no futuro será o “novo normal” da exploração do espaço.
Por outro lado, Erika Rossetto salienta que os objetos que estão sendo lançados agora já devem ter procedimentos para não piorar o cenário. “Essas iniciativas de remoção de lixo serão muito úteis nos casos em que por alguma falha ou acidente não seja possível seguir os protocolos de segurança”, acredita.
Marcas no céu e lua falsa. Estamos indo longe demais?
Um logo luminoso de uma empresa fictícia aparece entre estrelas no céu sobre uma cidade. A imagem abre o site da startup russa StartRocket, quer lançar outdoors orbitais no espaço para divulgar marcas, transmitir mensagens e até disponibilizar informações de emergência. A Pepsi chegou a se interessar pelo projeto, mas acabou voltando atrás temendo críticas.
Há dois anos, a imprensa chinesa noticiou que uma empresa planejava lançar no espaço uma “lua falsa” em 2022. Na verdade seria um satélite carregando um enorme espelho espacial para refletir a luz do sol na Terra, com o objetivo de melhorar a iluminação pública. A reportagem não encontrou novidades sobre a iniciativa.
Os especialistas ouvidos por Tilt se mostraram apreensivos quanto a essas iniciativas. Para Rossetto, o uso do espaço para marketing com cubesats [um tipo de satélite miniaturizado] é algo possível, mas depende se as empresas acreditarem que ter suas marcas visíveis do espaço vale o investimento.
“Além disso, uma demanda como essa intensificará o problema do lixo espacial, pois serão mais constelações orbitando a Terra”, salienta.
No caso da “lua falsa”, é difícil saber se o investimento seria válido. Afinal, é preciso levar em conta o tempo de vida, o risco de falha e a coordenação a atividade desse satélite entre regiões distintas, o que pode gerar estresse político.
Luc Piguet, da ClearSpace, afirma que “apesar de não parecer”, o espaço é um recurso limitado e, por isso, deveriam existir regras para o seu uso e defende seu desenvolvimento de maneira sustentável. “Hoje em dia, é mais ou menos como um faroeste. Deveriam existir mais regras e nós tê-las, mais cedo ou mais tarde”, afirma.
Thiago Gonçalves, da UFRJ, afirma que todas essas iniciativas são péssimas ideias e mudariam, como já tem feito, a maneira como o homem vê o céu. Neste ano, por exemplo, os brasileiros viram a olho nu os satélites da Starlink. “A gente tem sempre que lembrar que os céus noturnos são patrimônio da humanidade, são a maneira que a gente tem de se conectar com a natureza. A gente não pode simplesmente colocar uma luz artificial na frente e separar a humanidade do céu”, disse Gonçalves.
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