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Mortes silenciosas

Décadas depois de contato com amianto, trabalhadores adoecem e obtêm indenizações – antes negadas pela Justiça

Numa tarde de 1995, Eliezer João de Souza recebeu um telefonema esclarecedor. “Você trabalhou com amianto? Sente falta de ar, cansaç…”, perguntava um amigo. Souza nem o deixou terminar: “Tenho tudo isso!”

Souza descobria que os sintomas eram resultado de anos trabalhando com amianto, fibra cancerígena utilizada na fabricação de telhas e caixas d’água. Sua saúde, assim como a de todos os trabalhadores expostos à substância, estava comprometida.

Quando os problemas de saúde de Souza começaram a se agravar, ele foi orientado a procurar um médico. “Se não fosse a associação, já teria subido pro andar de cima faz tempo”, diz, referindo-se à Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (Abrea), criada em 1995.

Encaminhado ao Instituto do Coração do Hospital das Clínicas (Incor), fez tratamentos e cirurgias para retirar nódulos provocados pela exposição ao amianto.

Como outros milhares de trabalhadores expostos ao material, Souza tentou indenizações na Justiça do Trabalho. Mas perdeu: a empresa em que havia trabalhado, Eternit, uma das maiores fabricantes de telha do país, recorreu e ganhou de Souza em todas as instâncias.

Mas a história começou a mudar no fim do ano passado, quando o STF proibiu o uso do amianto no Brasil. Mais de 70 países já baniram a substância, considerada cancerígena.

A decisão do Supremo abriu um novo capítulo no conflito de ex-funcionários contra as empresas que utilizam o amianto. Em agosto, dois juízes do trabalho, um de Minas Gerais e outro do Rio de Janeiro, deram ganho de causa a duas mulheres que perderam seus maridos por conta da exposição ao amianto. Nas duas decisões ainda cabe recurso.

Na primeira delas, o Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região condenou as empresas Eternit e Saint Gobain a pagarem R$ 400 mil para a família de Antônio Marques Júnior, morto em 2012 por asbestose – tipo de câncer causado pela inalação de amianto (a substância também é conhecida como asbesto). Júnior havia trabalhado por 16 anos na Eternit entre 1960 e 1970 e começou a ter
sintomas da doença no começo dos anos 2000.

A ação foi proposta pela viúva de Antônio, Maria Helena Neves Marques, e seus cinco filhos – o magistrado delegou a divisão igualitária da indenização entre os seis membros da família. A indenização representou um contraste significante em relação à decisão em primeira instância. No julgamento, em 2014, a justiça trabalhista havia condenado as empresas apenas a reembolsar as
despesas médicas da família, avaliadas em R$ 1.164,22.

No outro caso, o juiz Daniel Ferreira Brito, do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, deu ganho de causa à viúva e às duas filhas de Luiz Roberto Gonzaga, morto em 2016 por causa de um mesotelioma, outro tipo de câncer que advém da exposição ao amianto. Gonzaga foi funcionário da Precon, empresa fabricante de tubos e conexões, onde trabalhou por cerca de quatro anos,
entre 1975 e 1983.

“Não há dúvida que há gravidade suficiente para gerar danos morais em ricochete na viúva e filhas do ‘de cujus’ ex-empregado da ré, posto que viram o seu marido e genitor falecer, depois de um período doente, de mesotelioma (câncer)”, escreveu o magistrado na decisão, que definiu R$ 150 mil em indenizações para a viúva e as filhas do ex-funcionário da Precon.

Ao UOL, o advogado das duas famílias, Leonardo Amarante, disse que as empresas faziam acordos com os funcionários para impedir processos futuros, o que é ilegal.

“Os trabalhadores assinavam esses acordos sem a presença de um advogado, sem qualquer consultoria. Agora, a Justiça está desconsiderando esses acordos.”, disse o advogado, que atua em quase cem processos similares.

“A empresa, ao propor esse tipo de acordo, reconhecia formalmente que os trabalhadores estavam sendo afetados”, explica Amarante. No caso de Antônio, foi firmado um acordo extrajudicial com a empresa Eterbras, controlada pela Eternit. “Eles esconderam e omitiram esses acordos por bastante tempo, só que agora os ex-funcionários começaram a morrer e eles vieram à tona”.

O ex-funcionário da Eternit, Eliezer de Souza, também disse que ele e outros trabalhadores da empresa passavam por exames periódicos de raio-x, mas nunca tiveram acesso aos resultados.

“Trabalhei 13 anos na Eternit lixando e cortando peças, sempre em contato com o pó do amianto. Não tinha ideia dos problemas que esse veneno causava” Eliezer João de Souza

Lobby forte – O Brasil é um grande produtor, extrator e exportador de amianto. O país tem uma das maiores reservas da substância, junto com China, Rússia e Cazaquistão, e exportou mais de 106 mil toneladas em 2015

Mortalidade – Entre 2000 e 2010, segundo o Instituto de Saúde Coletiva, vinculado à Universidade Federal da Bahia, houve 2.400 mortes de pessoas com 20 anos ou mais por conta de doenças relacionadas ao amianto no Brasil

Ações milionárias

Além dos processos individuais, tramitam na justiça do trabalho sete ações coletivas contra o Grupo Eternit no Paraná, na Bahia, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Na decisão mais recente, em 2016, a juíza Raquel Gabbai de Oliveira, da 9ª Vara do Trabalho de São Paulo, condenou a Eternit a pagar mais de R$ 400 milhões de indenizações por expor trabalhadores ao amianto.

Deste valor, 100 milhões serão destinados a financiar um grupo de apoio aos trabalhadores afetados pelo amianto, e o restante será dividido em indenizações individuais. Os revezes na Justiça fizeram com que o Grupo Eternit entrasse em recuperação judicial neste ano.

“Temos certeza sobre a nocividade dessa matéria-prima, isso ficou muito claro. As decisões ajudam a criar jurisprudências e trazem respaldo para as outras ações”, disse Fernanda Giannasi (foto), ex-auditora fiscal do Ministério do Trabalho e fundadora da Abrea. Giannasi diz desconfiar que o pedido de recuperação judicial da empresa seja uma manobra para não pagar as dívidas. “Temos dúvidas sobre a lisura desse processo”, comentou.

A associação – criada em Osasco, berço da indústria do amianto em São Paulo – orienta trabalhadores de todo o Brasil a buscar atendimento médico especializado e seus direitos na justiça. “O amianto matou mais que qualquer guerra no mundo”, diz Eliezer, que foi eleito presidente da Abrea em 1998 e permanece no cargo até hoje.

OMS já condenou o amianto – A Organização Mundial da Saúde já se posicionou algumas vezes sobre o amianto, afirmando que ele “causa câncer de pulmão, mesotelioma e câncer de laringe”. A instituição também diz que o amianto causa 107 mil mortes por ano, e que 125 milhões de trabalhadores estão expostos à substância em todo o mundo

Proibido lá fora – Mais de 70 países já proibiram o amianto. A União Europeia baniu a substância em 2005. No Brasil, Roraima, Amapá, Piauí, Tocantins, Goiás, Alagoas, Sergipe, Rio Grande do Norte, Mato Grosso do Sul, Espírito Santo, Paraná e Ceará ainda têm amparo legal para utilizar a substância

Doenças silenciosas

O amianto, ou asbesto, é encontrado na natureza: são minerais formados por fibras muito finas, que se desvencilham facilmente umas das outras, tendo uma forte propensão a produzir um pó com alta aderência. Em outras palavras, a poeira do amianto gruda em qualquer coisa, inclusive nas paredes dos pulmões.

Pneumologistas ouvidos pelo UOL afirmaram que, quando inalado, o amianto se deposita nas partes mais profundas do pulmão. O organismo, ao perceber uma substância estranha, produz células de defesa e desencadeia um processo de inflamação.

“As doenças aparecem muitos anos depois da exposição, principalmente o câncer e o mesotelioma. Normalmente, aparecem 30 ou 40 anos depois que a pessoa começou a trabalhar com amianto” Eduardo Algranti, pneumologista da Fundação Jorge Duprat e Figueiredo (Fundacentro)

A instituição em que Algranti trabalha já atendeu mais de mil ex-funcionários da Eternit que tiveram problemas de saúde por conta da substância.

A irritação do pulmão em função do asbesto pode levar a três doenças que não têm cura: a asbestose (fibrose dos pulmões), o câncer de pleura (também conhecido como mesotelioma) e o câncer de pulmão. Segundo o Instituto Nacional de Câncer (Inca), o adenocarcinoma (um dos tipos de câncer de pulmão) é o tipo mais frequente entre os cânceres desenvolvidos por aqueles expostos ao amianto.

Algranti estuda o amianto desde os anos 1990 e diz que mesmo aqueles que não trabalham diretamente com o material correm risco.

“Pode ser uma exposição inadvertida, como um mecânico que faz a manutenção de máquinas em empresas que usam o amianto, ou até domiciliar, como os parentes de trabalhadores que lavam as roupas carregadas com a poeira”, diz o médico.

Como são doenças que exigem conhecimentos específicos do amianto, muitas vezes passam despercebidas nos consultórios médicos. Foi o que aconteceu com os ex-funcionários da Eternit Antônio e Eliezer, diagnosticados várias vezes com problemas respiratórios simples, como bronquites e pneumonias. “Essas doenças não são muito conhecidas. Os médicos não estão habituados a ver e confundem com infecções respiratórias”, explica Algranti.

Liminar deu sobrevida

A decisão do STF de novembro de 2017 concluiu um debate que se arrastava há pelo menos 13 anos, proibindo o uso do amianto crisotila, utilizado para fabricar telhas e caixas d’água. Até então essa era o único tipo que podia ser comercializado.

Mas uma decisão monocrática da ministra Rosa Weber, cerca de um mês depois, mudou o panorama novamente. Em decisão liminar, ela afirmou que o amianto só está vetado nos Estados que já têm leis contra a substância. A decisão atendeu a um pedido da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria e do Instituto Brasileiro de Crisotila.

A Eternit era uma das poucas empresas brasileiras que ainda utilizavam o material e se organizou para defender o produto. “Não há registro, no mundo inteiro, de pessoa que contraiu doença por usar produtos com amianto, inclusive caixas d’água. O amianto crisotila é um produto natural, presente em dois terços da crosta terrestre, nos leitos dos rios, riachos, lençóis freáticos e até no ar que respiramos”, diz um texto publicado no site da empresa. O artigo ainda fala que a campanha contra o produto é uma “guerra suja”.

Até que todos os recursos estejam esvaídos, a decisão da ministra prevalece e, onde não há leis proibindo sua utilização, o amianto está liberado. É o caso de Minas Gerais e Goiás, estados onde estão grandes produtores que utilizam amianto.

A reportagem do UOL tentou entrar em contato com a Precon, mas não obteve retorno. O Grupo Eternit, em nota, afirmou que “não teve acesso à decisão judicial visto que o acórdão não foi redigido” e que a empresa “atua com as melhores práticas de segurança e comprometimento com os seus colaboradores, de acordo com as normas e leis que regem o setor.”

Fonte – Alex Tarja, Edição Bruno Aragaki e Talita Marchao, UOL de 10 de setembro de 2018

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